quinta-feira, 30 de abril de 2020

ESCURO E SEM RUMO

A barulhenta troca no comando do Ministério da Saúde agravou as lacunas nas informações públicas importantes sobre a crise do coronavírus e fragilizou a interlocução da pasta com Estados e municípios (responsáveis por executar as estratégias de saúde na ponta). Isso no momento mais sério em que o Brasil elevou a curva de infectados e óbitos, e já caminha para seguir o quadro da Espanha, Itália, ou Estados Unidos. Somente após os primeiros dez dias de gestão de Nelson Teich, o novo ministro começou a se pronunciar mais seguidamente sobre o tema. O ministro e sua equipe apresentaram novos dados em dois detalhados boletins e tentaram aplacar o apagão de informações que se desvela sobre a epidemia no país, mas estão longe de tirar todas as dúvidas. Dois meses depois de detectar o primeiro caso de coronavírus, o Brasil ultrapassou o número de mortos contabilizado oficialmente pela China —já são ao menos 5.466 as vítimas brasileiras—, e pelo segundo dia consecutivo somou nesta quarta-feira mais de 400 óbitos novos à contagem. Números oficiais, sem contar os dados que estão sendo subnotificados. Tudo isso enquanto ainda não tem, por exemplo, um desenho do tamanho real da epidemia que já estressa os sistemas de saúde público em vários Estados.

A projeção do estudo do Imperial College de Londres prevê que o total de mortes chegará perto de 10.000 no Brasil já neste final de semana, e compara a curva do Brasil à dos Estados Unidos, onde já morreram quase 60.000 mortos desde o início da pandemia no final de fevereiro. Enquanto isso, o Governo também não apresenta à sociedade a estrutura de saúde global e atualizada que está em funcionamento e disponível para receber os pacientes mais graves com a doença, que, na falta de um medicamento capaz de curá-los, necessitam de aparelhos específicos para conseguirem respirar até superarem a fase mais aguda da infecção. “Quando vai ser o pico? Não sei e ninguém sabe. Um dos grandes problemas de se definir uma data é que aquela sugestão se transforma em promessa de um dado real. Quando aquilo não acontece, todo mundo começa a se perguntar se a gente não está fazendo algo errado apenas porque não deu certo a data”, disse Teich nesta quarta, numa audiência virtual com senadores. O ministro tem evitado falar em projeções e criticado estudos mundiais sobre o tema, embora tenha admitido nesta semana um “agravamento" da crise.
(...)

Beatriz Jucá e Joana Oliveira, El País, São Paulo, 30/04/2020, 10:39 hs

quarta-feira, 29 de abril de 2020


Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


Carlos Drummond de Andrade
A DIFERENÇA NA SAÚDE MENTAL - IV

O conceito de loucura norteia o trajeto da diferença num campo (a clínica) que por natureza é desconcertante. Não tem "norte". A sua densidade existencial é regida e composta pelo caos. Isso não significa a crença em "algo ruim"que estaria como um fantasma assombrando as ações humanas. Ao contrário, o caos constitui a diferença exatamente em função das linhas de multiplicidade a brotarem pelos quatro cantos do mundo. Se a saúde mental prioriza a potência de existir (sua ética mais profunda) ela se acha ligada a uma opção política no nascedouro das práticas. Somente a experiência da loucura, vista como processo a um tempo dilacerante e libertador da alma escrava, torna possível ao técnico em saúde mental evadir-se de si mesmo, sair de si, escapar do medo, dar o fora, em prol do Encontro com o outro, o paciente. A diferença é o puro movimento que impulsiona o encontro para além dos enquadres clínicos demasiado conhecidos. No entanto, sabemos, aí reside o perigo da desestabilização brutal da subjetividade. Contra isso, o trabalho da diferença utiliza critérios de aumento ou diminuição das forças de criação, tanto no paciente quando no técnico que o atende. Uma espécie de "termostato" da potência de criar.

A.M.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

SUICÍDIOS EM ALTAMIRA

Ela só lembra que gritou. Foi um grito que tomou conta de tudo, abarcou todo o movimento ao redor, fez com que as pessoas e as coisas em torno dela desaparecessem. E então tudo escureceu. Ela estava indo em direção ao corpo dilacerado do filho para abraçá-lo uma última vez. O adolescente de 17 anos enviara uma mensagem pedindo desculpas por tirar a própria vida, e ela, parentes e amigos corriam pelas ruas de Altamira para tentar impedi-lo. Um tempo sem tempo, como ela lembra, uma corrida contra um relógio desconhecido. E então um corpo fez seu voo vertical para o chão. O adolescente havia se atirado de uma torre construída dentro de uma escola. Quando gritou, a mãe sabia que tinha perdido. O urro de dor emergiu de dentro dela para dar conta da escuridão que desde 9 de fevereiro a acompanha.

Até este momento —27 de abril— nenhuma pessoa morreu por covid-19 em Altamira, no Pará. Mas, de janeiro até hoje, 15 pessoas se suicidaram, segundo o Centro de Perícias Científicas Renato Chaves, da Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado do Pará: 9 deles eram jovens entre os 11 e os 19 anos, uma tinha 26 anos e os outros cinco variavam dos 32 aos 78 anos. A média no Brasil, segundo o DataSus, é de 6 suicídios a cada 100.000 habitantes. Altamira tem uma população estimada em 115.000. O número de mortes de 2020 coloca a cidade amazônica, em menos de quatro meses, com quase o triplo da média brasileira anual de suicídios —e já é igual ao total de 15 mortes autoinfligidas registradas no município durante o ano inteiro de 2019. Mesmo para um país que tem testemunhado o aumento do número de suicídios na juventude, as estatísticas de Altamira são alarmantes. Sem apoio do poder público, os movimentos sociais fazem um mutirão para impedir mais mortes. A pergunta que atravessa a população é: por quê? E por que agora?
(...)

