Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
domingo, 31 de outubro de 2021
sábado, 30 de outubro de 2021
O que é saúde mental?
Trata-se de um conceito historicamente atrelado à medicina. Daí se prestar a um mal-entendido crônico.
É possível condensar tal fato numa negação simples: saúde mental não é a saúde do organismo humano, nem dos seus órgãos, sequer do cérebro.
Uma saúde da mente. Mas o que é a mente? Alguém já viu a mente de alguém? Como trabalhar com algo invisível?
A mente é invisível mas compreende uma realidade tão “real” quanto a dos objetos visíveis. Trata-se da realidade do desejo, dos afetos, dos sentimentos. Isso é a mente.
Ela não aparece, por exemplo, como imagem num exame de ultrassom. Inútil essa busca.
Ora, se os afetos são a mente, ela implica sempre numa relação com outras mentes e por extensão, com tudo que consiste o mundo.
O mundo consiste de mil tipos de relações: econômicas, familiares, sociais, institucionais, culturais, amorosas, religiosas, escolares, comerciais, etc.
Assim, é óbvio dizer que a mente não existe sozinha, isolada, já que está sempre em relação com algo ou alguém.
Temos, então, uma ideia calcada na vida concreta para pensar o conceito de “saúde mental”.
Saúde mental é um bem estar expresso na relação da mente com o mundo. Daí o mundo passa a estar incluido nos métodos (tratamentos) para se obter a saúde mental.
Em outras palavras, o objeto do tratamento em saúde mental não é o cérebro do paciente (como dizem os neuromaníacos), mas o mundo onde ele está e se relaciona. Sociólogos e assistentes sociais vêem isso de cara.
Atenção: em saúde mental é mais adequado (e útil) falar em “cuidado” ao invés de “tratamento.”
Esse modo de ver as coisas traz mudanças importantes na equipe técnica de um caps.O modo de acolher o paciente, o olhar agudo e crítico sobre as suas relações com o mundo e, por fim, mas não menos importante, os seus afetos.
O acolhimento diz respeito ao diagnóstico psicopatológico e às condições que o caps oferece como lugar do cuidado. A pergunta-chave: é possível ajudar esse paciente?
O olhar “agudo e crítico” refere-se à percepção da realidade em torno e no que ela dificulta (ou facilita) o cuidado. O exemplo da família é o mais imediato e simples.
Quanto aos afetos, começa com a pesquisa sobre o que o moveu a buscar ajuda, incluindo os (muitos) que não querem ajuda e são trazidos por terceiros.
A.M.
sexta-feira, 29 de outubro de 2021
Furtivo
quarta-feira, 27 de outubro de 2021
domingo, 24 de outubro de 2021
O GOSTO DA LUTA
A felicidade real sempre parece bastante sórdida em comparação com as supercompensações do sofrimento. E, por certo, a estabilidade não é, nem de longe, tão espetacular como a instabilidade. E o fato de se estar satisfeito nada tem da fascinação de uma boa luta contra a desgraça, nada do pitoresco de um combate contra a tentação, ou de uma derrota fatal sob os golpes da paixão ou da dúvida. A felicidade nunca é grandiosa.
Aldous Huxley
ATEÍSMO CRISTÃO
O teísmo cristão (Deus único), é mantido, sem que se perceba, graças e um ateismo implícito dos seus fiéis. Tal fato, no mínimo desconcertante para o senso comum, transmuta-se em ressentimento exalado contra os céticos, os ímpios, os ateus, os agnósticos, os "sem-deus",e outros personagens com epítetos menos votados.Trata-se de um ateismo embutido em forças inconscientes, e por isso, poderoso.É, pois, absolutamente necessário aos militantes da fé, evitar tomar consciência da sua "pouca fé" e para isso ter êxito, acusar o incrédulo como encarnação do Mal e/ou diabolização da existência. O catolicismo ilustra bem tal estado de coisas. É que o cristianismo, como modo de subjetivação secular, matriz de inúmeras religiões, espalha sua miséria psíquica por milhões de almas afundadas na culpa. A vida, como diz Nietzsche, passa então a ser julgada. Não por acaso, o Capitalismo Mundial Integrado (cf. F. Guattari) se serve dessa verdade monstruosa para codificar o desejo como racionalidade do Estado, do eu, do indivíduo, da família, da escola, instituições assassinas do desejo, entre outras, circulando pelos quatro cantos da Terra.
A.M.
EXCERTO DE ENTREVISTA - M. FOUCAULT - 15 de maio de 1966
-Isso não impede que essa nova forma de pensamento (*), com números ou não, se apresente fria e bastante abstrata...
M.F. - Abstrata? Responderei então: o humanismo é que é abstrato! Todos esses gritos do coração, todas essas reivindicações da pessoa humana, da existência, são abstratas, quer dizer, separadas do mundo científico e técnico, que, sim, é o nosso mundo real. O que me irrita no humanismo é que ele é doravante esse guarda-vento através do qual se refugia o pensamento mais reacionário, onde se formam alianças monstruosas e impensáveis: pretender-se aliar Sartre e Teilhard, por exemplo. Em nome de que? Do homem! Quem ousaria dizer mal do homem! (...) (...) Não se deve confundir a tepidez mole dos compromissos com a frieza que caracteriza as verdadeiras paixões. Os escritores que nos agradam mais, a nós, "frios" sistemáticos, são Sade e Nietzsche, que, com efeito, diziam "mal do homem". Não eram eles também os escritores mais apaixonados?
(*) Refere-se ao estruturalismo.
