sábado, 30 de julho de 2022

COMO SE CHAMA?

Isso se chama caos subjetivo. É o caos no próprio espírito. A imaginação é um caos subjetivo. Se por acaso houver um enfraquecimento desse conjunto de regras que governa o sujeito que nós somos, esse caos sobe. Ele não para de subir, nos ameaça o tempo inteiro. As grandes filosofias sempre o encontraram, não há filosofia que não o tenha encontrado. O sonho, o delírio, a loucura – é esse caos tomando conta de nós. Então, a função desse conjunto de regras é afastar o caos subjetivo. E essas regras o vencem produzindo um tempo que se orienta do passado para o futuro. É isso que se chama bom senso: a orientação do tempo do passado para o futuro. (…) O bom senso nunca nos deu a realidade do abismo do tempo. (…) (…) Se o caos é criador, e se a vida se afasta dele, ao se afastar, ao constituir um conjunto de regras, perde o poder de criação. 


Cláudio Ulpiano

quinta-feira, 28 de julho de 2022

O  QUE EXISTE

Não existe A depressão. Existem as depressões. Isso faz toda a diferença na hora de diagnosticar uma depressão, pois ela é composta por linhas singulares (e múltiplas) do desejo. Vindo da psiquiatria hegemônica, o achatamento existencial  produzido sobre os pacientes faz por tornar a depressão uma doença das sinapses enguiçadas. Com todo o respeito às sinapses, elas só funcionam graças ao que chega de fora, ou seja, do  mundo. No entanto,  ainda não dissemos nada sobre o assassinato de almas cometido em nome da ciência... 

A.M.

A IMPESSOALIDADE DO POETA

Não é que o poeta pense incessantemente em todas as coisas do mundo, elas é que pensam nele. Estão nele, dominam-no. Mesmo suas horas áridas, suas depressões, suas confusões, são estados impessoais, correspondem aos sobressaltos do sismógrafo, e um olhar que seja suficientemente profundo poderá ler nele segredos ainda mais misteriosos do que nas próprias poesias.


Hugo von Hofmasnnsthal - in O Poeta e Este Tempo

Marne van Opstal - Netherlands Dance Theatre 1

 Faltam  67  dias

segunda-feira, 25 de julho de 2022

 CHEIROS


Fico quieto. Primeiro que paixão deve ser coisa discreta, calada, centrada. Se você começa a espalhar aos sete ventos, crau, dá errado. Isso porque ao contar a gente tem a tendência a, digamos, “embonitar” a coisa, e portanto distanciar-se dela, apaixonando-se mais pelo supor-se apaixonado do que pelo objeto da paixão propriamente dito. Sei que é complicado, mas contar falsifica, é isso que quero dizer — e pensando mais longe, por isso mesmo literatura é sempre fraude. Quanto mais não-dita, melhor a paixão. Melhor, claro, em certo sentido que signifíca também o pior: as mais nobres paixões são também as mais cadelas, como aquelas que enlouqueceram Adele H., levaram Oscar Wilde para a prisão ou fizeram a divina Vera Fischer ser queimada feito Joana d’Arc por não ser uma funcionária pública exemplar. 

