quinta-feira, 31 de março de 2022

AFETOS NÔMADES

Os afetos são o que impulsiona os modos de subjetivação (pessoa). Eles funcionam em dobras e misturas subjetivas de toda ordem, ao ponto de alguém dizer: "não sei o que estou sentindo". São fruto das relações humanas e inumanas. A psiquiatria tecnológica, sob a grosseria semiótica habitual no trato com eles, despreza-os, já que não escuta o paciente, ou só escuta atrás de uma grade nosológica. No entanto, o que importa para uma clínica psicopatológica que enfatize a diferença, é que os afetos são inomináveis, por isso mesmo expressão trágica (não comunicável) e extrema (radical) da condição humana. O acesso à existência do outro só se fará, então, por meio da linguagem da arte e da poesia, mesmo que não sejamos artistas ou poetas. Para "chegar" ao paciente,é preciso um devir-outro , um devir-alma, um devir-alegria e inventar linhas de risco ao conteúdo do desejo. Elas funcionam em expansão incessante ao mundo (como na criança) criando-o como território singular. E leve.


A.M.

My Love is You (Live)

A  ORAÇÃO DO PSICODRAMA


Um Encontro de dois:

olhos nos olhos,

face a face.


E quando estiveres perto,

arrancar-te-ei os olhos e

colocá-los-ei no lugar dos meus;


E arrancarei meus olhos

para colocá-los no lugar dos teus;


Então ver-te-ei com os teus olhos

e tu ver-me-ás com os meus.


Jacob Levy Moreno

terça-feira, 29 de março de 2022

O FIM E O FIM DO DIAGNÓSTICO PSIQUIÁTRICO - X

Com o fim do diagnóstico psiquiátrico (enquanto instrumento terapêutico), e a colonização da alma, restam os grandes conjuntos síndrômicos a balizar a clínica. Eles surgem de um real atual atravessado pelo horror dos tempos. A morbidade psícossocial aniquila territórios subjetivos no cotidiano das velocidades caóticas. No caso brasileiro, uma opressão oficial, natural, sustentada pela democracia representativa, traz à luz a sabotagem do desejo. Este sofre por ser interrompido, por não produzir produzindo e daí estancar em linhas patológicas a erosão crônica do Sentido. Em que acreditar? Sobram arcaísmos religiosos tanto quanto arcaísmos escolares, estatais, familiares, acadêmicos, jurídicos, políticos. Estaríamos em plena guerra fria? Arcaísmos traduzem a organização das transcendências (algo para além da vida, o culto ao passado, o messianismo populista, a verdade midiática, etc) que, no caso da psiquiatria, substituem os verdadeiros problemas por uma espécie de mecanização do pensamento. A entronização e a reificação do cérebro cumprem a função de imbecilizar modos de subjetivação através da indústria de pseudodiagnósticos cérebro-mentais (alguém já viu um cérebro funcionando?) voltados à reparação de neurocircuitos lesionados e o consumo de axiomas científicos movidos à fé religiosa. Desse modo, o fim do diagnóstico psiquiátrico é correlato ao começo de uma era onde tudo é ou será tecnologia de controle ao gosto das populações consumidoras de ordens implícitas. Uma diferença implantada na psiquiatria implicaria no estilhaçamento dos seus saberes em prol de uma psicopatologia coletiva. Impossível?


A.M

Pabllo Vittar - Problema Seu (I AM PABLLO)

segunda-feira, 28 de março de 2022

DEVIR-CRIANÇA

(...)

Devir-criança é entrar em contado com esta potência que faz novos caminhos, percorre trilhas, explora. Tudo está aqui: capacidade de palmilhar vivências. Tudo para a criança é novo, tudo é como se fosse pela primeira vez. Ela acorda todo o dia e se espanta: “uau! como o isso funciona? O que aquilo faz? Olha aquilo, que legal!” Como já dissemos, os devires são involuções criadoras, é a aliança que acontece quando se entra em zonas de vizinhança e se encontram potências escondidas. Não queremos imitar a criança, mas estar nesta mesma zona, habitar este espaço de potência criativa. Queremos o espanto do devir. A potência do devir-criança está em criar cenários, espaços, singularidades, momentos. A criança é uma mestra das novidades, das histórias, ela tira da cartola tudo que não víamos há um segundo atrás. Vir a ser gaiato.

(...)

Do site "Razão Inadequada"


[Quando vier a primavera,], Alberto Caeiro - Pedro Lamares

A noite

Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta. 