UM DEUS INUMANO
Numa visão espinosista, crer no Deus cristão é reproduzir a relação dirigente-dirigido, governante-governado, rei-súdito, patrão-empregado, senhor-escravo, etc. Assim, o pensamento se mantém prisioneiro de uma relação entre seres humanos. Ou seja, segundo um olhar cristão, trata-se de uma relação entre pessoas. Deus é uma pessoa.No entanto,basta considerar a existência do infinito tempo-espaço para jogar por terra essa bobagem humanística. Não há dimensão existencial, espiritual, que compare em grandeza a finitude humana com a infinitude da natureza. Nesse assunto, a atitude mais honesta e inteligente é a do agnóstico, do materialista, do ateu ou do trágico. Pena que tal "bobagem humanística" convença a tanta gente e produza subjetividades atoladas no medo, na desesperança e na servidão voluntária. É o triunfo do capital e das suas metástases fascistas.
A.M.
OS FUNCIONÁRIOS DA VERDADE
Eles estão em toda a parte. Talvez sejam a maioria.
São funcionários porque funcionam, operam, agem. Sustentam o mundo estabelecido dos humanos.
Iremos citar alguns exemplos como tentativa de caracterização objetiva e subjetiva. São linhas existenciais que os constituem e se misturam. Por isso um lusco-fusco na expressão prática se impõe como camuflagem de crenças.
Os funcionários administram o acaso para que seja possível a manutenção da ordem. E apelam para a verdade como referência única.
Essa verdade pode ser várias, mil, cem mil. Permanece, contudo, sendo uma verdade.Os funcionários precisam de certezas, assim como os pulmões de ar.
Encontramos na grande política funcionários vitalícios. Tanto os que dominam quanto os que são dominados. Há quem chame estes últimos de massa.
Começamos pela política porque aí a história da humanidade é a de um pesadelo do qual não se acorda.Mas poderia ser outro começo.
Por exemplo, a religião: nela os funcionários (ou fiéis) costumam ser ungidos acima dos mortais, na medida em que cultuam a imortalidade.
Mas há muito mais, já que a verdade ajuda (e muito) a viver.
A universidade, e sua forma que vem da Idade Média, usa dos seus para promover a verdade do pensamento. A sociedade fica abaixo no quesito intelectual.
A verdade da academia exporta seus seguidores para a ciência. Ou o inverso, tanto faz.
Para complicar a questão da verdade, o capital e o seu método, o capitalismo, fabrica uma verdade única, a mercadoria. Esta se expande e se disfarça nos poros abertos do corpo social. Uma longa história atualiza a barbárie planetária do horror econômico. Ou seria político?
A pessoa humana (conceito cristão) naturaliza o funcionamento da verdade como crença no eu, na consciência e no céu como eterna promessa. O futuro não chega.
As massas consomem e gozam palavras-de-ordem veiculadas pela mídia.
Fake news são verdades, mesmo não sendo.
Em casos extremos, funcionários da verdade tornam-se fascistas. Querem tampar o buraco de sentido das sociedades de controle. Uma crispação paranóide se anuncia como crise política.
No amor, o romantismo traz o tom adocicado da verdade para os amantes da fantasia. Isso não funciona mais, exceto como arcaísmo.
A.M.
sábado, 23 de outubro de 2021
DEVIR-ALUNO
1-A máquina binária - Antes da pessoa do professor e do aluno existe a máquina binária do ensino obrigatório que estabelece as condições organizacionais para aprender e ensinar. Diz-se o que é aprender e o que é ensinar, e esse enunciado implícito é aceito como um fato natural. A boa vontade de um professor em ser um bom mestre (=passar os conteúdos), bem como a disposição do aluno em aprender(=acumular os conteúdos), não significa que o pensamento esteja presente. Não significa também que haja criação ou produção de conhecimento, mesmo que o ensino esteja acoplado a alguma pesquisa. Há outras variáveis em jogo. Tais variáveis vêm da instituição educacional e superpõem-se sobre o ensino, sobre o ato de ensinar, como se ensinar e educar fossem a mesma coisa. Educar remete à Educação, à forma-Educação, poderosa instituição milenar que se reproduz em práticas escolares; este é o seu ponto de aplicação talvez mais efetivo, a superfície de inscrição do desejo de saber, aí onde a materialidade da aula encontra uma expressão acabada e direta. Ou seja: o professor é quem ensina porque sabe; o aluno é quem aprende porque não sabe.
É a máquina binária professor-aluno funcionando em toda a parte onde existe escola. Não se trata, pois, de considerar as pessoas, boas intenções etc, ao jeito humanista de ver as coisas. A máquina produz as pessoas, ou melhor, as pessoas são peças que se ligam umas às outras para a produção de subjetividades em série, prontas para o Mercado. Isto não significa que, em termos da experiência do professor e da experiência do aluno, haja uma passividade em relação ao que acontece em torno. Pelo contrário, a pessoa, tendo um universo de representações e imagens ao seu dispor, mormente quando estimulada pela atividade intelectual, acredita estar agindo, quando é agida. Acredita estar controlando, quando é controlada. Acredita estar mandando quando é mandada. Tudo ocorre num campo invisível, onde só as forças tem acesso e funcionam em regimes subjetivos ou de subjetivações. A pessoa é o indivíduo e este é o sujeito, num encadeamento natural para que o ato de ensinar/aprender se faça sem problemas. Esta máquina está ligada a outras máquinas, isto é, a instituições: são formas sociais, cristalizações de processos, outrora, talvez, de criação. A escola, a educação, o eu, a avaliação, a aula, a divisão público/privado, entre outras, são formas sociais que, como trilhos dispostos sobre o caos, orientam o rumo do ensino e do aprendizado para um objetivo maior, transcendente, e por isso, intocável: o acúmulo de conhecimento.