Eliane Brum/Clara Glock,  El País, 27/04/2020, 17:18 hs

COMO AGIR

Na psicopatologia clínica, o delírio se expressa de múltiplas formas. A intervenção da psiquiatria (técnica) sobre o dito delirante vai depender do contexto institucional. De todo modo, um paciente sob o risco de sofrer e/ou causar danos em torno implica numa decisão operacional delicada. Outro paciente, ancorado num sistema delirante em busca de satisfações místicas, por exemplo, demanda outro tipo de intervenção, ou mesmo a não-intervenção. E outros, muitos outros, com mil linhas de diferença subjetiva, escapam às padronizações toscas da psiquiatria biológica. Então, na psicopatologia do delírio, a hora da "verdade" se insinua como o momento agudo de fazer algo pelo paciente, seja para além dos devaneios românticos (" a paixão do delírio"), seja fora dos eixos da violência manicomial ("prendam o delirante!").  É sempre uma tarefa a pensar-pensando quando alguém delira e não "sabe" que delira. Como agir?

A.M.

domingo, 26 de abril de 2020

LOUI JOVER


Quero ficar só. Gosto muito das pessoas, mas essa necessidade voraz que às vezes me vem de me libertar de todos. Enriqueço na solidão: fico inteligente, graciosa e não esta feia ressentida que me olha do fundo do espelho. Ouço duzentas e noventa e nove vezes o mesmo disco, lembro poesias, dou piruetas, sonho, invento, abro todos os portões e quando vejo a alegria está instalada em mim.
(...)

Lygia Fagundes Telles
Uma prece pelos rebeldes de coração enjaulados.

Tennessee Williams

QUERIDO DIÁRIO:


Eu parto com o ar – sacudo minha neve branca ao sol que foge
Desfaço minha carne em redemoinhos de espuma,
Entrego-me ao pó para crescer nas ervas que amo;
Se queres ver-me novamente, procura-me sob teus pés.
Dificilmente saberás quem sou ou o que significo;
Não obstante serei para ti boa saúde
E filtrarei e comporei teu sangue.
E se não conseguires encontrar-me, não desanimes;
O que não está numa parte está noutra
Em algum lugar estarei à tua espera.


Walt Whitman
TEMAS EM PSICOPATOLOGIA CLÍNICA - 3

Os delírios em psicopatologia costumam ser percebidos conforme o ideário positivista da ciência (psiquiatria biológica) ou do humanismo crônico das ciências humanas (psicologia e afins). Deste modo, a medicina psiquiátrica quer deletar o sintoma e a psicologia clínica quer compreendê-lo. Nem uma coisa nem outra são possíveis. Trata-se de uma falácia epistemológica disfarçada de boas intenções. Os delírios assombram as consciências vigis e vigilantes. É que eles se referem a modos de subjetivação secretados pelo mundo e ultrapassam a divisão bem/mal em prol da construção de territórios de verdade. "Um pouco de verdade senão eu sufoco!" Assim, é possível "sentir-se vivo" mesmo que tudo em volta esteja em decomposição. Os delírios são, portanto, "verdades verdadeiras" mesmo que não sejam. Isso não importa, pelo menos a nível da escuta do paciente. A sua função social está inscrita nas entranhas de um "inconsciente órfão, ateu, anarquista" (Deleuze-Guattari, 1972) à flor da pele, à flor do tempo, à flor do desejo, à flor do socius e coextensivo a todas as expressões humanas. Então o eu se volatiza e o delírio o substitui. Se todos deliram (e deliram!) não significa que todos estão loucos, mas que correm e se debatem numa megaloucura insubornável, assim como como contra a morte. Os tempos atuais estão revelando, mormente em comunicações/informações midiáticas, essa verdade: o mundo torna-se, em velocidades aceleradas, um hospício planetário de portas abertas.

A.M.

sábado, 25 de abril de 2020

João Bosco no #SescAoVivo, a partir das 19h - 25/04/2020

FASCISMO EXPLÍCITO

Durante a coletiva sobre a saída de Sergio Moro, o presidente Jair Bolsonaro mencionou o nome da cientista política carioca Ilona Szabó. No começo do ano passado, o ex-ministro a nomeou para o cargo de suplente no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, um órgão composto por membros da sociedade civil. Assim que soube da indicação, Bolsonaro a exonerou. No discurso desta sexta feira, 24 de abril, Bolsonaro disse que Ilona era “abortista" e defendia a "ideologia de gênero”. Presidente do Instituto Igarapé, Ilona tem ampla experiência e respaldo internacional no estudo e atuação de questões de segurança pública. Em entrevista a Marie Claire, ela conta que precisou deixar o país também em função de ataques e perseguições que extrapolaram as redes sociais. Aproveitou a oferta de uma bolsa de estudos e  mudou-se para Nova York, onde dedicou-se ao estudo das perseguições virtuais e concluiu: “há um fechamento do espaço cívico no Brasil". 