Eduardo Galeano

domingo, 27 de março de 2022

Época de Ouro | Noites cariocas (Jacob do Bandolim) | Instrumental Sesc ...

LINHAS PARA O MÉTODO DA DIFERENÇA EM SAÚDE MENTAL

São elas. 1-Contextualizar o encontro com o paciente: onde? como? quando? com quem? por que? para que? quais as circunstâncias? 2- Considerar os afetos em jogo, incluindo os do paciente e do técnico. Não como um mal-em-si ou bom-em-si, mas como uma positividade, aquilo que move as condutas. Trata-se do desejo. 3- Estabelecer hipóteses diagnósticas conforme a chave semiológica "função versus essência". Fazer prevalecer a função terapêutica. 4- Adotar uma atitude expectante (ao modo fenomenológico) expandindo-a como percepção do imperceptível: a espreita. 5-Percutir os sintomas a partir da vivência que o paciente traz do sintoma. Ou seja, retirar o sintoma da grade biomédica (uma doença) e tratá-lo como modo de existência: "eu sou meu delírio, eu sou minha fobia, etc". 6-Tentar, na medida do possível, inverter com o paciente para além da empatia. Não sentir o que o outro sente (isso é impossível) mas sentir com o outro. Trata-se, enfim, de arriscar um cuidado. O que não é simples, ao contrário. 7- Evitar a auto-identificação em papéis sociais contrários à expressão da diferença, já que eles se nivelam ao de psiquiatra neurobiológico. Não ser, pois, juiz, policial ou sacerdote, entre outros agentes da Ordem. 8-Conectado ao ítem 1, avaliar que forças institucionais fazem o paciente falar uma verdade que não é a dele. Criar condições para ele falar em seu próprio nome. 9- Usar o poder técnico como um contra-poder a favor da expressão do corpo singular. Um exemplo é o do paciente impregnado devido a prescrição equivocada de psicofármacos. A correção deve ser acompanhada de uma explicação técnica ao próprio paciente ou aos familiares. 10-Entender que a subjetividade precede os sintomas ou os diagnósticos à la CID - 10. Ou seja, ninguém é bipolar (uma essência) e sim produzido bipolar. Que tudo é produção, inclusive de doença,  medo,  sofrimento e tédio. 11-Construir uma ética da potência, da alegria no lugar de uma ética destrutiva e do ódio. Tais afetos, conscientes ou não, atravessam e configuram o manejo do cuidado. Cuidado com o cuidado. 12- Trabalhar com a leveza existencial (tornar-se criança sendo adulto) ainda que em meio às situações mais ásperas e dolorosas. 13-Considerar que os poderes estabelecidos da sociedade funcionam e se apoiam na fabricação de crenças num além-mundo. Ao contrário, acreditar nesse mundo e nessa terra como o lugar-do-agora. 


A.M.

Marc Cary - Melancholia

abducción con cumplicidade


 eu trago a palavra

 na ponta da língua

 lambida sugada

 molhada em saliva


se queres sabê-la

beija-me a boca

depois cala o bico

pois isso é segredo

é pacto é acordo

fechado com lacre

entre bruxa e corvo


abracadabra


Líria Porto

sábado, 26 de março de 2022

Chappaquitic Woman

SINAPSES DA ALMA

Os transtornos mentais não explicam nada. Eles é que deveriam ser explicados. Isto significa que a psiquiatria biológica (bem entendido, a psiquiatria hoje hegemônica) funciona com base em entidades clínicas fixas, endurecidas, coisificadas, os chamados transtornos. Munida deste apriorismo metodológico, a pesquisa clínica não avança, não descobre, não cria, não inventa, desconhecendo o que se passa de fato com o paciente (ele não é escutado, ao contrário)  bem como com as causas do seu estado psíquico "alterado". É uma constatação prática, até certo ponto óbvia. Olhe em torno, escute relatos, leia artigos e livros de psiquiatria. É tudo atual. O pensamento está ausente. Há ainda um dado complicador: o enquadre teórico dessa psiquiatria notoriamente conservadora (em termos técnicos, teóricos e políticos) conta com traços de déficit cognitivo. Eles travam o diálogo, o que leva a psiquiatria a buscar ajuda de fora. São as neurociências. Uma teologia científica que segue um cortejo sináptico de importantes descobertas imagéticas. No entanto, tais imagens, feitas para serem vistas no écran, passam a funcionar num regime de visibilidade onipresente, constituindo o próprio universo institucional dessa especialidade: transtornos mentais-recheados-de-imagens, descarnados, desossados, cadáveres gordos. Nada explicam. Deveriam ser explicados.


