DE SURPRESA EM SURPRESA
Há poucos dias, o ministro do STF Luís Roberto Barroso nos instigou a refletir. Falando do mensalão (e o mesmo vale para o petrolão), frisou que o que mais lhe chamou a atenção em todo o caso foi que nenhum dos condenados, em momento algum, revelou arrependimento, culpa sincera ou achou que devia desculpas ao país. Todos se acham vítimas — quando não heróis, guerreiros do povo brasileiro. Acima das leis que valem para os outros. E, espanto dos espantos! Há quem queira lhes dar crédito.
Nenhum se arrependeu. Nenhum sentiu vergonha. Desmentiram Freud, para quem a vergonha, ao causar uma reação involuntária no corpo — o rubor — mostra ser tão forte quanto o desejo sexual ou o asco, que não conseguem controlar as reações físicas que despertam. Mas nossos “heróis” não têm vergonha, não se arrependem, não reconhecem que fizeram nada errado. São juízes de si mesmos e se absolvem.
Isso é surpreendente. Mas os escândalos em série não chegaram a surpreender ninguém. Você se surpreendeu ao saber que houve corrupção numa estatal? Ou ao saber que ela envolveu empreiteiros e funcionários pagos com seu dinheiro? A ingenuidade brasileira não chega a tanto. Aceitava essa existência como parte do aparelhamento. Algo inevitável, que se varre para baixo do tapete ou se faz de conta que não há.
Quando agora se fala em corrupção espantosa, o espanto não é porque ela existiu. É com o montante dos valores, o caráter sistemático, a alta hierarquia dos envolvidos, a sua ligação direta com quadros partidários. E com a investigação equilibrada que não entornou antes da hora, não fez estardalhaço prematuro antes das eleições de modo a tumultuar o pleito, administrou bem as delações premiadas, se escorou em informações confiáveis sobre o dinheiro, checou dados com o exterior, talvez recupere parte do prejuízo. E parece caminhar por partes, um passo de cada vez, só indo para a etapa seguinte quando já amarrou a anterior com alguns nós bem apertados.
Mas surpresa? A esta altura não nos surpreendemos facilmente — afinal, vemos corruptos falando em cultura da corrupção, lembrando que todo mundo sempre fez isso, invocando que então se puna o alegado crime de ontem. Quer dizer, tudo nos conformes, a reforçar a versão de que só se faz o que sempre se fez, nada de mais.
No entanto, mais acusados estão colaborando e revelando mais tenebrosas transações a um país estupefato, chamado a pagar a conta. Para respeitáveis observadores, dois fatores contribuem para isso. O primeiro é que o julgamento do mensalão, um ponto fora da curva, rompeu com a tradição de impunidade total e, como lembrou o mesmo ministro Barroso, “foi capaz de condenar e prender o presidente do partido político que se encontrava no poder e seu ministro mais influente”. Além disso, a sociedade vê que operadores ainda têm de cumprir longas penas, enquanto políticos poderosos, por vezes condenados a mais de dez anos, já obtiveram progressão de regime (como a lei garante), estão em casa, e até viajam. Portanto, é compreensível que as famílias de investigados agora pressionem seus chefes a colaborar, para que não paguem o pato sozinhos depois que os políticos escaparem.
E os que mandam em tudo? Não têm mesmo culpa nenhuma? Nenhuma responsabilidade? Não sabiam de nada? Reconhecem que perderam a autoridade e foram enganados por subalternos que lhes davam relatórios fajutos enquanto praticavam malfeitos? Serão culpados apenas de incompetência e boa-fé? Ou sinceramente acreditavam que em nome de interesses mais altos para o país deviam fechar os olhos? Que interesses? Seu projeto de poder? A infalibilidade da causa e do projeto que defendem? Querem que o povo aceite que há um teto de corrupção inerente ao sistema e propõem uma espécie de franquia para isso? De quanto acham que seria palatável? Ou será que se envergonham?
Seria bom se também pudessem ver o que já está claro para muitos. Que governar bem não é ocupar todos os espaços para garantir votos no Congresso. Que campanhas eleitorais não devem pagar fortunas a marqueteiros para construir imagens. Que a reforma política inevitável não precisa jogar montes de alternativas no ventilador e manipular o eleitorado num plebiscito complexo que misture tudo e dificulte a alternância de poder.
Pode-se começar com mudanças mais simples: campanhas mais curtas, mais debates diretos e menos partidos. A Justiça já nos deu importante lição no decorrer desse longo vexame que vem do mensalão e se esparrama agora no petrolão: mostrou que culpado, mesmo poderoso, pode ir para a cadeia. Cabe a todos nós, agora, debater mudanças viáveis e imediatas na legislação eleitoral. Precisamos eleger gente melhor. Respeitadora do artigo único que a Constituição deveria ter, segundo Capistrano de Abreu:
— Todo brasileiro fica obrigado a ter vergonha.
Ana Maria Machado, O Globo, 29/11/2014
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