Gilles Deleuze e Félix Guattari |
Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
domingo, 30 de novembro de 2014
MULTIPLICIDADES
A uma arte assim cosmopolita, assim universal, assim sintética, é evidente que nenhuma disciplina pode ser imposta, que não a de sentir tudo de todas as maneiras, de sintetizar tudo, de se esforçar por de tal modo expressar-se que dentro de uma antologia de arte sensacionista esteja tudo quanto de essencial produziram o Egito, a Grécia, Roma, a Renascença e a nossa época. A arte, em vez de ter regras como as artes do passado, passa a ter só uma regra - ser a síntese de tudo. Que cada um de nós multiplique a sua personalidade por todas as outras personalidades.
Fernando Pessoa
LEVE, O CORPO
(...) Com isto concluo e pronuncio meu julgamento: eu condeno o cristianismo; lanço contra a Igreja cristã a mais terrível acusação que um acusador já teve em sua boca. Para mim ela é a maior corrupção imaginável; busca perpetrar a última, a pior espécie de corrupção. A Igreja cristã não deixou nada intocado pela sua depravação;transformou todo valor em indignidade, toda verdade em mentira e toda integridade em baixeza de alma. Que se atrevam a me falar sobre seus benefícios “humanitários”! Suas necessidades mais profundas a impedem de suprimir qualquer miséria; ela vive da miséria; criou a miséria para fazer-se imortal... Por exemplo, o verme do pecado: foi a Igreja que enriqueceu a humanidade com esta desgraça! – A “igualdade das almas perante Deus” – essa fraude, esse pretexto para o rancor de todos os espíritos baixos – essa idéia explosiva terminou por converter-se em revolução, idéia moderna e princípio de decadência de toda ordem social – isso é dinamite cristã... Os “humanitários” benefícios do cristianismo! Fazer da humanitas uma autocontradição, uma arte da autopoluição, um desejo de mentir a todo custo, uma aversão e desprezo por todos desejos bons e honestos! Para mim são esses os “benefícios” do cristianismo! – O parasitismo como única prática da Igreja; com seus ideais “sagrados” e anêmicos, sugando da vida todo o sangue, todo o amor, toda a esperança; o além como vontade de negação de toda a realidade; a cruz como símbolo representante da conspiração mais subterrânea que jamais existiu – contra a saúde, a beleza, o bem-estar, o intelecto, a bondade da alma – contra a própria vida... Escreverei esta acusação eterna contra o cristianismo em todas as paredes, em toda parte onde houver paredes – tenho letras que até os cegos poderão ler... Denomino o cristianismo a grande maldição, a grande corrupção interior, o grande instinto de vingança, para o qual nenhum meio é suficientemente venenoso, secreto, subterrâneo ou baixo – chamo-lhe a imortal vergonha da humanidade...
(...)
F. Nietzsche in O Anticristo
OS MISTÉRIOS DA PERSONALIDADE
Amigos, tive um vizinho que era o que se chama um homem de bem. Quando ele passava, cumprimentando todos, inclusive postes (tinha o gênio do cumprimento), as pessoas sussurravam, espavoridas: — “Olha o homem de bem! Olha o homem de bem!” E ele passava. Tinha uma testa que começava na frente e ia acabar cá atrás no cangote.
Diz, porém, a minha vizinha gorda e patusca: — “Nada como um dia depois do outro.” Pois bem. E, de repente, acontece apenas o seguinte: — aos 50 anos de vida, e de repente, o homem de bem bate uma carteira. E o pior vocês não sabem. A vítima não foi um qualquer. Simplesmente, o homem de bem estava no velório de um contraparente. E bateu a carteira do defunto.
Como? Como? Não era homem de bem, de uma vida imaculada? Era, até aquele dia. E ao ver o defunto deu-lhe a vontade incoercível de roubar a carteira do morto. Fingiu que o beijava na testa, ao mesmo tempo que sua mão, voraz, deslizava por baixo de cravos e dálias. O resto se deu.
Foi logo agarrado. E, então, aquele santo soluçou: — “Eu não tenho culpa.” E deu a explicação: — “São os mistérios da personalidade.” Os presentes passaram da indignação santa para a perplexidade aguda.