Um desejo de ensinar e um desejo de aprender se conjugam para estabelecer a superfície do Encontro professor-aluno. Como dissemos , a superfície é uma máquina, na medida em que antes das pessoas, estão as instituições. Elas se imiscuem numa produção incessante de consumo. Consumir o ser. Ser alguma coisa para o mercado. Esta é a regra que vem de fora mas que está dentro da máquina. É o seu próprio combustível. Pelo menos, em tempos de hoje, o Mercado é a lei das visibilidades expostas na vitrine das técnicas: quem serei amanhã? como sobreviverei? A visão do mestre como sacerdote, e da educação como o lugar da salvação, foi devorada pelo Mercado onipresente. Daí, falar da máquina binária requer falar da máquina ternária, onde se insinuam relações de troca e mais profundamente relações de poder. Um lugar espera o professor com o script marcado, tanto mais, ou quanto mais ele inove ou queira inovar métodos e técnicas em sala de aula. A sala de aula é o rosto do mercado travestido em rigor pedagógico; este disfarça o rigor mortis do desejo. Nestas condições, ser professor é seguir a pedagogia da falta, para a qual falta conhecimento ao aluno, falta responsabilidade ao aluno, falta compromisso ao aluno, sendo necessário preeenchê-lo, enchê-lo. De idéias, conceitos, opiniões. E o pensamento?
2-A natureza do pensamento – O positivismo organicista encarregou-se de situar o pensamento como uma espécie de secreção cerebral, para a qual acorrem os médicos e fac-símiles, na ânsia de totalizar o organismo humano. Mas o pensamento não é totalizável, ele, o que circula em outros corpos além do humano, inscrevendo-se em linhas irredutíveis a formas estáveis ou árvores bem desenhadas. Aprendemos com Deleuze-Guattari que o pensamento “não é arborescente e o cérebro não é uma matéria enraizada nem ramificada (...) (...) muitas pessoas tem uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é muito mais uma erva do que uma árvore” . Sendo assim, o pensamento segue caminhos ou linhas indeterminados por um centro organizador que seria o eu, por exemplo. Ele vai além do que se compreende como pessoa individual. Um dueto interpessoal conta com multi-determinações do pensar que vêm de todos os lados para inscrições na superfície onde a fala se dá. O pensamento como “pensar” é o acontecimento. Antecedendo a linguagem, e mais, dando-lhe condições operacionais para existir e funcionar, o acontecimento inscreve-se nos corpos e ao mesmo tempo deles se destaca como a expressão. A fala do mestre e a fala do aluno são assim superfícies onde se fabrica o sentido.
Pensar, só aí, nesta linha sem retorno rumo a terras desconhecidas. Antes que isso pareça uma metáfora, dizemos que o Encontro professor-aluno, máquina binária a serviço do Mesmo, traveste-se de um sentido multiplicado e multiplicante dos signos enviados de parte à parte. Trata-se de enviar signos que substituam a pessoa de um ou de outro. Pensar é operar as linhas que saem das conexões entre os signos. A natureza do pensamento é a anti-natureza, a ausência de natureza e no seu lugar o artifício. Que o pensamento seja (ou fosse) uma secreção do cérebro, não excluiria a linha infinitiva cortando e sendo cortada por outras linhas, multiplicidades que nos chegam de súbito, aos milhares e de vez. São velocidades que produzem tonturas à lucidez mais centrada. A questão passa a ser a do caos e de como lidar com ele; não negá-lo, pois ele insiste, nem se deixar engolfar numa espécie de buraco negro ou campo inconsistente, onde as palavras se partem em segmentos incompreensíveis ao senso comum. “O que define o pensamento, as três grandes formas do pensamento, a arte, a ciência e a filosofia, é sempre enfrentar o caos, traçar um plano, esboçar um plano sobre o caos” . Mas é preciso não confundir pensamento com conhecimento. Este corresponde ao acúmulo de informações que a memória propicia, e vai servir de reservatório de conceitos estáticos à espera de que sejam acionados quando do trabalho intelectual. A atividade cognitiva ganha a sua pertinência e o seu valor na medida em que está conectada às linhas institucionais que sustentam o funcionamento da organização escolar e dos seus dispositivos. Deste modo, o “ser” inteligente não existe enquanto essência, ou substância, mas nem por isso deixa de ser palpável e intrínseco ao sucesso profissional, por exemplo. Tudo isso substitui o pensamento e ao mesmo tempo faz-se passar por ele, numa operação urdida na produção de subjetividades individualizadas no papel de aluno, no papel de professor. Pensar, pois, não é para qualquer um. Não que este um esteja acima dos mortais, mas porque esse um está à margem, sempre à margem das formas subjetivas, fazendo-se e refazendo-se como produção. Isso dá trabalho. Sim, porque o ato de pensar implica num movimento de subjetivação sobre si, espécie de dobra e redobra do eu a partir e com os signos que chegam. Falamos, pois, sobre o pensamento como ato e como física. Uma abstração concretizada, velocidades infinitas freadas na organização de saberes inseridos em práticas. É o contrário do pensamento regido pela forma-Academia, ou pela forma-Estado, quando e onde estes acabam por se aliar na ação de bombardear cidades e aldeias. A chamada relação pedagógica, ou o próprio ensino, é um lugar por excelência onde se propagam estas formas como verdades dadas. Não há, pois, uma natureza do pensamento que não esteja funcionando em algum dispositivo, em alguma prática, e portanto, não há pensamento que não se agencie como desejo de fazer, de viver, de sobreviver, mesmo que se destrua, se mate e se explore. O desejo é a superfície onde algo acontece, mesmo não acontecendo. Este é o processo.
