terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

A  DANÇA  DOS  CORPOS

A medicina trabalha com o corpo-organismo. Este é o seu objeto. Não apenas numa relação de exterioridade entre o médico e o seu paciente. Também numa implicação clínico-afetiva. Contudo, é preciso escapar do raciocínio tosco da visão humanitária e bem intencionada da medicina. Se ela é uma instituição como tantas outras, é preciso captar o real em si mesmo. Algo mais profundo e menos evidente acontece, dado que Michel Foucault aponta em suas pesquisas. Isso diz respeito às relações de poder. Elas preenchem a teia institucional de tão prestigiosa carreira. Tal ato profissional (técnico) intervêm no organismo humano, que por sua vez é de antemão produzido por formações do poder médico interessadas em identificá-lo individualmente. Eis "o doente paciente". Uma das consequências desse fato aparentemente banal é a surdez médica à fala do outro, já que o suposto saber ("ouça o médico porque ele estudou!") dispensa as linhas vivenciais singulares daquele que sofre e portanto encontra-se vulnerabilizado. Assim, o Organismo, concebido como uma organização/sistema dos órgãos, é o que interessa ao médico na ação clínica e/ou cirúrgica de curá-lo ou pelo menos de melhorar a sua qualidade de vida. No entanto, funcionando no lusco-fusco dos afetos oprimidos, e lado a lado com o Organismo hegemônico das praticas médicas, há o corpo invisível das intensidades afetivas, o corpo sem forma, o corpo das potências irradiantes, o corpo erógeno, o corpo composto por fibras de Luz (como diria Castañeda), o corpo vibrátil, expansivo, dançante, corpo funcionando sob o combustível desejo. Não se trata, claro, de um corpo latente ao modo da psicanálise mais antiga, a chamada "outra cena". Nada mais enganoso. O corpo está aí, está aqui, está entre nós rosnando sem cessar suas animalidades envolventes. Trata-se do corpo como expressão no mundo, numa palavra, a materialidade do espírito, o corpo-criança e sua alegria sustentada no sem-sentido do nada. A medicina não enxerga esse corpo porque os seus técnicos não foram treinados para tal, e porque suas bases epistemológicas desmoronariam se aceitassem e promovessem o que pode um corpo (como diria Espinosa).


A.M.

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