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E se realmente gostarem? Se o toque do outro de repente for bom? Bom, a palavra é essa. Se o outro for bom para você. Se te der vontade de viver. Se o cheiro do suor do outro também for bom. Se todos os cheiros do corpo do outro forem bons. O pé, no fim do dia. A boca, de manhã cedo. Bons, normais, comuns. Coisa de gente. Cheiros íntimos, secretos. Ninguém mais saberia deles se não enfiasse o nariz lá dentro, a língua lá dentro, bem dentro, no fundo das carnes, no meio dos cheiros. E se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de amor? Quando você chega no mais íntimo, No tão íntimo, mas tão íntimo que de repente a palavra nojo não tem mais sentido. Você também tem cheiros. As pessoas têm cheiros, é natural. Os animais cheiram uns aos outros. No rabo. O que é que você queria? Rendas brancas imaculadas? Será que amor não começa quando nojo, higiene ou qualquer outra dessas palavrinhas, desculpe, você vai rir, qualquer uma dessas palavrinhas burguesas e cristãs não tiver mais nenhum sentido? Se tudo isso, se tocar no outro, se não só tolerar e aceitar a merda do outro, mas não dar importância a ela ou até gostar, porque de repente você até pode gostar, sem que isso seja necessariamente uma perversão, se tudo isso for o que chamam de amor. Amor no sentido de intimidade, de conhecimento muito, muito fundo. Da pobreza e também da nobreza do corpo do outro. Do teu próprio corpo que é igual, talvez tragicamente igual. O amor só acontece quando uma pessoa aceita que também é bicho. Se amor for a coragem de ser bicho. Se amor for a coragem da própria merda. E depois, um instante mais tarde, isso nem sequer será coragem nenhuma, porque deixou de ter importância. O que vale é ter conhecido o corpo de outra pessoa tão intimamente como você só conhece o seu próprio corpo. Porque então você se ama também. 

Caio Fernando Abreu

PHILIP GLASS - Move to Dungkar

Pelo Telefone


Você me liga querendo saber

o que estou fazendo neste exato minuto.

Ando meio agitado.

Neste exato minuto estou consertando a janela

que ficou torta desde a morte de Amélia.

Estou no terceiro Cutty Sark

e devendo um monte de grana.

Pior que a janela continua torta

e Amélia continua morta.

Meu amigo foi demitido anteontem

por um babaca que era oposição

mas hoje não é mais não.

Agora mesmo aquela mesma ideia

volta a sacudir minha cabeça

e não consegue transformar-se em nada.

Uma idéia não quer dizer nada.

Sou um projeto muito arriscado.

Acho que vou desligar.

A respeito do velho mestre

a melhor coisa ainda é o livro do Truffaut.

Eu tinha, mas emprestei pra Martinha.

Vou desligar.

A melhor coisa é o intervalo preciso

entre as emoções mais fortes.

Só duas ou três, como nos bons filmes.

Neste momento

procuro encontrar no escuro

o outro par do meu olhar perdido.

Neste exato minuto

estou comendo o fio do telefone.


Eudoro Augusto

🔴 QUAL GOLPE?

INCONSCIENTE-PRODUÇÃO

Não negamos que haja uma sexualidade edipiana, uma heterossexualidade e uma homossexualidade edipianas, uma castração edipiana - objetos completos, imagens globais e egos específicos. Negamos que sejam produções do inconsciente. Mais ainda, a castração e a edipianização engendram uma ilusão fundamental que nos faz crer que a produção desejante real é passível das mais altas formações que a integram, submetem-na a leis transcendentes e fazem-na servir a uma espécie de 'descolamento' do campo social em relação á produção do desejo, em nome de que todas as resignações são justificadas por antecipação.

G. Deleuze e F. Guattari  in O anti-édipo

domingo, 24 de julho de 2022

ALEXANDER BOLOTOV

 


meu avô não gostava de agosto

dizia agosto mês de desgosto

quando passava dizia agora não morro mais


Angélica Freitas

NOITE VAZIA, de Walter Hugo Kouri, 1964 (filme completo)