Contei a fábula e passo adiante. Bem sei que todo mundo tem os chamados mistérios da personalidade. E, nesse caso, qualquer sujeito é capaz de tudo, até de uma boa ação. Ou melhor: — Boa ação é exagero. E o culpado sempre dirá, aos berros: — “São os mistérios da personalidade.”
Nelson Rodrigues
AINDA NÃO VIMOS NADA
Talvez a miséria tenha chegado. Não se pode viver da própria alma. Não se pode pagar o aluguel com a alma. Experimente fazer isso um dia. É o início do Declínio e a Queda do Ocidente, como Splenger dizia. Todo mundo é tão ganancioso e decadente, a decomposição realmente começou. Eles matam gente aos milhões nas guerras e dão medalhas por isso. Metade das pessoas deste mundo vai morrer de fome enquanto a gente fica por aí sentado vendo TV.
Charles Bukowski
DISTORCER
O torcedor de futebol não é um apaixonado por seu time. Antes, ele é um apaixonado pela EXPERIÊNCIA de torcer... Isso faz sentido. Qual seja o time, as cores, os uniformes, etc, tudo o mais, ora, são apenas detalhes, pretextos. Se assim não fosse, se verdadeiramente ele torcesse por seu time, sucumbiria, como num frango vergonhoso do goleiro, às derrotas que fazem parte da história de qualquer time, muitas vezes humilhantes e inesquecíveis. Até você, Brasil... ? Portanto um devir-torcedor se renova a cada fim de jogo, ganhando ou perdendo. No entanto, humano, demasiado humano como todos nós, as derrotas acabam por fazê-lo acumular um bruto ressentimento contra o Destino (por que perdemos o jogo?) o qual é pura abstração, vazio, buraco sem fundo. Alguém tem que pagar o pato e o ódio vira-se contra o rival mais próximo. Vasco e Flamengo, Brasil e Argentina, Grêmio e Inter, etc, etc... A mídia, de olho no lucro, alimenta sem cessar esse estado de coisas. Em tempos brasileiros de visões do abismo-rebaixamento, tristeza, alegria e angústia se fundem numa espécie de "suco dos sentimentos", a um tempo, doce e amargo...
A.M.
POEMA ANTI-AJUDA
felizes os fracos de espírito
pois estes têm gurus
felizes os que ainda botam fé
no ser humano
felizes os que sabem ler
e têm algo pra comer todos os dias
felizes os que criam o inferno
para depois prometer o paraíso
felizes os indiferentes, que não se
comovem com nada e sofrem menos
felizes os que mentem para si mesmos e
acreditam piamente nisso
felizes os infelizes, pois estes são os
verdadeiros iluminados
felizes os que nunca choram e, portanto,
não passam vergonha
felizes os que têm autoconfiança,
autoestima, automóvel
felizes os amigos dos poderosos,
que tudo querem, que tudo podem
felizes os que acreditam no amor de Cristo
pois estes não têm mais salvação
felizes os andarilhos, os indecisos, os
confusos, os sem-rumo-na-vida
felizes os que choram com facilidade pois
estes estão sempre reciclando
a água parada dos seus olhos, fazendo
chover nos seus corações
felizes os piegas, os românticos,
ultrapassados, bregas, os que falam de
amor sem medo do ridículo, nem que seja
pra faturar uma boa grana naquela
música que vive tocando no rádio e o
povão adora
felizes os que escrevem livros de auto-
ajuda e ganham muito dinheiro, muito dinheiro, que
é o que realmente importa, que é o que
realmente interessa
Nicolas Behr
DESCENDO
A queda de 0,2% na atividade econômica brasileira no terceiro trimestre deste ano em relação a igual período de 2013, anunciada sexta-feira pelo IBGE, deixou o país quase na lanterna do crescimento mundial. De uma lista de 34 economias, o Brasil ocupou a 31.ª colocação, segundo levantamento da consultoria Austin Rating.
O desempenho brasileiro ficou abaixo do verificado em países como Grécia e Espanha, que ainda tentam se reerguer de crises severas, e foi o pior entre as grandes economias emergentes, que compõem o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
No topo do Brics, a China cresceu 7,3% no terceiro trimestre ante igual período do ano passado, enquanto a Índia teve alta de 5,3%. Já o Produto Interno Bruto (PIB) da África do Sul, que vive quadro de inflação elevada, juros altos e atividade em recuperação, teve aumento de 1,4%. A Rússia, mesmo às voltas com a crise geopolítica envolvendo a Ucrânia, avançou 0,7%.