A.M.

Não entendo o porque das pessoas pensarem sempre no pior e não no mais provável que é pior ainda.


George Carlin

Dave Stryker Trio - Live at Smalls Jazz Club - New York City - 3/26/22

O CONCEITO EM DELEUZE

Como muitos se propõe a falar de filosofia e dar-lhe uma definição, então precisamos começar limpando o terreno das más definições, das definições fracas, mancas, em uma palavra: inconsistentes. Comecemos então com a definição negativa, afinal, o que a filosofia não é?

Vemos ao menos o que a filosofia não é: ela não é contemplação, nem reflexão, nem comunicação

Contemplação: a filosofia não é contemplação porque ela não é desinteressada… Aos que respondem que a filosofia não serve para nada, Deleuze retribui com uma gargalhada galhofeira. Mas no fundo é triste que alguns pensem assim. Se a Filosofia é contemplação sem interesse algum, então sua utilidade é nula! De que adianta contemplar o mundo das ideias e tropeçar em uma pedra aqui? O filósofo não possui compromisso nenhum com o Universal, não está nem preocupado com isso, porque seu ato de filosofar é pura e simplesmente criar conceitos. Conceitos estes absolutamente singulares, quase particulares, que preencherão o plano de imanência.

Comunicação: a filosofia também não possui compromisso algum com o consenso. O meio termo é uma aberração para ele! Em sua função, o filósofo não espera que os conceitos sejam aceitos nem compreendidos por todos. Pelo contrário, quantas vezes a filosofia não cria o desconforto, a angústia? Os conceitos possuem fundamento e não se rendem à opinião geral. A voz do povo é a voz de Deus? Pois bem, diz o filósofo, Deus está morto! Não podemos esperar do filósofo uma comunicação que esclareça e crie consenso, ele não está preocupado com isso. Devemos fugir das discussões e comentários de internet, a filosofia tem mais o que fazer… Cada um tem a filosofia que merece, alguns, inclusive, não possuem nenhuma.

Reflexão: O horror da filosofia às discussões nos leva à última proposição negativa. Quem disse que é necessário a filosofia para refletir? Ora, de modo algum! Podemos refletir com qualquer outra coisa, com as árvores, com uma música, com um poema, com números. O matemático não espera o filósofo para refletir sobre seus problemas. O biólogo não espera o filósofo para refletir sobre os animais. O poeta não espera o filósofo! Ninguém espera a filosofia para pensar (talvez por isso o filósofo possa, mais do que ninguém, habitar a solidão). O pensamento habita a filosofia, mas não é exclusivo de seu campo.

A filosofia não possui compromisso nenhum com o Universal, com o consenso ou com a doxa (opinião). Seus caminhos são outros, ela opera por singularidades. Para Deleuze e Guattari, o conceito será o centro da filosofia, sua razão de ser; podemos resumir tudo em uma fórmula simples: Filosofar = criar conceitos. Pode parecer estranho em um primeiro momento, talvez prático demais. Quer dizer então que os conceitos não estão escondidos por trás dos fenômenos, ou brilhando no céu? Sim, é exatamente isso, filosofar é a prática de criar, inventar, construir, talhar e dar consistência aos conceitos. E podemos ir além, não há altar para os conceitos, eles precisam ser arrancados do ato do pensamento.

Rafael Tindade do site "Razão inadequada"

quinta-feira, 24 de março de 2022

Poema sobre a recusa


Como é possível perder-te

sem nunca te ter achado

nem na polpa dos meus dedos

se ter formado o afago

sem termos sido a cidade

nem termos rasgado pedras

sem descobrirmos a cor

nem o interior da erva.


Como é possível perder-te

sem nunca te ter achado

minha raiva de ternura

meu ódio de conhecer-te

minha alegria profunda.