Marie Claire: Hoje o presidente Jair Bolsonaro disse que você era abortista e defensora da ideologia de gênero, como se defender a legalização do aborto e debater questões de gênero fosse um problema. Como recebeu essas palavras?
Ilona Szabó: Impressionante porque é a segunda vez que ele faz isso. Prefere citar temas que não são minhas pautas de trabalho. Também não sei o que é ideologia de gênero, gostaria que alguém me explicasse. O presidente sabe claramente quais são as minhas posições. Temos muitos pontos de diferença e o principal deles é o controle de armas. Trabalho pela regulação responsável de armas. E acho que ele faz isso, especialmente com mulheres, para jogar outros grupos que tem posições mais radicais contra a gente. Tem um grupo forte, do lobby das armas, das pessoas que acham que armar todo mundo é um caminho, ele quer juntar mais gente para me perturbar nas redes sociais. Obviamente isso não fica só nas redes sociais.

MC: Você já recebeu outros ataques provocados por falas do presidente? E de que maneira os ataques extrapolaram as redes sociais?
IS: Sou alvo de ataques há bastante tempo, mas eles ficaram piores a partir de 2017. Vi animosidades em um lugares públicos, indo pegar uma ponte aérea, eventos. Mas infelizmente no governo Bolsonaro os ataques têm outros desdobramentos. Tivemos que tomar uma série de medidas de segurança no Instituto Igarapé, mudar a sede. Fui passar um tempo fora do Brasil, fazer um fellowship. Eu já queria fazer uma reflexão, mas a questão de não conseguir fazer uma análise de risco da segurança da minha família, das pessoas que trabalham comigo, provocou essa mudança. Tive oportunidade de fazer uma pesquisa sobre o fechamento do espaço cívico no Brasil. Conversei com pessoas: jornalistas, artistas, gente havia saído do governo, para saber dos desdobramentos dos ataques online na vida pessoal delas. E são muitos. Inclusive porque tem chantagens, intimidações, outro tipo de monitoramento que nos coloca em um momento bastante crítico. Os ataques não são só online, vão para a vida pessoal, institucional e profissional.
(...)

Maria Laura Neves, Marie Claire, do Home Office, 25/04/2020, 00:25 hs

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Sou apenas um bloco de pedra para mim mesmo. Quero ficar dentro desse bloco, sem ser perturbado. Foi assim desde o começo. Resisti a meus pais, resisti à escola e depois resisti a tornar-me um cidadão decente. O que quer que eu fosse, fui desde o começo. Não queria que ninguém mexesse com isso. E ainda não quero.

Charles Bukowski

quinta-feira, 23 de abril de 2020

A PASSAGEM

Há um limite a partir do qual a diferença não se reconhece e não mais reconhece o mundo. Um horror tão extremo e definitivo se instala: ela, a diferença, torna-se pequena e frágil. Tudo o indica. Fala-se da história da humanidade: uma brochada cósmica. A diferença não mais reconhece aí a palavra "vida" por entre escombros da própria vida. Resta o império do medo. Internético, ele assombra o dia que nasce. Assombra todas as revoluções. Nivela os afetos. Aniquila a política. Uma melancolia compõe a paisagem dos monstros da História. E os adorna. E os adora. Seguidores idiotizados nutrem-se da morte camuflada. Anunciam o fim, apocalipse moderno. No entanto, algo resiste... 

A.M. 

ÖZGUR BABA - Dertli Dolap

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Isolamento na Califórnia salvou quase 5 mil pessoas

O centenário centro privado de estudos NBER divulgou o 1º estudo sobre o impacto do isolamento de três semanas na Califórnia, em vidas e empregos.
Diz que as medidas adotadas reduziram o número de casos entre 152.443 a 230.113, e o de mortes entre 1.940 a 4.951. Mas, para cada caso evitado, a proporção é de dois a quatro empregos perdidos. No caso das mortes, a relação é de 113 a 300 empregos perdidos por cada óbito evitado.
É, sem dúvida, uma tragédia, de saúde e econômica. Mas os autores lembram que muitos dos empregos serão perdidos só temporariamente. Já uma vida não tem volta. Nem preço.
(...)

Ancelmo Gois, O Globo, 22.04.2020, 06:30 hs

terça-feira, 21 de abril de 2020

viagem

se eu pudesse
botava o pé na lua
andava entre as crateras
da face oculta



Líria Porto
ALEGRIA DO DESEJO

A figura mais recente do padre é o psicanalista com seus três princípios: Prazer, Morte e Realidade. Sem dúvida, a psicanálise mostrou que o desejo não se submetia à procriação nem mesmo à genitalidade. Foi este o seu modernismo. Mas ela conservava o essencial, encontrando inclusive novos meios para inscrever no desejo a lei negativa da falta, a regra exterior do prazer, o ideal transcendente do fantasma. Por exemplo, a interpretação do masoquismo: quando não é invocada a ridícula pulsão de morte, pretende-se que o masoquista, como todo mundo, busca o prazer, mas só pode aceder a ele por intermédio das dores e das humilhações fantasmáticas que teriam como função apaziguar ou conjurar uma angústia profunda. Isto não é exato; o sofrimento do masoquista é o preço que ele deve pagar, não para atingir o prazer, mas para desligar o pseudo liame do desejo com o prazer como medida extrínseca. O prazer não é de forma alguma o que só poderia ser atingido pelo desvio do sofrimento, mas o que deve ser postergado ao máximo, porque seu advento interrompe o processo contínuo do desejo positivo. Acontece que existe uma alegria imanente ao desejo, como se ele se preenchesse de si mesmo e de suas contemplações, fato que não implica falta alguma, impossibilidade alguma, que não se equipara e que também não se mede pelo prazer, posto que é esta alegria que distribuirá as intensidades de prazer e impedirá que sejam penetradas de angústia, de vergonha, de culpa. Em suma, o masoquista serve-se do sofrimento como de um meio para constituir um corpo sem órgãos e depreender um plano de consistência do desejo. Que existam outros meios, outros procedimentos diferentes do masoquismo e certamente melhores é outra questão; o fato é que este procedimento convém a alguns.
(...)