(...)
Fonte: Veja,30/11/2014,04h20
sábado, 29 de novembro de 2014
NINGUÉM VAI ENTENDER
Eu sou um homem ridículo. Agora eles me chamam de louco. Isso seria uma promoção, se eu não continuasse sendo para eles tão ridículo quanto antes.
Mas agora já nem me zango, agora todos eles são queridos para mim, e até quando riem de mim- aí é que são ainda mais queridos. Eu também riria junto- não de mim mesmo, mas por amá-los, se ao olhar para eles não ficasse tão triste.
Triste porque eles não conhecem a verdade, e eu conheço a verdade. Ah, como é duro conhecer sozinho a verdade! Mas isso eles não vão entender. Não, não vão entender.
Fiódor Dostoiévski
DE SURPRESA EM SURPRESA
Há poucos dias, o ministro do STF Luís Roberto Barroso nos instigou a refletir. Falando do mensalão (e o mesmo vale para o petrolão), frisou que o que mais lhe chamou a atenção em todo o caso foi que nenhum dos condenados, em momento algum, revelou arrependimento, culpa sincera ou achou que devia desculpas ao país. Todos se acham vítimas — quando não heróis, guerreiros do povo brasileiro. Acima das leis que valem para os outros. E, espanto dos espantos! Há quem queira lhes dar crédito.
Nenhum se arrependeu. Nenhum sentiu vergonha. Desmentiram Freud, para quem a vergonha, ao causar uma reação involuntária no corpo — o rubor — mostra ser tão forte quanto o desejo sexual ou o asco, que não conseguem controlar as reações físicas que despertam. Mas nossos “heróis” não têm vergonha, não se arrependem, não reconhecem que fizeram nada errado. São juízes de si mesmos e se absolvem.
Isso é surpreendente. Mas os escândalos em série não chegaram a surpreender ninguém. Você se surpreendeu ao saber que houve corrupção numa estatal? Ou ao saber que ela envolveu empreiteiros e funcionários pagos com seu dinheiro? A ingenuidade brasileira não chega a tanto. Aceitava essa existência como parte do aparelhamento. Algo inevitável, que se varre para baixo do tapete ou se faz de conta que não há.
Quando agora se fala em corrupção espantosa, o espanto não é porque ela existiu. É com o montante dos valores, o caráter sistemático, a alta hierarquia dos envolvidos, a sua ligação direta com quadros partidários. E com a investigação equilibrada que não entornou antes da hora, não fez estardalhaço prematuro antes das eleições de modo a tumultuar o pleito, administrou bem as delações premiadas, se escorou em informações confiáveis sobre o dinheiro, checou dados com o exterior, talvez recupere parte do prejuízo. E parece caminhar por partes, um passo de cada vez, só indo para a etapa seguinte quando já amarrou a anterior com alguns nós bem apertados.
Mas surpresa? A esta altura não nos surpreendemos facilmente — afinal, vemos corruptos falando em cultura da corrupção, lembrando que todo mundo sempre fez isso, invocando que então se puna o alegado crime de ontem. Quer dizer, tudo nos conformes, a reforçar a versão de que só se faz o que sempre se fez, nada de mais.
No entanto, mais acusados estão colaborando e revelando mais tenebrosas transações a um país estupefato, chamado a pagar a conta. Para respeitáveis observadores, dois fatores contribuem para isso. O primeiro é que o julgamento do mensalão, um ponto fora da curva, rompeu com a tradição de impunidade total e, como lembrou o mesmo ministro Barroso, “foi capaz de condenar e prender o presidente do partido político que se encontrava no poder e seu ministro mais influente”. Além disso, a sociedade vê que operadores ainda têm de cumprir longas penas, enquanto políticos poderosos, por vezes condenados a mais de dez anos, já obtiveram progressão de regime (como a lei garante), estão em casa, e até viajam. Portanto, é compreensível que as famílias de investigados agora pressionem seus chefes a colaborar, para que não paguem o pato sozinhos depois que os políticos escaparem.