3- A dobra subjetiva – A experiência de ensinar é antes a experiência de aprender com os signos. Antecedendo à partição significante-significado, o signo procede a uma violência constitutiva dessa experiência. Forçar a pensar, como diz Deleuze, é criar um campo tanto mais rico na emissão de signos. A função de professor dobra-se e desdobra-se na sua presença-ausência, descolando-se dos conteúdos e fazendo destes o móvel das práticas do pensar. A subjetivação deixa de ser centrada numa pessoa, seja a do professor, seja a do aluno, e constitui-se como ato de pensar por fragmentos do real. Um pensar estilhaçado, atravessando campos do saber, tal como um pássaro bicando aqui e acolá os materiais necessários à produção de conceitos. Ou de afetos e funções, se pensarmos como um artista ou como um cientista, respectivamente . Isso conflui numa subjetividade contra-subjetiva, ou seja, exposta para fora de si, não totalizada, não totalizável e inscrita na superfície dos corpos humanos e inumanos. Trata-se de singularizações móveis do processo do desejo. O muro é a linguagem douta, técnica, rochedo invisível mas doloroso às invenções não cadastradas do pensar. O caráter redutor, reducionista e por vezes fascista da linguagem leva-nos à dimensão do conhecimento imaculado. Como diz Nietzsche, “em algum canto longínquo do universo difundido no brilho de inumeráveis sistemas solares, houve certa vez uma estrela na qual animais inteligentes inventaram o Conhecimento. Foi o minuto mais arrogante e mais ilusório da “história universal”, mas não foi mais que um minuto. Com apenas alguns suspiros da natureza a estrela se congela, os animais inteligentes logo morrem” . Esta fábula traz para a experiência do aprendizado as velocidades infinitas do caos-cosmos. Daí, como trabalhar o discurso com um contra-discurso ou sem o discurso ou para além do discurso? Como ultrapassar o discurso normalizante e moralizador da pedagogia vigente e embutida nas práticas de ensino? Como seguir o rumo de territórios invisíveis, mesmo à mão, e de paisagens vertiginosas, mesmo à luz da razão? Como fabricar universos de sentido sem cair numa indiferenciação subjetiva estéril, também chamada “porra-louquice”? Ora, o aprendizado é, antes, a produção (não o produto) do Encontro. Afetar e ser afetado, nos termos de Spinoza, é a densidade própria à dobra subjetiva referida acima, e que situamos como sendo a multiplicidade. O aluno é esta multiplicidade que vaza e se expande para fora do papel-aluno disposto na série escolar . Obter uma boa nota nos exames, passar de ano ou de semestre, ser aprovado etc, são componentes do papel. Contudo, a depender do uso feito na produção do Encontro, tornam-se uma caução para o conhecimento bem comportado e estável. O que chamamos de “devir-aluno” é pois o processo do Encontro mestre-aluno na dimensão impessoal das multiplicidades. O mestre torna-se outra coisa que não ele. O aluno torna-se outra coisa que não ele. As linhas do aprendizado passam pelo vôo da bruxa até onde (?) ela irá. São abertas conexões ilimitadas às sensibilidades em curso. É criado um campo de intensificaçào da experiência do Encontro entre multiplicidades. Na prática, isso quer dizer: não faça como eu; faça comigo até experimentar em você o gosto pela novidade e pelo risco de pensar com os próprios neurônios, mesmo que estas células recolham de longe o que as faz mover, respirar, funcionar.
4-O que é o Novo? – As multiplicidades constituem a própria realidade do Encontro. É delas, com seus materiais (signos) que saem os processos de singularização, linhas de aprendizado. São vivências que extrapolam o ser-subjetivo. Não há, pois, um recipiente pronto a recolher os conteúdos, ao modo da educação bancária, tão criticada por Paulo Freire. Mas também não existe uma consciência intencional que se dirige ao objeto e a ele se liga numa manobra do ser-no-mundo. Ao contrário, são as multiplicidades que precedem o sujeito-aluno. Mais: são elas que o produzem através de linhas invisíveis, abstratas, mas não menos atuais. Falamos de um campo virtual de problematização do ensino. Vamos para além do dualismo milenar professor-aluno na busca das práticas de vida. Trata-se da imanência das questões, ou, o que quer dizer o mesmo, das verdadeiras questões do ensino e por conseguinte, do aprendizado. O que é aprender? Para que aprender? Como aprender? Com que práticas sociais esse aprendizado irá se conectar? Conexões a serviço de que ou de quem? Saímos do âmbito da escola e seu contexto funéreo, vamos ao mundo em suas indeterminações radicais. É claro que a escola está no mundo, mas aqui no referimos ao mundo caotizado das velocidades infinitas das determinações institucionais, formas sociais gestadas a partir de matérias sem forma, puras moléculas em trânsito. Extraimos do dispositivo-aula devires que o ultrapassam. A sala de aula não está mais contida no enquadre escolar e não mais recria a cena gasta do professor falando a seus discípulos. Ela se abre ao encontro do Novo, mesmo que este já esteja aí, no interior do seu funcionamento mais minucioso e nem por isso, menos captável.