G. Deleuze e F. Guattari in Mil Platôs.
ESCRAVOS DA VERDADE

Pensadores como Nietzsche, Foucault, Deleuze, Guattari, entre outros, há tempos escreveram sobre a questão da verdade. E continuam atuais.  Num universo midiático e internético a verdade é produzida de forma rigorosamente técnica, circulando sem cessar por entre neurônios amedrontados e produzindo subjetividades em série. Um megacircuito eletrônico de informação/comunicação controla a alma do mundo e a forma da Terra. No fim das contas, mandos e comandos embutidos em imagens-enunciados adentram em todos nós (colonizando o inconsciente) a qualquer hora, em qualquer lugar, sob eficazes pretextos. Tal estado de coisas não é um mal em si porque não existe mal em si. A questão maior (como diriam os autores referidos) é a do poder. Qual ética? Qual política? Poder sobre a vida, de fazer a vida. Poder de fazer viver. Ora, você sabe, você bem nasceu e já lhe enfiam crenças que irão alicerçar as condições subjetivas para um bom escravo moderno. For ever.

A.M.

sábado, 18 de abril de 2020

Nunca soube por que tanta gente teme o futuro.
Nunca vi o futuro matar ninguém,
Nunca vi o futuro roubar ninguém,
Nunca vi nada que tivesse acontecido no futuro.
Terrível é o passado ou, pior, o presente!

Millôr Fernandes

SADE - Cherish The Day

sexta-feira, 17 de abril de 2020

confissão

eu teria sido puta
na maior boa vontade
faltaram-me os atributos
e também alguma audácia

(sempre achei as putas lindas
mas só faço amor de graça)


Líria Porto
ÉTICAS A CRIAR

A  ética é uma prática, uma ação. "Pensar" sobre a ética é já submetê-la ao estilo acadêmico do pensar representativo, reflexivo, idealista. Manuais de ética, códigos de ética: jogue tudo fora. O campo da saúde mental "exige" a construção de outras éticas. Do contrário cairá sob o poder do capital semiótico e econômico. Não há fórmulas. Arrisque, arrisque-se e saia do mofo da psiquiatria canônica. Não há mais referências de verdade. O próprio conceito de verdade esgotou-se. A loucura ensina...

A.M
MÁQUINA DE GUERRA, CIÊNCIA MENOR, NÔMADE

(...) Um corpo não se reduz a um organismo, assim como o espírito de corpo tampouco se reduz à alma de um organismo. O espírito não é melhor, mas ele é volátil, enquanto a alma é gravífica, centro de gravidade. Seria preciso invocar uma origem militar do corpo e do espírito de corpo? Não é o "militar" que conta, mas antes uma origem nômade longínqua. Ibn Khaldoun definia a máquina de guerra nômade por: as famílias ou linhagens, mais o espírito de corpo. A máquina de guerra entretém com as famílias uma relação muito diferente daquela do Estado. Nela, em vez de ser célula de base, a família é um vetor de bando, de modo que uma genealogia passa de uma família a outra, segundo a capacidade de tal família, em tal momento, em realizar o máximo de "solidariedade agnática". A celebridade pública da família não determina o lugar que ocupa num organismo de Estado; ao contrário, é a potência ou virtude secreta de solidariedade, e a movência correspondente das genealogias, que determinam a celebridade num corpo de guerra. Há aí algo que não se reduz nem ao monopólio de um poder orgânico nem a uma representação local, mas que remete à potência de um corpo turbilhonar num espaço nômade. Certamente é difícil considerar os grandes corpos de um Estado moderno como tribos árabes. O que queremos dizer, na verdade, é que os corpos coletivos sempre têm franjas ou minorias que reconstituem equivalentes de máquina de guerra, sob formas por vezes muito inesperadas, em agenciamentos determinados tais como construir pontes, construir catedrais, ou então emitir juízos, ou compor música, instaurar uma ciência, uma técnica... Um corpo de capitães faz valer suas exigências através da organização dos oficiais e do organismo dos oficiais superiores. Sempre sobrevêm períodos em que o Estado enquanto organismo se vê em apuros com seus próprios corpos, e em que esses, mesmo reivindicando privilégios, são forçados, contra sua vontade, a abrir-se para algo que os transborda, um curto instante revolucionário, um impulso experimentador. Situação confusa onde cada vez é preciso analisar tendências e pólos, naturezas de movimentos. De repente, é como se o corpo dos notários avançasse de árabe ou de índio, e depois se retomasse, se reorganizasse: uma ópera cômica, da qual não se sabe o que vai resultar (acontece até de gritarem: "A polícia conosco!"). 
(...)