TEMPO E CLÍNICA

Em psicopatologia clínica, considerar a relação tempo-subjetividade é essencial. Ela deriva de concepções do tempo implícitas. O tempo é uma categoria teórica que pode ser vista de múltiplas formas. Escolhemos duas por serem referências de destaque:1-como elemento vivencial da chama temporalidade, ao modo da fenomenologia; 2- como conteúdo do processo desejante (devir) segundo a visão de H. Bergson. O que distingue as duas concepções? A fenomenologia, considerando a linha passado-presente-futuro, aloca a subjetividade na consciência-do-tempo, ou seja, no espaço da representação. Isso torna a riqueza da vivência submetida ao "peso" de uma identidade a ser buscada na ordem do eu. O tempo=do-eu é um tempo endurecido no presente que não passa. Isso ocorre, por exemplo, na vivência melancólica. O paciente é espremido no hoje.  O passado o acusa, enquanto o futuro o ameaça. Quanto ao tempo do devir, trata-se de outra coisa. Há só o Instante fugidio que é cortado sem cessar em passado/futuro num processo irreversível. Uma vertigem. A consciência, enquanto intencionalidade, é posta como efeito dos devires que lhe atravessam e a constituem. Ela não é lugar de uma verdade a ser descoberta, ou de uma luz, nem mesmo numa origem dos afetos.  Estes é que circulam livres em arranjos que se compõem como seta para o futuro, o tempo como criação, invenção de mundos. Pode-se assim dizer que o trabalho do tempo, numa inspiração bergsoniana, vai na trilha de uma subjetividade-em-processo. Não há uma forma subjetiva estabelecida de antemão, mas a se produzir no fluxo e na superfície dos encontros.


A.M.

sábado, 23 de julho de 2022

Calvin Harris, Dua Lipa - One Kiss (Lyrics)

 IMPRESSOS INÚTEIS


Não sei por que os guardo

nessa gaveta íntima.

O certificado de reservista.

O diploma de pós-graduação.

O mapa esperto pra uma festa chata

que rolou uns três meses atrás.

Felizmente não compareci.


Eudoro Augusto

todo mundo é ateu

QUEM MATOU MAIS? DEUS OU O DIABO?

Na Bíblia, dá Deus, de goleada. De acordo com os relatos do livro, o Todo-Poderoso é responsável por exatas 2 270 365 mortes, enquanto o coisa-ruim ostenta em seu currículo de maldades apenas 10 eliminados. Esse surpreendente levantamento foi feito pelo blogueiro americano Steve Wells, editor do site Skeptic’s Annotated Bible (“A Bíblia Anotada do Cético”), skepticsannotatedbible.com, que reproduz a Bíblia em versão online e comentada. Depois de vasculhar todas as mortes narradas no livro, Steve publicou os dados na internet.

Segundo ele, mais de 99% das mortes em nome do Senhor estão no Velho Testamento – a maior matança foi quando Deus destruiu todas as cidades nos arredores de Gerara, na Palestina, tirando a vida de 1 milhão de pessoas. No Novo Testamento, só 3 pessoas foram mandadas desta para a melhor pelas mãos do Criador: o rei Herodes, Ananias e sua esposa, Safira. Já o Diabo é responsável pela morte dos 10 filhos de Jó. Steve diz ainda que a lista de vidas tiradas tanto por Deus quanto pelo Diabo pode ser muito maior. “Só no dilúvio, quando Ele pediu a Noé para construir a arca, cerca de 30 milhões de pessoas teriam sido varridas do mundo. Mas, como é um total difícil de estimar, só somei as mortes cujos números são especificamente citados na Bíblia”, diz ele.

Para quem acha que Steve é um ateu incendiário, uma surpresa: ele é mórmon e diz que não quis causar polêmicas com o levantamento. “Sou um cara religioso e temo a Deus. Principalmente agora.”

Rafael Tono, Superinteressante, junho de 2008

sexta-feira, 22 de julho de 2022

DELEUZE-GUATTARI - O monstro bicéfalo


 

A vocês, eu deixo o sono.

O sonho, não!

Este eu mesmo carrego!


Paulo Leminski

Operação no Complexo do Alemão (RJ) foi a quarta mais letal da história

A letalidade das forças de segurança do estado em comunidades do Rio de Janeiro vem crescendo. Somente nos últimos 14 meses, a capital fluminense registrou três das quatro operações mais letais de toda a história. Nesse período, foram 72 mortos em apenas três ações na cidade do Rio.

A mais letal entre todas as ações envolvendo agentes públicos aconteceu no Jacarezinho, na Zona Norte, em maio de 2021, quando 28 pessoas morreram. Um ano depois, em maio de 2022, 25 pessoas foram mortas durante uma operação policial na Vila Cruzeiro, também na Zona Norte.

