DEVIR-ALUNO
1-A máquina binária - Antes da pessoa do professor e do aluno existe a máquina binária do ensino obrigatório que estabelece as condições organizacionais para aprender e ensinar. Diz-se o que é aprender e o que é ensinar, e esse enunciado implícito é aceito como um fato natural. A boa vontade de um professor em ser um bom mestre (=passar os conteúdos), bem como a disposição do aluno em aprender(=acumular os conteúdos), não significa que o pensamento esteja presente. Não significa também que haja criação ou produção de conhecimento, mesmo que o ensino esteja acoplado a alguma pesquisa. Há outras variáveis em jogo. Tais variáveis vêm da instituição educacional e superpõem-se sobre o ensino, sobre o ato de ensinar, como se ensinar e educar fossem a mesma coisa. Educar remete à Educação, à forma-Educação, poderosa instituição milenar que se reproduz em práticas escolares; este é o seu ponto de aplicação talvez mais efetivo, a superfície de inscrição do desejo de saber, aí onde a materialidade da aula encontra uma expressão acabada e direta. Ou seja: o professor é quem ensina porque sabe; o aluno é quem aprende porque não sabe.
É a máquina binária professor-aluno funcionando em toda a parte onde existe escola. Não se trata, pois, de considerar as pessoas, boas intenções etc, ao jeito humanista de ver as coisas. A máquina produz as pessoas, ou melhor, as pessoas são peças que se ligam umas às outras para a produção de subjetividades em série, prontas para o Mercado. Isto não significa que, em termos da experiência do professor e da experiência do aluno, haja uma passividade em relação ao que acontece em torno. Pelo contrário, a pessoa, tendo um universo de representações e imagens ao seu dispor, mormente quando estimulada pela atividade intelectual, acredita estar agindo, quando é agida. Acredita estar controlando, quando é controlada. Acredita estar mandando quando é mandada. Tudo ocorre num campo invisível, onde só as forças tem acesso e funcionam em regimes subjetivos ou de subjetivações. A pessoa é o indivíduo e este é o sujeito, num encadeamento natural para que o ato de ensinar/aprender se faça sem problemas. Esta máquina está ligada a outras máquinas, isto é, a instituições: são formas sociais, cristalizações de processos, outrora, talvez, de criação. A escola, a educação, o eu, a avaliação, a aula, a divisão público/privado, entre outras, são formas sociais que, como trilhos dispostos sobre o caos, orientam o rumo do ensino e do aprendizado para um objetivo maior, transcendente, e por isso, intocável: o acúmulo de conhecimento.
Um desejo de ensinar e um desejo de aprender se conjugam para estabelecer a superfície do Encontro professor-aluno. Como dissemos , a superfície é uma máquina, na medida em que antes das pessoas, estão as instituições. Elas se imiscuem numa produção incessante de consumo. Consumir o ser. Ser alguma coisa para o mercado. Esta é a regra que vem de fora mas que está dentro da máquina. É o seu próprio combustível. Pelo menos, em tempos de hoje, o Mercado é a lei das visibilidades expostas na vitrine das técnicas: quem serei amanhã? como sobreviverei? A visão do mestre como sacerdote, e da educação como o lugar da salvação, foi devorada pelo Mercado onipresente. Daí, falar da máquina binária requer falar da máquina ternária, onde se insinuam relações de troca e mais profundamente relações de poder. Um lugar espera o professor com o script marcado, tanto mais, ou quanto mais ele inove ou queira inovar métodos e técnicas em sala de aula. A sala de aula é o rosto do mercado travestido em rigor pedagógico; este disfarça o rigor mortis do desejo. Nestas condições, ser professor é seguir a pedagogia da falta, para a qual falta conhecimento ao aluno, falta responsabilidade ao aluno, falta compromisso ao aluno, sendo necessário preeenchê-lo, enchê-lo. De idéias, conceitos, opiniões. E o pensamento?