Maria Teresa Horta

domingo, 20 de março de 2022

SEM  IDENTIDADE

O olhar da diferença é um olhar cego. Ele não vê, apenas enxerga. Capta impressões vagas e exatas. Trabalha no detalhe ínfimo das coisas. Formiga por todo o corpo. Opera como quando se diz: "o amor é cego". Não que a diferença seja o amor, até porque este não existe como coisa, substância, essência, objeto sólido, propriedade, mas como o acontecimento-amar. Ir além, é pois amar o acontecimento como o que não retorna jamais, e que sempre volta com a manhã profunda e leve. Isso é antigo e ao mesmo tempo novo. No exercício dos seus paradoxos, nas cambalhotas do pensamento da alegria, o olhar da diferença é mais que um olhar, muito mais que a perspicácia e a doçura desse olhar. O "amar" enxerga nas trevas, orienta-se por sensações, é pura arte. Questão ética: a potência. É uma prática de vida, um estremecimento, um frêmito, um grito silencioso, um instante lunático. Está encravado nas horas em que Virgínia Woolf captou com todas as suas forças, com todo o esplendor da poesia que viveu. Sem limites para criar. 

A.M


 

sábado, 19 de março de 2022

sexta-feira, 18 de março de 2022

BaianaSystem - Lucro (Descomprimindo)

QUÍMICA: MODO DE USAR

O remédio compõe a paisagem  dos consultórios. Ele expressa  o olhar direto do psiquiatra. Antes  mesmo de ver o outro, o olho do significante absoluto  empreende  o ato de medicar antes de viver e decifrar um fascies. A aparência não aparece.  O remédio é uma arma tornada amena e humana em mãos prescritivas e rápidas. Nada contra a sua eficácia comprovada em neuro-experimentos insuspeitos. Trata-se de outra coisa: o desejo. O fármaco lamina formas de vida, nivela subjetividades, enxuga paixões. Ao que tudo  indica,  ele  chega pronto para uma ação bioquímica definida.  O outro,  traste humanizado em nome do paciente, é o próprio. Remediar a condição  humana, quem não tentou? É preciso ser prudente no ato de medicar. A hora da alienação consentida domina as mentes, inclusive as do último ouvinte da loucura. Afaste-se  da demanda criada pelo fármaco salvador. Isso livra a concepção racional  da diferença  e a substitui  pela alegria: universo de potências múltiplas. O psicofármaco tripudia das mentes inferiorizadas pelo sistema dos valores de troca do mercado. Um coração fenece sempre que a dobra do tempo incide sobre o ser  imóvel.  Ao contrário,  use a posologia dos afetos.  Palavras técnicas dão lugar a vôos baixos. Vá no rumo da mais louca abstração. Espécies esquecidas. Lovecraft.


A.M.

ORQUÍDEAS ETERNAS


 

SER DE ESQUERDA,  SER DE DIREITA

Esquerda e Direita não remetem as essências. Elas são (ou deveriam ser) apenas linhas subjetivas usadas para um balizamento político. O que mudar? Por que mudar? Como mudar? Para que mudar? Mudar para quem? São questões amplas para problemas concretos. Todos (não só os políticos) falam em mudanças. Ninguém deixa de falar em mudanças, mormente num país com graves problemas. Seguindo um pensamento das multiplicidades existenciais, é possível falar em muitas esquerdas e em muitas direitas. Tudo vai depender de uma análise das instituições (formas sociais) em jogo num dado momento histórico. Seja um indivíduo: ele pode ter linhas de esquerda e de direita misturadas, entrelaçadas, ao ponto de não ser possível distingui-las. Então, será preciso obter um conceito que abranja um desejo de mudança atravessando modos de subjetivação. Não indagando "quem sou?" (uma identidade) mas: à medida em que o tempo passa, em quem me torno? Ora, se o tempo passa é porque tudo muda, queiramos ou não. Assim, o conceito de "irreversibilidade do tempo" é o que  serve para pensar a esquerda e a direita para além das essências ou das formas imutáveis. Não existe essência. O cidadão que acredita encarnar em si mesmo a esquerda ou a direita nutre-se de um imaginário narcísico e paranóico. Somos simultaneamente esquerda e direita postos sob um solo de incessante mudança, ainda que imperceptível. E para lidar com a vertigem do tempo que passa e não volta e com o dualismo grotesco esquerda~direita que busca tamponá-lo, a arte é a linha afirmativa, não a monumental ou a mercantil, mas a arte como estilo ou invenção de vida, de alegria e de possibilidades (infinitas) de criação de um novo mundo. A utopia revolucionária resiste (mesmo encurralada pelo fascismo e seu cortejo mortuário) com toda a potência e necessidade atuais. Ela compõe o desejo e a sociedade como o que há de mais digno para escapar do buraco ético em que a civilização se meteu.