E os que mandam em tudo? Não têm mesmo culpa nenhuma? Nenhuma responsabilidade? Não sabiam de nada? Reconhecem que perderam a autoridade e foram enganados por subalternos que lhes davam relatórios fajutos enquanto praticavam malfeitos? Serão culpados apenas de incompetência e boa-fé? Ou sinceramente acreditavam que em nome de interesses mais altos para o país deviam fechar os olhos? Que interesses? Seu projeto de poder? A infalibilidade da causa e do projeto que defendem? Querem que o povo aceite que há um teto de corrupção inerente ao sistema e propõem uma espécie de franquia para isso? De quanto acham que seria palatável? Ou será que se envergonham?
Seria bom se também pudessem ver o que já está claro para muitos. Que governar bem não é ocupar todos os espaços para garantir votos no Congresso. Que campanhas eleitorais não devem pagar fortunas a marqueteiros para construir imagens. Que a reforma política inevitável não precisa jogar montes de alternativas no ventilador e manipular o eleitorado num plebiscito complexo que misture tudo e dificulte a alternância de poder.
Pode-se começar com mudanças mais simples: campanhas mais curtas, mais debates diretos e menos partidos. A Justiça já nos deu importante lição no decorrer desse longo vexame que vem do mensalão e se esparrama agora no petrolão: mostrou que culpado, mesmo poderoso, pode ir para a cadeia. Cabe a todos nós, agora, debater mudanças viáveis e imediatas na legislação eleitoral. Precisamos eleger gente melhor. Respeitadora do artigo único que a Constituição deveria ter, segundo Capistrano de Abreu:
— Todo brasileiro fica obrigado a ter vergonha.
Ana Maria Machado, O Globo, 29/11/2014
SEM CHANCE
“Mas continue a supor. Suponha que todos os mundos, todos os universos se reúnam num único nexo, um mesmo portal, uma Torre. E que dentro dela haja uma escada, levando, talvez, à própria Divindade. Você teria coragem de subir até lá, pistoleiro? Não é possível que em algum lugar sobre toda essa infinita realidade exista uma Sala?...
“Você não teria coragem.”
E na mente do pistoleiro, aquelas palavras ecoaram: você não teria coragem.
Stephen King
sexta-feira, 28 de novembro de 2014
ARTE DO ENCONTRO
(...) A incerteza do eu e das crenças básicas precede o Encontro. Não há clichês. O paciente não tem forma. Seu desejo não tem forma. Ele age como produção de universos móveis. Isso é difícil de aceitar. Como encontrar o paciente pela via da multiplicidade? Como acessá-lo de um modo diferente do da psiquiatria biológica e farmacológica? Parece quase impossível ou talvez algo delirante para os que estão presos à grade da CID-10. Encontrar o paciente é encontrar a si mesmo. Esta seria uma fórmula estéril se estivesse atada à visão do eu como interioridade psíquica. Contudo, trata-se de outra coisa.Buscamos sair de nós e dos nós mediante uma exposição aos signos do mundo. Trata-se de uma pesquisa de singularizações raras. “Você traz o Novo que me faz ser diferente”. É uma base para o tratamento,são potências a serem descobertas no paciente e no psiquiatra. O paciente,apesar de codificado pela psiquiatria (mesmo que nunca tenha ido a um psiquiatra), funciona em linhas da diferença que vazam. A forma dada, estática, no fim das contas, é um efeito do poder médico. Isso dificulta uma prática em direção a expressões novas. Sendo assim, o exame da mente para encontrar a mente terá que se transformar numa produção/intuição de multiplicidades. Não mais haveria exame mental porque a “mente” não é algo visível. E o que seria examinado (ou encontrado)? Devires. Eles compõem processos do desejo e articulam crenças. Deste modo, afetos e crenças desarranjam a máquina dos sintomas-fármacos.
(...)
A.M. in Trair a psiquiatria
COMUNICAR NÃO É PENSAR
Enfim, o fundo do poço da vergonha foi atingido quando a informática, o marketing, o design, a publicidade, todas as disciplinas da comunicação apoderaram-se da própria palavra conceito e disseram: é nosso negócio, somos nós os criativos, nós somos os 'conceituadores'!
(...)