G. Deleuze e F. Guattari in Mil Platôs, vol 5

OS FRACOS GOVERNAM O MUNDO

eleva_dor

a caixa que me sobe
do térreo ao nono andar

a caixa que me desce
do céu para o inferno

a caixa é uma escada
sem degrau

(a caixa federal)


Líria Porto

MINISTRO


quinta-feira, 16 de abril de 2020

O RITMO DA VIDA

Para quem testemunhou e/ou cultua a era do samba-jazz, vivida na efervescência das boates cariocas e paulistas da década de 1960, a morte do baterista e compositor Rubens Antonio Barsotti (16 de outubro de 1932 – 15 de abril de 2020), aos 87 anos, soou como nota especialmente desafinada.

Ocorrida na madrugada de quarta-feira, 15, na cidade natal do músico paulistano, em decorrência de complicações de operação no fêmur, a morte de Rubinho – como o baterista era conhecido e chamado no meio dos instrumentistas – repõe em pauta a maestria de músicos daquela geração na arte de tocar bateria.

Em bom português, na arte de manusear a bateria como refinada máquina de ritmo, proeza alcançada pelo autodidata Rubinho e por alguns poucos colegas de ofício como Dom Um Romão (1925 – 2005), Edison Machado (1934 – 1990) e Milton Banana (1935 – 1999). Não por acaso, todos esses ases foram bateristas ligados à bossa nova, matriz do samba-jazz.

Rubinho Barsotti saiu de cena para ficar na história como integrante da formação original do Zimbo Trio, grupo fundado em 1964 com Rubinho na bateria, Amilton Godoy no piano e Luiz Chaves (1931 – 2007) no baixo.
(...)

Mauro Ferreira, Globo.com, 16/04/2020, atualizado há 6 hs.


ANNA RAZUMOVSKAYA


quarta-feira, 15 de abril de 2020

UMA VACINA

A Covid-19 continua a se espalhar pelo Ocidente enquanto sua segunda onda atinge a Ásia. Com o número de mortos já acima de 100.000 e o número de infectados próximo de 2 milhões, parece cada vez mais claro que apenas uma vacina poderá devolver o mundo à normalidade. A corrida para encontrar a solução, sem esquecer sua dimensão propagandística, continua. Os projetos dos Estados Unidos e da China, que começaram seus testes clínicos no mês passado, continuam na liderança: o injetável do gigante asiático já está preparado para passar para a segunda fase.
É o que foi anunciado pela empresa responsável, a CanSino Biologics, na última quinta-feira. O projeto foi desenvolvido em colaboração com a Academia Militar de Ciências Médicas do Exército de Libertação Popular (EPL), as forças armadas chinesas. Os esforços no terreno foram dirigidos pela bioengenheira e general de brigada Chen Wei, que foi para Wuhan no final de janeiro. O resultado de seu trabalho é uma vacina de subunidade, uma fórmula de nova geração que só contém certos antígenos específicos sem patógenos, razão pela qual é considerada mais segura do que as técnicas tradicionais.
(...)

Jaime Santirso, El País, Pequim, 15/04/2020, 09:04 hs

terça-feira, 14 de abril de 2020

FALTA ESPÍRITO

A psicopatologia clínica não é a psicopatologia do cérebro. Tal obviedade escapa aos neuropsiquiatras estabelecidos e atolados ad aeternum no positivismo. É que eles estão cientificamente interessados nas sinapses, não mais que nas sinapses. Isso resulta num insulto à inteligência e se afirma como verdade a priori. Se você de fato encara a vida, só existe o espírito. E isso nada tem a ver com o espiritualismo. Só existe o espírito como o corpo ele próprio. Só há o corpo. Só há corpos. Corpos com corpos, corpos acoplados com corpos, corpos de corpos: o desejo. É desagradável ter que dizer coisas tão simples, já que entramos num devir-invisível, imperceptível, inclassificável, clandestino e maldito. Sem órgãos, sem moral, sem ideologia, sem esperança, sem religião. Apenas o Encontro como relação entre linhas existenciais heterogêneas.

A.M.

domingo, 12 de abril de 2020

(19 DE JANEIRO)

Até esta chegar às suas mãos
eu já devo ter cruzado a fronteira.
Entregue por favor aos meus irmãos
os livros da segunda prateleira,

e àquela moça —a dos "quatorze dígitos"-
o embrulho que ficou com teu amigo.
Eu lavei com cuidado o disco rígido.
Os disquettes back-up estão comigo.

Até mais. Heroísmo não é a minha.
A barra pesou. Desculpe o mau jeito.
Levei tudo que coube na viatura,

mas deixei um revólver na cozinha,
com uma bala. Destrua este soneto
imediatamente após a leitura.


Paulo Henriques Britto
MORTOS AO REDOR DA ALVORADA


O Brasil ultrapassou a marca de 20.000 pessoas infectadas pelo novo coronavírus neste sábado, o dobro em relação a uma semana atrás, segundo balanço diário do Ministério da Saúde sobre a pandemia. De sexta para sábado, houve uma queda nas mortes diárias ―68 óbitos nas 24 horas anteriores, uma desaceleração em relação à semana, quando chegaram a ocorrer 141 mortes em um único dia, na quinta. Entretanto, considerando o recorte de uma semana, o total de óbitos (que atingiu 1.124) é quase o triplo do sábado anterior, 4 de abril, quando o Brasil somava 432 vítimas da doença. Apesar dos números indicarem que a curva de infectados pela Covid-19 permanece em ascensão, o presidente Jair Bolsonaro voltou a ignorar as recomendações por distanciamento social, reforçadas neste sábado pela equipe técnica da Saúde.
Pelo segundo dia consecutivo, Bolsonaro reuniu aglomerações de pessoas a seu redor e, em visita às obras de um hospital de campanha em Águas Lindas de Goiás, cidade goiana próxima a Brasília, posou para fotos e abraçou apoiadores. Na sexta-feira Santa, em passeio pelas ruas da capital federal, já havia esfregado o próprio nariz antes de cumprimentar uma mulher idosa. A taxa de letalidade do vírus Sars-Cov-2 no país é de 5,4%, e o isolamento social é a principal medida para evitar a proliferação da doença.
(...)