2-A natureza do pensamento – O positivismo organicista encarregou-se de situar o pensamento como uma espécie de secreção cerebral, para a qual acorrem os médicos e fac-símiles, na ânsia de totalizar o organismo humano. Mas o pensamento não é totalizável, ele, o que circula em outros corpos além do humano, inscrevendo-se em linhas irredutíveis a formas estáveis ou árvores bem desenhadas. Aprendemos com Deleuze-Guattari que o pensamento “não é arborescente e o cérebro não é uma matéria enraizada nem ramificada (...) (...) muitas pessoas tem uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é muito mais uma erva do que uma árvore” . Sendo assim, o pensamento segue caminhos ou linhas indeterminados por um centro organizador que seria o eu, por exemplo. Ele vai além do que se compreende como pessoa individual. Um dueto interpessoal conta com multi-determinações do pensar que vêm de todos os lados para inscrições na superfície onde a fala se dá. O pensamento como “pensar” é o acontecimento. Antecedendo a linguagem, e mais, dando-lhe condições operacionais para existir e funcionar, o acontecimento inscreve-se nos corpos e ao mesmo tempo deles se destaca como a expressão. A fala do mestre e a fala do aluno são assim superfícies onde se fabrica o sentido.
Pensar, só aí, nesta linha sem retorno rumo a terras desconhecidas. Antes que isso pareça uma metáfora, dizemos que o Encontro professor-aluno, máquina binária a serviço do Mesmo, traveste-se de um sentido multiplicado e multiplicante dos signos enviados de parte à parte. Trata-se de enviar signos que substituam a pessoa de um ou de outro. Pensar é operar as linhas que saem das conexões entre os signos. A natureza do pensamento é a anti-natureza, a ausência de natureza e no seu lugar o artifício. Que o pensamento seja (ou fosse) uma secreção do cérebro, não excluiria a linha infinitiva cortando e sendo cortada por outras linhas, multiplicidades que nos chegam de súbito, aos milhares e de vez. São velocidades que produzem tonturas à lucidez mais centrada. A questão passa a ser a do caos e de como lidar com ele; não negá-lo, pois ele insiste, nem se deixar engolfar numa espécie de buraco negro ou campo inconsistente, onde as palavras se partem em segmentos incompreensíveis ao senso comum. “O que define o pensamento, as três grandes formas do pensamento, a arte, a ciência e a filosofia, é sempre enfrentar o caos, traçar um plano, esboçar um plano sobre o caos” . Mas é preciso não confundir pensamento com conhecimento. Este corresponde ao acúmulo de informações que a memória propicia, e vai servir de reservatório de conceitos estáticos à espera de que sejam acionados quando do trabalho intelectual. A atividade cognitiva ganha a sua pertinência e o seu valor na medida em que está conectada às linhas institucionais que sustentam o funcionamento da organização escolar e dos seus dispositivos. Deste modo, o “ser” inteligente não existe enquanto essência, ou substância, mas nem por isso deixa de ser palpável e intrínseco ao sucesso profissional, por exemplo. Tudo isso substitui o pensamento e ao mesmo tempo faz-se passar por ele, numa operação urdida na produção de subjetividades individualizadas no papel de aluno, no papel de professor. Pensar, pois, não é para qualquer um. Não que este um esteja acima dos mortais, mas porque esse um está à margem, sempre à margem das formas subjetivas, fazendo-se e refazendo-se como produção. Isso dá trabalho. Sim, porque o ato de pensar implica num movimento de subjetivação sobre si, espécie de dobra e redobra do eu a partir e com os signos que chegam. Falamos, pois, sobre o pensamento como ato e como física. Uma abstração concretizada, velocidades infinitas freadas na organização de saberes inseridos em práticas. É o contrário do pensamento regido pela forma-Academia, ou pela forma-Estado, quando e onde estes acabam por se aliar na ação de bombardear cidades e aldeias. A chamada relação pedagógica, ou o próprio ensino, é um lugar por excelência onde se propagam estas formas como verdades dadas. Não há, pois, uma natureza do pensamento que não esteja funcionando em algum dispositivo, em alguma prática, e portanto, não há pensamento que não se agencie como desejo de fazer, de viver, de sobreviver, mesmo que se destrua, se mate e se explore. O desejo é a superfície onde algo acontece, mesmo não acontecendo. Este é o processo.