Deleuze e Guatari in O que é a filosofia?
quinta-feira, 27 de novembro de 2014
RITUAL DOS 4 VENTOS & DOS 4 GAVIÕES
Ali onde o gavião do Norte resplandesce
sua sombra
Ali onde a aventura conserva os cascos
do vudú da aurora
Ali onde o arco-íris da linguagem está
carregado de vinho subterrâneo
Ali onde os orixás dançam na velocidade
dos puros vegetais
Revoada das pedras do rio
Olhos no circuito da Ursa Maior
na investida louca
Olhos de metabolismo floral
Almofadas de floresta
Focinho silencioso da sussuarana com
passos de sabotagem
Carne rica de Exú nas couraças da noite
Gavião-preto do oeste na tempestade sagrada
Incendiando seu crânio no frenesi das açucenas
Bate o tambor
no ritmo dos sonhos espantosos
no ritmo dos naufrágios
no ritmo dos adolescentes
à porta dos hospícios
no ritmo do rebanho de atabaques
Bate o tambor
no ritmo das oferendas sepulcrais
no ritmo da levitação alquímica
no ritmo da paranóia de Júpiter
Caciques orgiásticos do tambor
Com meu Skate-gavião
Tambor na virada do século ganimedes
Iemanjá com seus cabelos de espuma.
Roberto Piva
quarta-feira, 26 de novembro de 2014
NEURÔNIOS AFLITOS
A relação psiquiatra-paciente está marcada pela história do poder psiquiátrico consolidado no século XX. Nos dias que correm, são muitas as suas máscaras, muitos os seus disfarces. Existe, por exemplo, a psiquiatria oficial com expressão mercadológica (publicitária, midiática) obtida através das associações da categoria (há muitos sites à respeito), a psiquiatria biológica em sua versão humanista ou a psiquiatria universitária operando pesquisas duplo-cego sob o manto epistemológico apaziguador da ciência "neutra". Essas e outras formações institucionais se nivelam numa crença comum: o paciente é um organismo individual (físico-químico) avariado. Resta ao psiquiatra prescrever remédios à mão cheia. E "consertá-lo". Isso garante ao profissional do "cérebro-mente" uma estabilidade existencial, para não dizer material, um status, um território de poder e uma respeitabilidade científica (?!). Antes da terapêutica adotada, invariavelmente psicofarmacológica, um cientificismo oculto lhe confere a fármaco-verdade. Por isso o ato de medicar se reveste de nuances quase sempre desconhecidas e é aceito, em geral, como benefício inquestionável.
A.M.
ORGULHO DA SERVIDÃO
Os escravos do século XXI não precisam ser caçados, transportados e leiloados através de complexas e problemáticas redes comerciais de corpos humanos. Existe um monte deles formando filas e implorando por uma oportunidade de trocar suas vidas por um salário de miséria. O “desenvolvimento” capitalista alcançou um tal nível de sofisticação e crueldade que a maioria das pessoas no mundo tem de competir para serem exploradas, prostituídas ou escravizadas.
Luther Blissett
O HOMEM
Agora pergunto-lhe: o que podemos esperar do homem enquanto criatura dotada de tão estranhas qualidades? Faça chover sobre ele todos os tipos de bênçãos terrenas; submerja-o em felicidade até acima da cabeça, de modo que só pequenas bolhas apareçam na superfície dessa felicidade, como se em água; dê a ele uma prosperidade econômica tamanha que nada mais lhe reste para ser feito, exceto dormir, comer pão-de-ló e preocupar-se com a continuação da história mundial — mesmo assim, por pura ingratidão, por exclusiva perversidade, ele vai cometer algum ato repulsivo. Ele até mesmo arriscará perder o seu pão-de-ló e desejará intencionalmente o mais depravado lodo, o mais antieconômico absurdo, simplesmente a fim de injetar o seu fantástico e pernicioso elemento no âmago de toda essa racionalidade positiva.
(...)
Dostoiévski in Notas do Subterrâneo
terça-feira, 25 de novembro de 2014
Polícia na Espanha prende 4 padres suspeitos de participação em rede de abuso sexual
A polícia espanhola prendeu quatro padres suspeitos de envolvimento em uma rede de abusos sexuais descoberta em Granada. Entre os detidos estão o padre Román, de 61 anos, dirigente do clã de padres ultraconservadores ‘Os Romanones’, já denunciado neste escândalo sexual; Manuel Morales, que nos últimos anos substituiu Román à frente do clã; e Francisco Javier Montes. As informações foram divulgadas pelo ministro do Interior, Jorge Fernández Díaz.