A.M. 




quinta-feira, 17 de março de 2022

ela tem os olhos azuis

mais verdes que vi

a poesia arrebenta

em suas praias de carne


A.M.

AFETOS E CORPOS

Os afetos são a consistência do real subjetivo que se expressa como real objetivo. Eles são o próprio real, encontro de corpos com corpos. O corpo-a-corpo do tempo. Não organismos, mas corpos. Afetos não são passíveis de codificações fixas como tenta fazer a psiquiatria biológica e outras instituições.  Ao cunhar o logro da ansiedade-doença, do pânico-doença, da depressão-doença, da fobia-doença, entre outros, a psiquiatria entroniza a burrice erudita.  É que eles, os afetos, sempre vazam, muitas vezes inomináveis, quando, por exemplo, nem uma só palavra expressa o que alguém está sentindo. O que dizer? Eles são abstratos!  Usamos esse termo fora da acepção ordinária. Trata-se de algo sem medida, sem forma e invisível, essencialmente concreto, fluxo de corpos querendo conexões infinitas para além de toda regra social e de toda moral. Enfim, o desejo.


A.M

quinta-feira, 10 de março de 2022

PARA UMA  ANÁLISE DA MEDICINA

É possível uma análise da medicina seguindo duas linhas conceituais ( entre outras). A primeira é a linha institucional. Refere-se à inserção política da medicina na sociedade a que pertence. Como  no caso brasileiro, a sociedade é capitalista, a medicina funciona como forma social conectada ao processo de produção de mercadorias. Os atendimentos médicos, os serviços, as consultas, as técnicas, os exames, etc, tudo é mercadoria exposta na vitrine do mercado. Isso obedece ao método do capitalismo, o capital. Uma das consequências práticas de tal linha de pesquisa é ir contra um certo humanismo natural da medicina, outrora cercado por doce aura de romantismo. Acreditava-se (acredita-se?) que a medicina queria sempre o bem do paciente e que ser médico era uma profissão "linda" (sem ironia).A segunda linha conceitual diz respeito à visão epistemológica. Ela prioriza as relações de causalidade linear, a observação e descrição de objetos sólidos, mensuráveis e visibilizáveis e a compreensão mecanicista de um organismo físico-químico. Os exames de imagem são exemplos atuais e perfeitos.Está aí a enorme produção de conhecimento como efeito e a escassa produção de conhecimento como origem (etiologia) Ora, essas duas linhas (ou eixos) servem tão só como baliza teórico-prática necessária a uma visão crítica. Ao mesmo tempo não descarta os importantes serviços prestados ao paciente, mormente quando lida com procedimentos diagnósticos precisos e preciosos. E mais ainda em ações velozes nas terapêuticas de emergência. Como diria um bioquímico, a Emergência "tira gente da cova". Em suma, esse breve artigo tenta sobretudo por a medicina como um empreendimento social, mesmo que se mostre obra de algum doutor (o médico) ou expresse o indivíduo como único beneficiário (o paciente). Assim, para além de uma relação dual, a medicina é uma relação coletiva, entendendo o coletivo como a multiplicidade do ser humano. Trata-se de uma ética de vida, ética da potência que precede (ou deveria preceder) as duas linhas referidas. 

A.M

quarta-feira, 9 de março de 2022

O QUE É UMA PSIQUIATRIA MENOR?

É uma psiquiatria da alma. Não a alma usada nas religiões, mas a alma do mundo das coisas,  a que se desloca veloz e invisível: o pensamento. A psiquiatria cuida disso. Ou deveria. Pelo menos, quando ele, o pensamento, sai dos trilhos...

Uma psiquiatria menor busca captar o paciente através de percepções finas e encontrá-lo onde jamais alguém o encontrou. Uma ética de força e criação guia suas ações, mesmo as farmacológicas.

Seu instrumento de pesquisa e intervenção prática (clínica) é uma psicopatologia aberta às mil influências (saberes) do que está longe e ao mesmo tempo muito perto. O objetivo é sondar o fora,  não como espaço físico mas como ligação invisível ao cosmos aqui em terra firme. É uma psiquiatria do real.

Considera antes de tudo, os corpos-em-relação, os corpos-em-vibração,  o que move o paciente e o técnico: afetos. 

Nesta concepção, a política existe como trama de poder na qual a clínica está incluída.  Para além ou aquém do regime binário direita/esquerda, tal visão clínica é apaixonada pela diferença, pela singularidade e pelo múltiplo.