Se considerarmos o ensino mais técnico e objetivo (fazer algo, digamos, auscultar um tórax) o devir-aluno estará presente como aquilo que se desfaz sempre para se fazer logo em seguida. Professor, comece a mesma aula do semestre passado como se fosse a primeira vez. O frescor do saber que sai pela fala do mestre traz o sabor do Novo. Tornar interessante o que se ensina começa a partir de tudo o que é velho. Repetir ,balbuciar e gaguejar a língua, não a fala, para enunciar algo diferente, será possível? “Sim, uma linguagem afetiva, intensiva, e não mais uma afecção daquele que fala” . Para tocar as multiplicidades dispostas num campo de ensino, é preciso que a fala do mestre entre em contato com o limite da língua, daí, com o seu “fora” e o seu silêncio. O Novo não é dado, ele é produção de linhas curvas e incertas. Que se considere o devir-aluno como uma irrupção demoníaca na própria configuração do Encontro. Estamos, pois, muito distantes da máquina binária referida e muito perto das forças do inconsciente institucional circulando entre as cabeças, entre os papéis e nas relações de poder. Como vimos, o pensamento é uma linha estendida entre a arte, a ciência e a filosofia, sendo nesta última o acontecimento “pensar” aquilo que alarga e faz alargar as dimensões múltiplas do processo de aprendizado. A sala de aula é o mundo com seus aparelhos, com seus dispositivos de domesticação de almas. Mas o devir-aluno é mais que o aluno como pessoa; ele segue os fluxos do aprender antes do ensinar. Não aprender as certezas e as opiniões prontas do homem médio, mas sim algo que muda imperceptível e veloz como o próprio tempo. Captar este “imperceptível” do tempo é tornar-se o tempo irreversível dos atos de ensino que são ao mesmo tempo atos de aprendizado. Rigorosamente, não o Novo como um objeto ou objetivo a ser alcançado, e sim como a própria materialidade do espírito, a consistência da passagem, da “duração”, do tempo que não se vê, mas que se sente. Tornar-se aluno e mestre de si mesmo requer a multiplicação dos eus, o esquecimento da história pessoal, e como diz ainda Castañeda, a parada do diálogo interno. Toda uma bruxaria santa, todo um ritmo da natureza encravado nas falas mais artificiais e incômodas. É um estilo isso de ser não sendo, esse nomadismo no mesmo espaço e ao mesmo tempo já em Júpiter ou Urano, velocidades aceleradas para os seres lentos que somos. O pensamento voa. Um exemplo de aula: enquanto aqui eu falo da esquizofrenia-doença, aí em vocês e sobre vocês o pensamento percorre continentes, cidades, países, amores, e a aura do invisível cobre esse itinerário tão secreto quanto estranho. Esquizofrenizar o pensamento, ele já esquizofrênico por si mesmo, desde que não há nascedouro, só um meio onde tudo começa e flui, é aprender a pensar . Tudo já estava lá, ou aí, ou aqui, e é mudando a natureza das multiplicidades ( o Novo, enfim) que o aprendizado dos signos se faz.
A.M
sexta-feira, 22 de outubro de 2021
O ÓBVIO
Ainda nos primeiros meses de seu governo, Jair Bolsonaro se levantou em um jantar oferecido em Washington e fez um discurso de improviso. Mas apenas a fala era intempestiva. O plano havia sido cuidadosamente planejado. O presidente, numa explosão de sinceridade, avisaria aos presentes: vamos ter de destruir o que existe.
E assim foi feito, em praticamente todas as áreas da administração pública. O desmonte ocorreu na Funai, no Ibama, nos conselhos sociais, nos canais de participação da sociedade, nos programas de combate à fome, na diplomacia, na educação, na economia, na cultura, na ciência, pesquisas e tantos outros setores.
Não foi incompetência, como alguns mais apressados poderiam anunciar. Foi um plano, com metodologia, estratégia e objetivos. O problema: enquanto a destruição foi realizada com a meta de colocar no lugar uma nova ideologia, sob o controle de um determinado grupo, quem pagou caro foi a sociedade.
O Brasil mostrou ao mundo que nenhum avanço social, democrático ou econômico tem um percurso inevitável. Em quase três anos, a "eficiência" na destruição fez a fome voltar, a pobreza explodir, os ganhos sociais serem desfeitos e a economia desabar. A mentira matou e a credibilidade do país no exterior foi sepultada. Mas os ricos ficaram mais ricos.
Num encontro informal nesta sexta-feira com banqueiros em Genebra e investidores internacionais, até mesmo aqueles que fizeram apostas em Bolsonaro - sob o guarda-chuva de uma promessa de um ultraliberalismo cego - falavam abertamente: ninguém arrisca mais dizer o que ocorrerá com o Brasil.
Caminhando para o fim de um terceiro ano de uma administração que entrará para a história como a mais perversa da era democrática do país, chegou o momento de o óbvio ser dito com todas as palavras: o projeto de destruição prometido ocorre a olhos nus, com um êxito espantoso. O resultado: uma sociedade desgovernada e exausta.
Sim, existe um plano de poder, organizado para manter privilégios de alguns poucos, com os aplausos de donos de contas em paraísos fiscais e dos jogadores do cassino chamado Brasil.
Para quem não está nesse grupo, porém, cabe a luta por um horizonte cada vez mais turvo, mais distante e mais traiçoeiro.
Enquanto isso, na base de um país cujas elites nunca aceitaram o conceito de comunidade de destino, um exército de famintos disputa sua dignidade com ratos sem escrúpulos. Inclusive na Esplanada.
Jamil Chade, UOl, 22/10/2021, 17:13 hs
terça-feira, 19 de outubro de 2021
segunda-feira, 18 de outubro de 2021
A EQUIPE TÉCNICA EM SAÚDE MENTAL : 10 LINHAS PARA O MÉTODO DA DIFERENÇA
1-A equipe é um dispositivo grupal.Ou seja, trabalha e funciona visando um objeto e um objetivo: o paciente e o cuidado.
2-O Cuidado é um conjunto de ações práticas, incisivas, até mesmo ações não-práticas (por exemplo, conceitos, diagnósticos, etc) que redundam em ações concretas e mudam algo em outra coisa.
3-Pensar é tambem uma prática, já que não se trata do pensamento reflexivo, mas do pensamento-em-ato, pensamento--corpo. Pensar é um exercicio perigoso. Nisso há uma distinção importante para com os métodos da Academia, impregnados de positivismo e falso humanismo.