Segundo o jornal "El Mundo", as prisões foram ordenadas pelo juiz Antonio Moreno Marín, titular do Juizado de Instrução número 4 de Granada, que investiga as denúncias de supostos abusos. A ordem judicial teve início com uma denúncia feita em outubro, de supostos abusos sofridos por um jovem de 24 anos, quando ainda era menor de idade.
(...)
Fonte: O Globo,25.11.2014 -05h13
segunda-feira, 24 de novembro de 2014
A FARSA DO AMOR
1
olho seco de cobra
morta —
chuva muito fina
agulhas
na carne viva
& você diz Amor
(velha senha secreta)
lambe as feridas
com língua de lixa
& tranca o trinco da jaula
2
não tente esse truque
outra vez
seja mais suja
meu doce amor
espete um alfinete
no olho do gafanhoto
toque fogo
nas asas de um anjo
capture vivo um ET
& o leve a um talkshow
mas não tente prender os lobos
quando for lua cheia
Ademir Assunção
UMA CLÍNICA ÓRFÃ
A luta pela diferença passa por uma rachadura no conceito de saúde mental. Desse modo, o espaço-tempo do trabalho com o paciente alarga-se ao ponto de não mais pertencer ao mercado da saúde mental e sim aos territórios coletivos conquistados no encontro com a loucura. Dissolve-se o conceito de transtorno mental, aliás, um pseudo-conceito. Quem é o doente? O que é doença? Não há certezas. Este fato é condição elementar para desfazer a saúde mental como organização da forma-Estado (as famosas políticas públicas) e substitui-la por uma clínica órfã e molecular, produzindo e operando seus próprios códigos. Um novo regime de signos poderá, então, surgir dos problemas (sempre há) que o paciente traz. O diagnóstico submete-se ao contexto social e não o contrário.
A.M.
SEM CONTROLE
Havia-me preparado para todas as eventualidades da vida. Imaginei-me amarrado para ser fuzilado, esforçando-me para não tremer nem chorar; imaginei-me assaltado por facínoras e ter coragem par enfrenta-los; supus-me reduzido à maior miséria e a mendigar; mas por aquele transe eu jamais pensei ter de passar. Como é dificil controlar o amor.
Lima Barreto
OUTRAS PERCEPÇÕES
O ser humano vivência a si mesmo, seus pensamentos como algo separado do resto do universo - numa espécie de ilusão de ótica de sua consciência. E essa ilusão é uma espécie de prisão que nos restringe a nossos desejos pessoais, conceitos e ao afeto por pessoas mais próximas. Nossa principal tarefa é a de nos livrarmos dessa prisão, ampliando o nosso círculo de compaixão, para que ele abranja todos os seres vivos e toda a natureza em sua beleza. Ninguém conseguirá alcançar completamente esse objetivo, mas lutar pela sua realização já é por si só parte de nossa liberação e o alicerce de nossa segurança interior.
(...)
Albert Einstein
VAI ACABAR
Ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. Não, ela não está se referindo ao fogo, refere-se ao que sente. O que sente nunca dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. Encarniça-se então sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja. Então, ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem, e ao prendê-la nas suas, ela doce arde, arde, flameja.
(...)
Clarice Lispector
domingo, 23 de novembro de 2014
POÉTICA DO IR
A experiência poética dissolve o chão da linguagem. Restrita às eruditas teses acadêmicas, é, em geral objeto de deleite narcísico e linha de poder. No entanto, tornada poética do cotidiano, produz um abalo sísmico que traz um universo áspero, sem pouso para transcendências.O mundo é esse, o mundo é isso... A poesia, como natureza do real, avança sobre sensibilidades tímidas e morais, daí fazendo o seu trabalho de rescaldo da miséria humana, mas como um grito de alegria. Apesar de tudo.
A.M.
ESCREVER...