Breiller Pires, El País, São Paulo, 11/04/2020, 21:21 hs

sábado, 11 de abril de 2020

A MEDICINA CURA? (VI)

A Medicina pode ser vista como uma instituição, ou uma forma social, ou uma forma de relação social. Há certas "vantagens" ao se adotar essa visão teórica: 1- Retira a medicina de um viés positivista ligado ao progresso da ciência, tornando-a prática social concreta, portanto, sujeita às forças sociopolíticas que a atravessam; 2-Considera o conceito de Saúde como condição para a existência da medicina e não o contrário. Ou seja, dissolve a equação medicina=saúde em prol de uma concepção da Saúde vinculada às determinações coletivas do organismo humano; 3- Faz desse último uma produção de linhas do poder (no estágio do capitalismo industrial) interessadas sobretudo na administração lucrativa da vida humana, proliferando sob a égide de biopoderes : produção da vida "normal"; 4-Concebe a medicina não como uma espécie de sacerdócio (tal como o romantismo a vê : "profissão linda!") mas tão apenas como uma atividade profissional na área da saúde, entre tantas outras. 5-Separa o médico da medicina. Ou seja, não basta ser um "bom médico" em termos técnicos, mas fazer do pensamento médico (se há) ou de algum pensamento, ferramenta conceitual para inventar éticas incompatíveis à lógica mortuária do capitalismo mundial integrado.

A.M.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

A vida é uma ferida?
O coração lateja?
O sangue é uma parede cega?
E se tudo, de repente?

Eduardo Pitta, 

LOUI JOVER


Uma prece pelos rebeldes de coração enjaulados.

Tennessee Williams
COVID E SAÚDE MENTAL - III

Com a pandemia o mundo mudou, ou mais precisamente, o mundo está mudando em direção a... quem sabe? O comportamento do vírus ainda está sendo estudado. Ele é muito veloz e competente. Mas é escasso o conhecimento sobre seus gostos e desgostos. Talvez por isso de todas as partes surja alguma opinião: "Cloroquina nele". Isso ecoa em milhões de ouvidos e olhos ansiosos por uma solução rápida e definitiva. Mas o essencial, vale repetir, é que não apenas o mundo mudou, mas algo está mudando. Todo o sistema produtivo mundial (material e subjetivo) está em cheque (ou em choque) frente a uma espécie de caotização das relações sociais. Estas incluem relacões políticas, técnicas, familiares, de vizinhança, trabalhistas, pessoais, amorosas, etc... chegando até a micro-relações consigo mesmo como no confinamento, ou mais radicalmente, na quarentena. Quem sou eu nesse lugar fechado? Só vejo a mim num imenso espelho "me protegendo do contágio com o mundo". No entanto, é possível criar modos de subjetivação (estilos de produzir um tempo ou o que fazer do tempo) que apontam para surpresas do que é viver para além de sobreviver.

A.M.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

O BAR LUVA DOURADA, direção de Fatih Akin, 2019

O QUE VIRÁ?

Nós, os que hoje estamos vivos, nunca enfrentamos uma ameaça como o novo coronavírus. Se tantos repetem que o mundo nunca mais será o mesmo, qual é então o mundo que queremos?

Ninguém se iluda. Enquanto a pandemia é enfrentada, essa resposta já está sendo disputada. É ela que vai determinar o futuro próximo. Lutar pela vida ameaçada pelo vírus é o imperativo da emergência. É preciso, porém, fazer algo ainda mais difícil: lutar pelo futuro pós-vírus. Se não o fizermos, a retomada da “normalidade” será a volta da brutalidade cotidiana que só é “normal” para poucos, uma normalidade arrancada da vida dos muitos que diariamente têm seus corpos esgotados. O rompimento do “normal”, provocado pelo vírus, pode ser a oportunidade para desenhar uma sociedade baseada em outros princípios, capaz de barrar a catástrofe climática e promover justiça social. O pior que pode nos acontecer depois da pandemia será justamente voltar à “normalidade”.

As grandes corporações já começam a se mover para garantir o controle do que virá. Na semana passada, as companhias de petróleo foram recebidas por Donald Trump na Casa Branca. Não foram discutir como salvar os mais pobres dos efeitos da pandemia. No Reino Unido, as companhias de aviação fazem lobby por subsídio governamental e, claro, desregulamentação. Tampouco elas foram se reunir para tomar chá e discutir investimentos na área social.

Diante do novo coronavírus, até baluartes da imprensa liberal, como The Economist e Financial Times, ambos nascidos no berço do capitalismo, têm anunciado que é preciso dar um passo atrás. Maior intervenção do Estado e políticas como renda mínima e taxação de fortunas, antes consideradas “exóticas” por esses segmentos, têm sido elencadas na abordagem do novo contrato social no mundo pós-pandemia. Conceder um pouco para garantir que nada mude no essencial é um truque antigo.
(...)