4-De acordo com o método da diferença, há um estilo deshierarquizado da equipe atuar em saúde mental. Figuras de autoridade técnica e institucional (como o psiquiatra, por exemplo) são usadas apenas como tijolos nas relações de produção do Cuidado.
5-Em face da sua história (cf. M. Foucault) a psiquiatria ocupa ainda o lugar da verdade, tanto em relação aos demais técnicos, quanto em relação ao paciente. Com status médico e compromissos morais inconfessáveis, aparece como o centro de ação para o cuidado. Mas não é. Apenas reduz ou suprime (quando consegue) sintomas.
6-A busca da diferença no paciente é ao mesmo tempo a busca da diferença na equipe, em cada técnico, independente do nivel de escolaridade, do status social, do poder nas relações de trabalho e tantas outras assimetrias O método da diferença valoriza a potência de criar e não a verticalidade dos contratos de mando e comando.
7-O método da diferença se corporifica na clínica da diferença. Um cuidado, para ser concreto e real, passa pela escuta do outro e de suas linhas subjetivas expostas.
8-Se observarmos um caps, um ambulatório, um manicômio, há pistas cotidianas muito claras que mostram o quanto a clinica da diferença está sendo traída. Tudo começa pela Escuta qunado não há escuta.
9-É necessária uma auto-análise grupal como condição para a Escuta. A questão técnico-individual (qual a sua graduação?) é substituída por qualidades como o senso de observação, a intuição, a sensibilidade fina, a inteligência e a atitude de espreita.
10- Fazer a clinica da diferença é seguir um método que vai além dos funcionários da organização, seja pública ou privada. Este método implica na produção do desejo de buscar e expressar novas linguagens, outros mundos. Uma ética do trabalho se alia a uma estética da loucura não médica.
A.M.
domingo, 17 de outubro de 2021
LINHAS PARA O MÉTODO DA DIFERENÇA EM SAÚDE MENTAL
São elas. 1-Contextualizar o encontro com o paciente: onde? como? quando? com quem? por que? para que? quais as circunstâncias? 2- Considerar os afetos em jogo, incluindo os do paciente e do técnico. Não como um mal-em-si ou bom-em-si, mas como uma positividade, aquilo que move as condutas. Trata-se do desejo. 3- Estabelecer hipóteses diagnósticas conforme a chave semiológica "função versus essência". Fazer prevalecer a função terapêutica. 4- Adotar uma atitude expectante (ao modo fenomenológico) expandindo-a como percepção do imperceptível: a espreita. 5-Percutir os sintomas a partir da vivência que o paciente traz do sintoma. Ou seja, retirar o sintoma da grade biomédica (uma doença) e tratá-lo como modo de existência: "eu sou meu delírio, eu sou minha fobia, etc". 6-Tentar, na medida do possível, inverter com o paciente para além da empatia. Não sentir o que o outro sente (isso é impossível) mas sentir com o outro. Trata-se, enfim, de arriscar um cuidado. O que não é simples, ao contrário. 7- Evitar a auto-identificação em papéis sociais contrários à expressão da diferença, já que eles se nivelam ao de psiquiatra neurobiológico. Não ser, pois, juiz, policial ou sacerdote, entre outros agentes da Ordem. 8-Conectado ao ítem 1, avaliar que forças institucionais fazem o paciente falar uma verdade que não é a dele. Criar condições para ele falar em seu próprio nome. 9- Usar o poder técnico como um contra-poder a favor da expressão do corpo singular. Um exemplo é o do paciente impregnado devido a prescrição equivocada de psicofármacos. A correção deve ser acompanhada de uma explicação técnica ao próprio paciente ou aos familiares. 10-Entender que a subjetividade precede os sintomas ou os diagnósticos à la CID - 10. Ou seja, ninguém é bipolar (uma essência) e sim produzido bipolar. Que tudo é produção, inclusive de doença, medo, sofrimento e tédio. 11-Construir uma ética da potência, da alegria no lugar de uma ética destrutiva e do ódio. Tais afetos, conscientes ou não, atravessam e configuram o manejo do cuidado. Cuidado com o cuidado. 12- Trabalhar com a leveza existencial (tornar-se criança sendo adulto) ainda que em meio às situações mais ásperas e dolorosas. 13-Considerar que os poderes estabelecidos da sociedade funcionam e se apoiam na fabricação de crenças num além-mundo. Ao contrário, acreditar nesse mundo e nessa terra como o lugar-do-agora.
A.M.
ENCONTROS
Quando se trabalha, a solidão é, inevitavelmente, absoluta. Não se pode fazer escola, nem fazer parte de uma escola. Só há trabalho clandestino. Só que é uma solidão extremamente povoada. Não povoada de sonhos, fantasias ou projetos, mas de encontros. Um encontro é talvez a mesma coisa que um devir ou núpcias. É do fundo dessa solidão que se pode fazer qualquer encontro. Encontram-se pessoas (e às vezes sem as conhecer nem jamais tê-las visto), mas também movimentos, ideias, acontecimentos, entidades.
(...)
Gilles Deleuze e Claire Parnet, in Diálogos
sábado, 16 de outubro de 2021
Poema sobre a recusa
Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.
Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda.