(...) Porque escrever significa revelar-se em excesso, a máxima revelação e entrega de si mesmo, na qual um ser humano, ao estar envolvido com outros, sentiria estar perdendo-se de si, e da qual, assim, ele sempre irá recuar enquanto estiver em seu juízo perfeito. É por isso que nunca se está sozinho o suficiente quando se escreve, nunca haverá silêncio o suficiente quando se escreve, nem a noite é noite o bastante.
(...)
Franz Kafka
sábado, 22 de novembro de 2014
CONTO DE FADAS DO SÉCULO XXI
Era uma vez, numa terra muito distante uma linda princesa independente e cheia de auto-estima que, enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago de seu castelo estava de acordo com as conformidades ecológicas, se deparou com uma rã. Então a rã pulou no seu colo e disse:
- Linda princesa, eu já fui um príncipe muito bom. Uma bruxa má lançou-me um encanto e transformou-me nessa rã asquerosa. Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo e poderemos casar e constituir um lar feliz em teu lindo castelo. A minha mãe pode vir morar conosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavarias as minhas roupas, criarias os nossos filhos e viveríamos felizes para sempre!
Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã à sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria e pensava:
“NEM FUDENDO”
Luis Fernando Veríssimo
VOCÊ JÁ BEIJOU UMA PANTERA?
essa mulher pensa que é uma pantera
e às vezes quando fazemos amor
ela rosna e funga
e seus cabelos se soltam
e por trás deles ela me olha
e me mostra suas presas
mas eu a beijo de qualquer jeito e continuo amando.
você já beijou uma pantera?
você já viu uma pantera fêmea se deliciando
com o ato do amor?
você nunca amou, meu amigo.
você com suas esquilas e tâmias
e elefantas e ovelhas.
você tem que dormir com uma pantera
você nunca mais vai querer
esquilas, tâmias, elefantas, ovelhas, raposas,
carcajus,
nada mais a não ser a pantera fêmea
a pantera fêmea atravessando o quarto
a pantera fêmea atravessando a sua alma,
todas as outras canções de amor são mentiras
quando aquela pele macia e escura vier em sua direção
e o céu desabar sobre suas costas,
a pantera fêmea é o sonho se realizando
e não há volta
ou desejo de –
aquela pele sobre a tua,
a busca terminada
e você aprisionado nos olhos de uma pantera.
Charles Bukowski
IMPESSOAL
O que se chama de "pessoa" é uma designação de origem cristã. Essencialmente busca formatar as multiplicidades desejantes que circulam livres no corpo. Ora, ser considerado uma "boa pessoa" ou uma "pessoa normal" é um dos objetivos do Senso Comum, instituição poderosa à serviço dos modos de subjetivação estáveis. Ele conta com a gregariedade do ser humano (gostar de ser amado, administrado, cuidado, etc) para convencer. E convence. Contudo, numa clínica da diferença em psiquiatria, há um completo desprezo por tais conceitos que, é claro, implicam em práticas concretas. Assim, para além de um conformismo clínico , teoricamente raso, embutido e adotado pelo universo psi, o paciente é visto como multiplicidade querendo se expressar, produzir, inventar a si e ao mundo. Não é fácil...
A.M.
NÃO-SABER
O diploma serve apenas para constituir uma espécie de valor mercantil do saber. Isto permite também que os não possuidores de diplomas acreditem não ter direito de saber ou não serem capazes de saber. Todas as pessoas que adquirem um diploma sabem que ele nada lhes serve, não tem conteúdo, é vazio. Em contrapartida, os que não têm diploma dão-lhes um sentido pleno. Acho que o diploma foi feito precisamente para os que não o têm.
Michel Foucault
A DECADÊNCIA
A nossa sociedade ocidental contemporânea, apesar do seu progresso material, intelectual e político, dirige-se cada vez menos para a saúde mental, e tende a sabotar a segurança interior, a felicidade, a razão e a capacidade de amor no ser humano; tende a transformá-lo num autômato que paga o seu fracasso com as doenças mentais cada vez mais frequentes e desespero oculto sob um delírio pelo trabalho e pelo chamado prazer.