Eliane Brum, El País, 08/04/2020, 11:35 hs
Eclesiastes

Você bate na mesma tecla, repete
aquele surrado clichê: não há nada
de novo sob o sol. Mas quem garante
que isto é real, não um conto de fada?

 Nem tudo tem sido, como se tem ouvido,
a mesma coisa desde o começo
dos tempos. Não estou convencido.
Se há algo que não muda, desconheço.

Nem sempre o vento é sul, nem todo rio
segue pro mar. O que está acontecendo agora,
por exemplo, não era pra acontecer. Ora,
você nunca viu este filme. Fica frio:

Não há nada de novo sob o sol
só para o sol, que é sempre o mesmo.
Esta é a verdade toda, não se dissol-
ve numa rima ou pensamento a esmo.

Aqui embaixo, tudo muda, todo dia:
a moda, o medo, e mesmo a luz do sol
passa dias assim, arredia, e me arrepia
pensar que é diferente. Olha só:

Pare de ficar repetindo isso. Acorda. Mete
em sua cabeça de uma vez por todas:
nenhum sol se põe a oeste. E este
poema, eu sei, nem ele existe. É foda.


Divanize Carbonieri

segunda-feira, 6 de abril de 2020

As convicções são inimigos mais poderosos que as mentiras. É impossível expandir o pensar quando a mente está ancorada em opiniões intocáveis. Siga o exemplo dos estrategistas clássicos, militares inclusive.

Nietzsche
    

domingo, 5 de abril de 2020

APERTURE - Edward Clug (NDT 1 | Soir Historique)

A ARTE DO ENCONTRO

(...)
Todo encontro é marcado por contingências.  O coletivo “antecede” o socius  na produção de  subjetividades . Tudo  se mistura. Se  existe  algo  que escapa aos códigos  estáveis da  razão é o modelo do delírio (um anti-modelo na verdade) que  nos guia  e  impulsiona. Assim,  temos:  o coletivo=o delírio ( código  psiquiátrico  =  a psicose) numa série abstrata tornada concreta na  clínica ou em qualquer situação onde uma zona (existencial) de fronteira se mostre como realidade bruta. Essa é a questão dos campos vivenciais passíveis de contato. Eles são  heterogêneos por sua própria natureza. O contato imediato é com a aventura do Acaso,do Indeterminado e do Desconhecido. Desse modo, o encontro de um terapeuta com o seu  paciente  pode começar no “interior” de si mesmo, em meio  a múltiplos “eus”.  Subjetivo e objetivo se tocam e se trocam...Entramos e estaremos a entrar numa terra de ninguém, inumana, cósmica, via sem retorno, mundo  de Lovecraft. Para fazer uma clínica da  diferença, é preciso a não-clínica  que  com ela  produza territórios subjetivos concretos.Usando a equação  clínica=patológico, o técnico verá o paciente como coisa, ainda que uma coisa valiosa.  Ao contrário, o encontro busca o lado ativo do infinito, o processo, enfim, das  relações  sociais  e  coletivas. 
(...)

A.M. in Trair a psiquiatria
E AS CRIANÇAS?

Uma das crenças a respeito do novo coronavírus é a de que, enquanto os idosos formam um grupo de alto risco, as crianças estão protegidas. Mas essa narrativa traz perigos: embora sejam poucos, existem casos preocupantes de crianças e jovens com a saúde seriamente afetada pela infecção.

Assim como os adultos, crianças expostas ao vírus podem apresentar os sintomas da covid-19. A boa notícia é que a maioria dos casos parece não ter gravidade.
(...)

Por BBC,05/04/2020, atualizado há 52 min.

sábado, 4 de abril de 2020

ALEXIS SLUSAR


COVID E SAÚDE MENTAL - II


O vírus destrói não só o organismo humano, mas tudo o que está em volta: a produção da vida. O que está em volta é a produção social (econômica e semiótica) como o que antecede e determina a vida individual. A pandemia expôs cruamente e cruelmente o nervo da infelicidade subjetiva da modernidade triunfante: o voltar-se para um "mundo interior" quando não há "mundo interior". Há só uma maquinação de ilusões. Tudo está exposto, tudo sempre esteve exposto,e hoje, baseado na arrogância do humanismo cientificista (a ciência quer sempre o bem da humanidade) o discurso planetário do bem estar egóico cai de joelhos frente a um ser (vírus é vida? perguntam os doutos) tão pequenino. O estrago sobre a saúde mental contempla a todos, sejam os pacientes, sejam os que lidam com o paciente. No fim das contas, pacientes e não-pacientes já estão de fato atolados num território de dissolução de sentido. E sem respostas de cura.

A.M. 
Nasci para administrar o à-toa, o em vão, o inútil. Pertenço de fazer imagens. Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores, de pessoas com rãs, de pessoas com pedras, etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas. Preciso de obter sabedoria vegetal.(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.