3- A dobra subjetiva – A experiência de ensinar é antes a experiência de aprender com os signos. Antecedendo à partição significante-significado, o signo procede a uma violência constitutiva dessa experiência. Forçar a pensar, como diz Deleuze, é criar um campo tanto mais rico na emissão de signos. A função de professor dobra-se e desdobra-se na sua presença-ausência, descolando-se dos conteúdos e fazendo destes o móvel das práticas do pensar. A subjetivação deixa de ser centrada numa pessoa, seja a do professor, seja a do aluno, e constitui-se como ato de pensar por fragmentos do real. Um pensar estilhaçado, atravessando campos do saber, tal como um pássaro bicando aqui e acolá os materiais necessários à produção de conceitos. Ou de afetos e funções, se pensarmos como um artista ou como um cientista, respectivamente . Isso conflui numa subjetividade contra-subjetiva, ou seja, exposta para fora de si, não totalizada, não totalizável e inscrita na superfície dos corpos humanos e inumanos. Trata-se de singularizações móveis do processo do desejo. O muro é a linguagem douta, técnica, rochedo invisível mas doloroso às invenções não cadastradas do pensar. O caráter redutor, reducionista e por vezes fascista da linguagem leva-nos à dimensão do conhecimento imaculado. Como diz Nietzsche, “em algum canto longínquo do universo difundido no brilho de inumeráveis sistemas solares, houve certa vez uma estrela na qual animais inteligentes inventaram o Conhecimento. Foi o minuto mais arrogante e mais ilusório da “história universal”, mas não foi mais que um minuto. Com apenas alguns suspiros da natureza a estrela se congela, os animais inteligentes logo morrem” . Esta fábula traz para a experiência do aprendizado as velocidades infinitas do caos-cosmos. Daí, como trabalhar o discurso com um contra-discurso ou sem o discurso ou para além do discurso? Como ultrapassar o discurso normalizante e moralizador da pedagogia vigente e embutida nas práticas de ensino? Como seguir o rumo de territórios invisíveis, mesmo à mão, e de paisagens vertiginosas, mesmo à luz da razão? Como fabricar universos de sentido sem cair numa indiferenciação subjetiva estéril, também chamada “porra-louquice”? Ora, o aprendizado é, antes, a produção (não o produto) do Encontro. Afetar e ser afetado, nos termos de Spinoza, é a densidade própria à dobra subjetiva referida acima, e que situamos como sendo a multiplicidade. O aluno é esta multiplicidade que vaza e se expande para fora do papel-aluno disposto na série escolar . Obter uma boa nota nos exames, passar de ano ou de semestre, ser aprovado etc, são componentes do papel. Contudo, a depender do uso feito na produção do Encontro, tornam-se uma caução para o conhecimento bem comportado e estável. O que chamamos de “devir-aluno” é pois o processo do Encontro mestre-aluno na dimensão impessoal das multiplicidades. O mestre torna-se outra coisa que não ele. O aluno torna-se outra coisa que não ele. As linhas do aprendizado passam pelo vôo da bruxa até onde (?) ela irá. São abertas conexões ilimitadas às sensibilidades em curso. É criado um campo de intensificaçào da experiência do Encontro entre multiplicidades. Na prática, isso quer dizer: não faça como eu; faça comigo até experimentar em você o gosto pela novidade e pelo risco de pensar com os próprios neurônios, mesmo que estas células recolham de longe o que as faz mover, respirar, funcionar.