Aldous Huxley in Admirável Mundo Novo,1932
sexta-feira, 21 de novembro de 2014
DESAFETOS
O saber psiquiatrico não dispõe de uma teoria dos afetos. Este dado ( facilmente constatável em compêndios e manuais da especialidade) parece irrelevante para a prática clínica (psicopatológica). Ora, isso não é verdade, pois os afetos são a instância que "garante" o vínculo terapêutico. Esse importante conceito foi estabelecido por pesquisas (sistemáticas) de Freud (e de outros autores como Espinosa, Nietzsche, Deleuze etc) a partir do funcionamento do desejo. Na atualidade, contudo, a maioria dos psiquiatras "trata" do seu paciente enfiando-lhe remédios e ordens embutidas em micro-poderes. Ninguém nota a matança de subjetividades...
A.M.
DESIMPORTANTE
Primeiro levaram os negros, Mas não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários, Mas não me importei com isso. Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis, Mas não me importei com isso, porque eu não sou miserável. Agora estão me levando. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo.
Bertolt Brecht
PROCURA DA POESIA
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Carlos Drummond de Andrade
IMPÉRIO DA MENTIRA
Em tempo de delação premiada, verdades e mentiras se misturam e se confundem. Mentir, todo mundo mente, mesmo sem maldade ou intenção de enganar, pelo menos 200 vezes por dia, dizem pesquisas neurológicas recentes.
Sejam inocentes, triviais, piedosas, cínicas, covardes, venenosas, fatais ou criminosas, mentiras são da condição humana. Já os psicanalistas dizem que todos mentem, mas, quando a pessoa começa a mentir a si mesma, e a acreditar, não vale a pena continuar.
Entre a mentira e a ficção, entre a memória e a imaginação, vivem escritores e publicitários, historiadores e artistas, jornalistas e marqueteiros, e também as crianças e adultos que se igualam diante do maior perigo: acreditar nas próprias mentiras.
Marqueteiros políticos são uma espécie moderna de mentirosos profissionais de alta performance, que são mais eficientes quando distorcem fatos e números e ampliam supostos defeitos e suspeitas sobre os adversários.
O problema é o candidato vencer as eleições e continuar acreditando na campanha do marqueteiro, mesmo diante da realidade adversa dos fatos e dos números.
E mais ainda se vive cercado e isolado por assessores que adequam suas mentiras às dele e não ousam desmenti-lo, mentindo assim duplamente.
Mentiras sinceras interessam a poetas amorosos como Cazuza, mas não funcionam e custam caro na economia. O poeta pode fingir tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente, mas políticos são diferentes, mentem mais friamente.
No autoengano, eles põem a culpa nos adversários ou no governo anterior. E na imprensa. E apelam à ancestral mãe de todas as mentiras: “Eu não sabia.”
Mas Lula nunca acreditou nas suas próprias mentiras, que são tão abundantes e mutantes que contradizem umas às outras, mas sempre funcionaram no objetivo de enganar os políticos e o povo. Claro, para o bem do povo e do Brasil… rsrs.
Será estarrecedor se Dilma continuar acreditando no mundo maravilhoso de João Santana e deixar de fazer o que tem que ser feito e que ela dizia que os outros fariam. Como solucionar problemas sem reconhecer que eles existem? Nem mentindo.
Nelson Motta, O Globo,21.11.2014,17,28 hs
A VIDA,SEMPRE ELA
Porque, se quisermos comparar a vida a alguma coisa, temos de equipará-la a ser levada pelo metrô a oitenta quilômetros por hora - desembarcando no outro extremo sem um único grampo no cabelo! Lançada totalmente nua aos pés de Deus! De pernas para o ar nas campinas de asfódelos como embrulhos de papel pardo jogados, no correio, pela calha abaixo! Com o cabelo voando para trás como o rabo de um cavalo de corrida. Sim, isso parece expressar a rapidez da vida, o gasto perpétuo e a perpétua recuperação; e tão por acaso, tão a esmo...
Virginia Woolf in A Marca na Parede
SIGNOS POR TODA PARTE
Uma amor medíocre vale mais do que uma grande amizade: porque o amor é rico em signos e se nutre de interpretação silenciosa. Uma obra de arte vale mais do que uma obra filosófica, porque o que está envolvido nos signos é mais profundo que todas as significações explícitas; o que nos violenta é mais rico do que todos os frutos de nossa boa vontade ou de nosso trabalho aplicado; e mais importante que o pensamento é "aquilo que faz pensar".
(...)
Gilles Deleuze in Proust e os signos
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