Maria Teresa Horta
LEVE, O CORPO
(...) Com isto concluo e pronuncio meu julgamento: eu condeno o cristianismo; lanço contra a Igreja cristã a mais terrível acusação que um acusador já teve em sua boca. Para mim ela é a maior corrupção imaginável; busca perpetrar a última, a pior espécie de corrupção. A Igreja cristã não deixou nada intocado pela sua depravação;transformou todo valor em indignidade, toda verdade em mentira e toda integridade em baixeza de alma. Que se atrevam a me falar sobre seus benefícios “humanitários”! Suas necessidades mais profundas a impedem de suprimir qualquer miséria; ela vive da miséria; criou a miséria para fazer-se imortal... Por exemplo, o verme do pecado: foi a Igreja que enriqueceu a humanidade com esta desgraça! – A “igualdade das almas perante Deus” – essa fraude, esse pretexto para o rancor de todos os espíritos baixos – essa idéia explosiva terminou por converter-se em revolução, idéia moderna e princípio de decadência de toda ordem social – isso é dinamite cristã... Os “humanitários” benefícios do cristianismo! Fazer da humanitas uma autocontradição, uma arte da autopoluição, um desejo de mentir a todo custo, uma aversão e desprezo por todos desejos bons e honestos! Para mim são esses os “benefícios” do cristianismo! – O parasitismo como única prática da Igreja; com seus ideais “sagrados” e anêmicos, sugando da vida todo o sangue, todo o amor, toda a esperança; o além como vontade de negação de toda a realidade; a cruz como símbolo representante da conspiração mais subterrânea que jamais existiu – contra a saúde, a beleza, o bem-estar, o intelecto, a bondade da alma – contra a própria vida... Escreverei esta acusação eterna contra o cristianismo em todas as paredes, em toda parte onde houver paredes – tenho letras que até os cegos poderão ler... Denomino o cristianismo a grande maldição, a grande corrupção interior, o grande instinto de vingança, para o qual nenhum meio é suficientemente venenoso, secreto, subterrâneo ou baixo – chamo-lhe a imortal vergonha da humanidade...
(...)
F. Nietzsche in O Anticristo
sexta-feira, 15 de outubro de 2021
A DIFERENÇA NA SAÚDE MENTAL - VIII
Conforme a diferença, o diagnóstico psiquiátrico é funcional e não essencial. Isto significa dizer que a pergunta-chave passa a ser: a quem ou para que serve tal diagnóstico? Ora, a psiquiatria tem ao seu dispor um manancial extensíssimo de diagnósticos. Eles compõem um sistema de registro de sintomas. Objetivam um controle sobre os corpos e as mentes. Tudo, claro, com respaldo jurídico e institucional. Por outro lado, a diferença em saúde mental vai na contra-corrente. Não que traga uma verdade pronta para se opor à verdade da psiquiatria. Nada seria mais tosco. Ao contrario, a diferença não usa o conceito de verdade, e sim o de criação. Neste sentido a prática da diferença em psicopatologia se caracteriza pelo ato de experimentar o novo, inventar, arriscar. Adota o critério da ética pela vida e da estética dos corpos em relação. Em outros termos, a diferença na psicopatologia é a clinica da diferença. Ai a potência de cuidar do outro (e de si mesmo) se traduz numa ética do viver. E que o Encontro com o outro (não só a pessoa do paciente, mas o mundo) expresse um estilo singular de captar signos (mesmo os terríveis) e transformá-los em arte. A diferença é uma produção de arte. Poucos a suportam.
A.M.
quarta-feira, 13 de outubro de 2021
terça-feira, 12 de outubro de 2021
SOPA DE FÁRMACOS - II
Vale repetir que quando o psiquiatra prescreve remédios, ele não está só. Junto à ele estão os demais técnicos em saúde mental e as forças (instituições) que buscam ordem e controle. Assim, o ato-de-medicar é um ato coletivo, mas que parece individual. Isso não exime o psiquiatra de uma responsabilidade ética e técnica. Ao contrário, coloca-o como agente terminal (juridicamente autorizado) de um agenciamento coletivo que o ultrapassa como técnico, e ao mesmo tempo o "coage" a fazer o que tem que ser feito. Tal perspectiva teórica é condição para se pensar o trabalho de um centro de atenção psicossocial como trabalho de equipe descentrado em relação à figura do psiquiatra. O psiquiatra não é o centro das ações terapêuticas e talvez nem sequer seja importante na condução de alguns casos. Pode até "atrapalhar" caso interfira nos processos subjetivos do paciente e nos seus resultados práticos. Um exemplo simples é o das superdosagens medicamentosas e seus efeitos nocivos aos afetos e efeitos de mudança e resolução de problemas. Confira: esse é o paciente impregnado ou excessivamente sedado. Assim funciona a "sopa de fármacos " que pode se naturalizar como nutriente da dependência aos remédios. Isso é comparável à dependência psíquica do usuário ao serviço. Este se torna um território existencial com um sentido exclusivo. O caps minha vida.
A.M.
segunda-feira, 11 de outubro de 2021
SOPA DE FÁRMACOS
O uso de psicofármacos em psiquiatria clinica tem como objetivo ( ou deveria ter) a supressão dos sintomas que o paciente refere. Como geralmente a queixa compreende vários sintomas, há uma tendência atual dos psiquiatras em prescrever vários remédios para vários sintomas, dispostos lado a lado, conforme a equação sintoma=remédio. Recebi uma paciente com 7 fármacos há 7 anos. Humor hipotimico, ansiedade, fobia, delirio, alucinação, insônia, entre outros, sintomas "alvejados" um a um num manejo, digamos, pouco inteligente do tratamento. Qual? Importante pois, registrar que na avaliação clinica se considere duas linhas de análise: 1-Uma hipótese diagnóstica; 2-A vivência do paciente que precede e mistura os vários sintomas. Usamos "diagnóstico" como função terapêutica e não como função de controle. Quanto a vivência, trata-se de detectar os afetos (sentimentos) e as crenças (valores) presentes nesse momento existencial. Garantidas linhas de análise das circunstâncias atuais, será possível reduzir um pouco (senão muito...) a onda gigantesca de prescrições desnecessárias e nocivas. No entanto, é evidente o reinado da psicofarmacologização generalizada em caps, ambulatórios, consultórios e manicômios (mesmo nos maquiados). Por que? Porque medicar, prescrever remédios (não só em psiquiatria, mas nas demais especialidades) tornou-se, faz tempo, uma relação social, uma forma de relação social, uma instituição, enfim, plantada como objeto de consumo no coração da subjetividade moderna. A vida tornou-se uma sedação continuada: como dar alta?