4-O que é o Novo? – As multiplicidades constituem a própria realidade do Encontro. É delas, com seus materiais (signos) que saem os processos de singularização, linhas de aprendizado. São vivências que extrapolam o ser-subjetivo. Não há, pois, um recipiente pronto a recolher os conteúdos, ao modo da educação bancária, tão criticada por Paulo Freire. Mas também não existe uma consciência intencional que se dirige ao objeto e a ele se liga numa manobra do ser-no-mundo. Ao contrário, são as multiplicidades que precedem o sujeito-aluno. Mais: são elas que o produzem através de linhas invisíveis, abstratas, mas não menos atuais. Falamos de um campo virtual de problematização do ensino. Vamos para além do dualismo milenar professor-aluno na busca das práticas de vida. Trata-se da imanência das questões, ou, o que quer dizer o mesmo, das verdadeiras questões do ensino e por conseguinte, do aprendizado. O que é aprender? Para que aprender? Como aprender? Com que práticas sociais esse aprendizado irá se conectar? Conexões a serviço de que ou de quem? Saímos do âmbito da escola e seu contexto funéreo, vamos ao mundo em suas indeterminações radicais. É claro que a escola está no mundo, mas aqui no referimos ao mundo caotizado das velocidades infinitas das determinações institucionais, formas sociais gestadas a partir de matérias sem forma, puras moléculas em trânsito. Extraimos do dispositivo-aula devires que o ultrapassam. A sala de aula não está mais contida no enquadre escolar e não mais recria a cena gasta do professor falando a seus discípulos. Ela se abre ao encontro do Novo, mesmo que este já esteja aí, no interior do seu funcionamento mais minucioso e nem por isso, menos captável.
Se considerarmos o ensino mais técnico e objetivo (fazer algo, digamos, auscultar um tórax) o devir-aluno estará presente como aquilo que se desfaz sempre para se fazer logo em seguida. Professor, comece a mesma aula do semestre passado como se fosse a primeira vez. O frescor do saber que sai pela fala do mestre traz o sabor do Novo. Tornar interessante o que se ensina começa a partir de tudo o que é velho. Repetir ,balbuciar e gaguejar a língua, não a fala, para enunciar algo diferente, será possível? “Sim, uma linguagem afetiva, intensiva, e não mais uma afecção daquele que fala” . Para tocar as multiplicidades dispostas num campo de ensino, é preciso que a fala do mestre entre em contato com o limite da língua, daí, com o seu “fora” e o seu silêncio. O Novo não é dado, ele é produção de linhas curvas e incertas. Que se considere o devir-aluno como uma irrupção demoníaca na própria configuração do Encontro. Estamos, pois, muito distantes da máquina binária referida e muito perto das forças do inconsciente institucional circulando entre as cabeças, entre os papéis e nas relações de poder. Como vimos, o pensamento é uma linha estendida entre a arte, a ciência e a filosofia, sendo nesta última o acontecimento “pensar” aquilo que alarga e faz alargar as dimensões múltiplas do processo de aprendizado. A sala de aula é o mundo com seus aparelhos, com seus dispositivos de domesticação de almas. Mas o devir-aluno é mais que o aluno como pessoa; ele segue os fluxos do aprender antes do ensinar. Não aprender as certezas e as opiniões prontas do homem médio, mas sim algo que muda imperceptível e veloz como o próprio tempo. Captar este “imperceptível” do tempo é tornar-se o tempo irreversível dos atos de ensino que são ao mesmo tempo atos de aprendizado. Rigorosamente, não o Novo como um objeto ou objetivo a ser alcançado, e sim como a própria materialidade do espírito, a consistência da passagem, da “duração”, do tempo que não se vê, mas que se sente. Tornar-se aluno e mestre de si mesmo requer a multiplicação dos eus, o esquecimento da história pessoal, e como diz ainda Castañeda, a parada do diálogo interno. Toda uma bruxaria santa, todo um ritmo da natureza encravado nas falas mais artificiais e incômodas. É um estilo isso de ser não sendo, esse nomadismo no mesmo espaço e ao mesmo tempo já em Júpiter ou Urano, velocidades aceleradas para os seres lentos que somos. O pensamento voa. Um exemplo de aula: enquanto aqui eu falo da esquizofrenia-doença, aí em vocês e sobre vocês o pensamento percorre continentes, cidades, países, amores, e a aura do invisível cobre esse itinerário tão secreto quanto estranho. Esquizofrenizar o pensamento, ele já esquizofrênico por si mesmo, desde que não há nascedouro, só um meio onde tudo começa e flui, é aprender a pensar . Tudo já estava lá, ou aí, ou aqui, e é mudando a natureza das multiplicidades ( o Novo, enfim) que o aprendizado dos signos se faz.
A.M
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