Manoel de Barros

PAULO GHIRALDELLI

A DISSOLUÇÃO DO SENTIDO

Alain Touraine (Hermanville-sur-Mer, 1925) é um dos últimos sobreviventes de uma geração brilhante que marcou as ciências sociais e o pensamento ocidental desde meados do século XX até o início do XXI. Como sociólogo, seu campo de estudos abrangeu desde as fábricas que no pós-guerra elevaram o país à sociedade pós-industrial até os movimentos sociais e a crise da modernidade. Com suas intervenções no debate público —na França, mas também em outros países europeus, como a Espanha, e na América Latina—, Touraine se tornou uma referência do que em seu país chamam de segunda esquerda —de caráter social-democrata e claramente antitotalitária. O sociólogo conversou com o Ideias por telefone de sua quarentena em Paris.


PERGUNTA. Estamos em guerra, dizem Donald Trump, Emmanuel Macron e Pedro Sánchez. É correto?

RESPOSTA. Tecnicamente, quem enfrenta a guerra é um exército. Que invade o território do país B. São necessários pelo menos dois agentes e ocorre entre humanos. Aqui, em vez disso, o que vemos é o humano contra o não humano. Não critico o uso da palavra guerra, mas seria uma guerra sem combatentes. Não há estrategista: o vírus não é um chefe de Governo. E, do lado humano, acho que vivemos em um mundo sem atores.

P. Sem atores?

R. Nunca tinha visto um presidente dos Estados Unidos tão estranho como Donald Trump, tão pouco presidencial, um personagem tão fora das normas e fora de seu papel. E não é por acaso: os Estados Unidos abandonaram o papel de líder mundial. Hoje não já há nada. E na Europa, se você olhar para os países mais poderosos, ninguém responde. Não há ninguém no topo.
(...)

Marc Bassets, El País, 31/03/2020, 16:20 hs

sexta-feira, 3 de abril de 2020

MARISA MONTE - Para Ver As Meninas

PERGUNTAR  NÃO  OFENDE 

Pergunta - Qual o objeto da psiquiatria?

Resposta - O objeto da psiquiatria é a mente.

P- E o que é a mente?

R- A mente é um construto teórico envolvendo múltiplos saberes. Por esse motivo não há um consenso sobre "o que é a mente". Importa compreender que ela não é uma "coisa", não sendo possível visualizá-la, medi-la, etc. Ninguém nunca "viu" a mente de alguém. Para fins de pesquisa e intervenção prática (clínica), ela é um conjunto de processos subjetivos diretamente lincados com o ambiente social. Dito de outro modo, não existe a mente e depois o "social" e sim a dimensão social como constitutiva da mente. Se se pode falar de "essência", a mente é essencialmente composta de mil tipos de relações (sociais, familiares, humanas, institucionais, cósmicas, etc), todas incidindo no que se chama subjetividade. A subjetividade, portanto, vem de fora, vem do mundo.

P- E como a psiquiatria pesquisa e intervém sobre a mente?

R- Infelizmente, a psiquiatria oficial, biológica, acadêmica, manicomial, não pesquisa a mente. Não produz conhecimento. Quanto à intervenção prática, ela o faz sobre o cérebro e o comportamento social.  O primeiro, ela acredita fazer funcionar melhor. O segundo, ela acredita controlar.

P- Não entendi. Então, o objeto "dessa" psiquiatria não é a mente?

R- Não, não é.



A.M.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

MAIS E MAIS

Quero cruzadas e martírio. O mundo é demasiado pequeno para mim. O mundo é pequeno demais. Estou cansada de tocar guitarra, fazer malha, passear, parir crianças. Os homens são pequenos e as paixões são curtas. Irritam- me as escadas, as portas, as paredes, irrita-me o dia a dia que interfere na continuidade do êxtase. Existe pois o martírio - tensão, febre, da continuidade da vida - firmamento em perpétuo movimento e brilho total. Nunca se viram estrelas empalidecer ou cair. Nunca adormecem.
(...)

Anaïs Nin

Sonetilho de verão

Traído pelas palavras. 
O mundo não tem conserto. 
Meu coração se agonia. 
Minha alma se escalavra. 
Meu corpo não liga não. 
A ideia resiste ao verso, 
o verso recusa a rima, 
a rima afronta a razão 
e a razão desatina. 
Desejo manda lembranças. 


O poema não deu certo. 
A vida não deu em nada. 
Não há deus. Não há esperança. 
Amanhã deve dar praia.


Paulo Henriques Brito
O TEMPO NA PSICOTERAPIA

Na prática da psicoterapia aprendemos que o tempo é o tecido da vida. Este dado aparece muito claro no processo de mudança existencial que toda terapia, em maior ou menor grau, promove. Os modos de subjetivação (estilos de viver) tornam-se concretos na medida em que a experiência de si e do mundo se mistura ao tempo-desejo sem forma, numa palavra, aos devires incontroláveis. O corpo que não aguenta mais. Isso implica na abertura de linhas desejantes criadoras de sentido. Portanto, o tempo, assim como H. Bergson o definiu, "é criação ou não é nada". Uma psicoterapia, a que acolhe signos múltiplos oriundos da ciência, da filosofia e da arte, se instala em territórios refratários aos dilemas da consciência. Assim, para muito além da psicanálise, a qual explora ad nauseam um inconsciente representativo, edipiano e familiarista, o método da diferença capta afetos impossíveis de sonhar, mas passíveis de metamorfoses rumo a um outro viver. Isso impõe riscos. Contudo, há regras de prudência (cf. G. Deleuze) elaboradas no interior de uma ética da alegria e de uma estética do novo. Desfaz-se o tempo como alta do tratamento (conceito médico) para uma implicação profunda e inadiável do paciente com a sua própria alma, ou seja, consigo mesmo.


A.M.