A.M.
domingo, 10 de outubro de 2021
O ESTRANHO
Quanto mais alta a sensibilidade, e mais sutil a capacidade de sentir, tanto mais absurdamente vibra e estremece com as pequenas coisas. É preciso uma prodigiosa inteligência para ter angústia ante um dia escuro. A humanidade, que é pouco sensível, não se angustia com o tempo, porque faz sempre tempo; não sente a chuva senão quando lhe cai em cima.
(...)
Fernando Pessoa
MEDICALIZAÇÃO: A MAIS-VALIA DA DOR
O conceito de medicalização da sociedade é tributário do capitalismo industrial avançado. Possui um alcance planetário, na medida em que a tecnologia médica, sustentada pela idéia de progresso, avança como oferta de produtos a serem consumidos em meio ao estilo de vida contemporâneo. Tal estilo tem como base a produção subjetiva correlata à produção econômica. Ou seja, cada vez mais inexistem divisões entre os vários setores da vida social, fazendo desta uma mera extensão dos processos do capital (sempre mais lucro), no caso médico uma semiologia do organismo doente adaptada às necessidades de controle propedêutico via equipamentos de saúde. Daí as soluções de problemas sociais se afiguram através o uso da terapêutica médica precedida pelo diagnóstico cada vez mais estabelecido por imagens (exemplo da ultra-sonografia). A medicalização não é, pois, um fenômeno médico, pelo menos na sua origem, mas um produto do funcionamento científico das relações capitalísticas, totalizadas na figura subjetiva do consumidor-padrão. A medicina segue e “obedece” ao processo histórico-social porque ela mesma é uma forma social no sentido de uma instituição poderosa que emplaca um discurso humanitário às custas da produção-consumo de pacientes. Medicalizar é, pois, um ato político antes de ser técnico.
A.M.
sexta-feira, 8 de outubro de 2021
Perplexidades órfãs - X
A máscara esconde o eu que esconde outro eu que esconde outro eu e assim por diante. O eu também é uma máscara.
Fui falar sobre Karl Marx com um velho amigo.Ele me chamou de romântico.Eu o chamei de cínico, mas a amizade ainda rola.
A fome no Brasil é uma instituição poderosa. Um repasto sinistro a sustenta. Ad nauseam e ad eternum.
E quanto à psiquiatria? Atenção: ela sabe pouco, mas pode muito.
Pelos lares e sítios da cidade, viajo em manhãs sem freios e sem respostas. Um sol à pino corrói a pele e a mente dos humilhados. E a minha.
Falta (ainda) um ano para o fim desse pesadelo macabro. Você sabe muito bem do que estou falando.
É comum à Academia usar os serviços de saúde ( mental, inclusive) para ações predatórias e vampirescas. Quem suporta essa fraude honesta?
Continuo atendendo casos graves e gravíssimos. Até quando o tempo será de criação e não de repetição? Uma cratera subjetiva se abre...
O cuidado ao paciente em saúde mental não é nada sem a escuta.A escuta em saúde mental não é a do policial, nem a do juiz nem a do padre. Sequer a da família ou de amigos. Ela é técnica, puramente técnica.
A clinica do Caps é dura e dureza. Estômagos rotos. Quem não aguenta, pede pra sair. Numa boa.
A.M.
domingo, 3 de outubro de 2021
ESPERTO
No dia 24 de setembro de 2014, com o mercado financeiro cada vez mais agitado diante da iminência da reeleição de Dilma Rousseff (PT), o Banco Central interveio para conter a alta do dólar. No dia seguinte, o economista Paulo Guedes, então sócio da gestora de recursos Bozano Investimentos, tomou uma providência para manter parte da sua fortuna longe das turbulências da economia brasileira: fundou a Dreadnoughts International, uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, um paraíso fiscal no Caribe. Nos meses seguintes, Guedes aportou na conta da offshore, aberta numa agência do banco Crédit Suisse, em Nova York, a quantia de 9,55 milhões de dólares, o equivalente a 23 milhões de reais na época (no câmbio atual, o valor hoje corresponde a 51 milhões de reais).
(...)
Allan de Abreu e Ana Clara Costa, Revista Piauí, 03/10/2021, 13:29 hs
sexta-feira, 1 de outubro de 2021
Perplexidades órfãs – IX
Venho escutando suicidas-em-série. Quilos de sertralina pesam na consciência. Onde iremos parar?
Existe uma poética dos não-poetas. São linhas arejadas que ajudam a viver o fora. Fora da ordem, fora da lógica. Fora do capital.
A pandemia está em declínio, sim, mas não passará. As máscaras não cairão. Acostume-se ao disfarce.
Não sei mais o que é uma psicose. O gesto dos humilhados embaralhou os signos. Ando buscando um diagnóstico.
A semana passa rápido. Tudo passa rápido. Velocidades se aceleram, amores se esfumam.
O genitor de um paciente me disse ontem que ainda está a avaliar se a vacina anti-covid serve (para o filho) ou não. Ó servo do genocida!
Transtorno mental não é igual a loucura. Transtorno mental é invenção da psiquiatria. Loucura não. Ela é coisa de poetas e amantes. Não dá pra discutir. Só para experimentar.
O vulcão da ilhas Canárias pulsa o vermelho das canções e dos sons apaixonantes. A natureza e suas potências. O perigo.
Um Caps pode se tornar um manicômio disfarçado. Cuidado.
Não demonize os bolsonaristas. Lembre-se: você pode ser um deles e não saber.
A.M.