sábado, 30 de maio de 2015

O REAL É A MULTIPLICIDADE

(...) O uno e o múltiplo são conceitos do entendimento que formam as malhas frouxas demais de uma dialética desnaturada, dialética que procede por oposição. Os maiores peixes passam através dessas malhas. É possível acreditar que se agarra o concreto quando se compensa a insuficiência de um abstrato com a insuficiência de seu oposto? Pode-se dizer durante muito tempo que "o uno é múltiplo e que o múltiplo é uno" - fala-se como esses jovens de Platão, que não poupavam nem a ralé. Combinam-se os contrários, obtém-se a contradição; em nenhum momento se diz o importante, "quanto", "como", "em que caso". Ora, a essência nada é, ou é uma generalidade oca, quando separada desta medida, desta maneira e desta casuística. Combinam-se os predicados, perde-se a Ideia - discurso vazio, combinações vazias em que falta um substantivo. O verdadeiro substantivo, a própria substância, é "multiplicidade", que torna inútil tanto o uno quanto o múltiplo. A multiplicidade variável é o quanto, o como, o cada caso. Cada coisa é uma multiplicidade na medida em que encarna a Ideia. Mesmo o múltiplo é uma multiplicidade; mesmo o uno é uma multiplicidade. Que o uno seja uma multiplicidade (como também foi mostrado por Bergson e Husserl), eis o que basta para destituir de razão propostas de adjetivos do tipo o uno-múltiplo ou o múltiplo-uno. Em toda parte, as diferenças de multiplicidades e a diferença na multiplicidade substituem as oposições esquemáticas e grosseiras. Há tão somente a variedade de multiplicidade, isto é, a diferença, em vez da enorme oposição do uno e do múltiplo. E talvez seja uma ironia dizer: tudo é multiplicidade, mesmo o uno, mesmo o múltiplo. Mas a própria ironia é uma multiplicidade ou, antes, a arte das multiplicidades, a arte de apreender nas coisas as Ideias, os problemas que elas encarnam, e de apreender as coisas como encarnações, como casos de solução para problemas de Ideias. 
(...)
Gilles Deleuze in Diferença e Repetição

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