Uma psiquiatria menor é grande. Psiquiatras neuro-maníacos lhe são estranhos.


A.M.

segunda-feira, 7 de março de 2022

Nós estamos piorando cada vez mais e eu considero o ser humano um caso perdido. E falo isto com a mágoa de quem queria ser um santo. O único ideal que eu teria na vida, se fosse possível realizá-lo, era ser um santo. Eu queria ser um sujeito bom. A única coisa que eu admiro é o bom, fora disto não admiro mais nada.


Nelson Rodrigues

Rosa Passos - "Juras" (Festa/1993)

domingo, 6 de março de 2022

ela tem os olhos azuis

mais verdes que vi

a poesia arrebenta

em suas praias de carne



A.M.

sábado, 5 de março de 2022

JOHNNY ALF

A VERGONHA DE SER HOMEM

"Se não se experimenta a vergonha de ser homem, não há necessidade de fazer arte. Eu creio que um dos temas do pensamento é uma certa vergonha de ser um homem. Creio que o homem, o artista, o escritor que disse isso mais profundamente foi Primo Levi... "A vergonha de ser um homem" é uma frase esplêndida, mas é ao mesmo tempo muito concreta, nada abstrata. Ele não quer dizer as besteiras que querem que ele diga. Ele não quer dizer que somos todos assassinos ou culpados... Não quer dizer que os carrascos e as vítimas sejam os mesmos. Não nos farão crer nisso, não nos farão confundir o carrasco e a vítima. A vergonha de ser um homem não quer dizer que todos sejam parecidos... A vergonha de ser um homem quer dizer: como os homens puderam fazer isso? Como homens, que não eu, puderam fazer isso? E, em segundo lugar, como eu mesmo, sem me tornar um carrasco, pude pactuar tanto para sobreviver e carrego essa vergonha de ter sobrevivido no lugar de certos amigos que não sobreviveram? É então um sentimento muito complexo. Eu creio que na base da arte há esta ideia ou este sentimento muito vivo de uma certa vergonha de ser um homem... A arte consiste em liberar a vida que o homem aprisionou. O homem não cessa de aprisionar a vida, de matar a vida. É uma defesa da criação como forma de resistência aos poderes que submetem as potências da vida. A confusão entre poder e potência é ruinosa, porque o poder sempre tem por objetivo separar as pessoas submetidas daquilo que elas podem... A potência é o prazer da conquista, não a conquista que leva à submissão das pessoas, mas aquela que tem o mesmo sentido de quando se diz que um pintor conquistou uma cor."

G.Deleuze

Pedro Mariano - Aos Nossos Filhos (Ao Vivo)

abri a porta

saí voando


não era sonho

estava amando



Nildão


 

quarta-feira, 2 de março de 2022

O que é arte em saúde mental?


Como foi dito, a saúde mental não é uma questão médica. É social. A medicina vem depois.

No entanto, o pensamento clinico costuma obedecer a ciência. Que comanda e prescreve.

Por toda a parte, técnicos de "branco", munidos de seringas e ampolas, mesmo que imaginárias,  tentam escutar, acolher e cuidar.  Tudo funciona a partir dessa consciência ética. 

É parte do trabalho da equipe de saúde mental num serviço de atenção psicossocial. 

Essa equipe lida com estranhas imagens (induzidas) das ruas: cérebros avariados, sinapses inquietas, neurônios aflitos, doidos varridos. Fantasmas reais assombram a Hora do acolhimento.

O acolhimento é um dispositivo técnico criado na história dos caps. Ele se baseia na ética da recusa à exclusão do paciente vindo dos tempos do manicômio. Tem uma feição de consulta ou triagem. Mas não é.

Daí, a questão da arte passa a ser hoje a escuta como miolo do acolhimento. Tal manejo só é possível se o técnico se separar do pensamento racional em direção ao pensamento da arte.

O pensamento da arte é um pensar livre. 

O pensamento das sensações.

E nem é preciso que o técnico seja um artista. Basta que ele "viaje" (pelo menos na hora do encontro) do pensamento da ciência para o pensamento da arte: uma linha de criação se esboça como clínica do Novo.

Trata-se de uma sensibilidade, ou melhor, de mil sensibilidades vividas a partir das sensações que o paciente produz em nós. 

A arte em saúde mental implica, pois, numa visão da clinica para além de toda moral julgadora.E de toda idolatria à ciência.

Experimente.

Escutar é arte, acolher é arte, cuidar é arte. 


A.M.