Nesta quinta-feira (21), uma ação com policiais militares e civis resultou em mais 18 mortos durante a incursão no Complexo do Alemão, outro conjunto de favelas da Zona Norte do Rio. Entre os assassinados estão uma mulher, um policial e 16 suspeitos, segundo a PM.

Na sexta-feira, dia seguinte à operação, quando era mantido o reforço policial na região, mais uma moradora foi morta durante tiroteio.

As três operações organizadas por forças de segurança pública estão em destaque em uma lista que contabiliza mortes, mas que também retrata a rotina de quem vive em comunidades carentes na Cidade Maravilhosa.

G1, Rio, 22/0702022,atualizado há 1 hora.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

A Última Sessão de Música - Cida Moreira

PARA ALÉM DA CRÍTICA

A nossa crítica à psiquiatria não é uma crítica, é uma clínica. Ora, é comum à Crítica expressar um elemento paranóide que toma o seu objeto como perseguidor. Não é o caso. Além disso, sob as condições atuais do capitalismo axiomático aparentemente vencedor, a Crítica se torna um dispositivo social inofensivo e que adocica o discurso midiático em redundâncias sintáticas, semânticas e performáticas. Uma dominação semiótica se instala como verdade. Confira as ladainhas (reportagens) globais. Isso vai até o infinito...como efeito subjetivo. Mas há outros discursos mais pomposos. A universidade, por exemplo, traz uma verdade revelada e cauciona a psiquiatria oficial como transcendência do Conhecimento. Desse modo, aquieta paixões e resfria intensidades da prática clínica. Ao contrário, buscamos o avesso da história psiquiátrica canônica como ação de resistir aos biopoderes no interior da própria psiquiatria, da própria clínica, da  psicopatologia agonizante.

A.M.




PRESIDENTE DA FUNAI EXPULSO DA ONU

CONTAGEM REGRESSIVA


Faltam

163 dias

11 horas

42 minutos

3 segundos


Como identificar o fascismo? parte 4

Há 100 anos (Itália, 1922)  nascia o fascismo de Mussolini.Ao seguir na história, esse movimento político inspirou outros regimes e plagas (Alemanha, Portugal, Espanha, etc) tornando-se referência até para a dita esquerda. No entanto, à medida em que a sociedade industrial avança , e com ela a tecnologia da imagem, o fascismo se fez diferenciar do totalitarismo. Para obter a dominação e o controle de milhões, formas sociais (instituições) passaram a utilizar métodos com micro-efeitos nas populações, no que Félix Guattari chama de microfascismos. Sem esse nível de “persuasão mental” o controle dos corpos e mentes se revelaria ineficaz. Dominar de modo explícito cede lugar ao controle sobre sujeitos sem que estes saibam que estão sendo controlados e mais, que gostem de ser controlados. Óbvio que dominar “por dentro” sempre existiu, ainda que  pelo terror induzido na mente dos supliciados. Mas falamos de outra coisa. 100 anos de fascismo foram suficientes para a produção em série (escala planetária) de pessoas humanas que adotam o capital com ponto hegemônico de subjetivação e desejem isso não só para si mas para todos, ou seja, para o restante da população mundial. Um processo “natural” é induzido por agências de controle, mormente os Estados nacionais e o grande sistema internético com suas mídias afiadas num plantão ad aeternum. Não falar de fascismo?  Sim, pois é difícil identificá-lo no coração das pessoas de bem. Se este sentimento de “viva a morte” se instaura e age à revelia do seu portador, a possibilidade de auto-eliminação existencial surge como pressuposto subjetivo. “Que eu morra, mas que permaneçam os valores em que acredito”. Tal é o refrão macabro (inconsciente) do cidadão comum para guerras modernas promovidas pelo Estado. Uma linha suicidária passa a ser o dado natural da vida. Morrer pela pátria equivale a morrer pela família, pela escola, pela religião, pela medicina,  por todas as formas sociais, enfim, de transcendências ( o além da vida).  Isso credita e legitima a existência das sociedades sempre regidas pelo capital, este não só como categoria de lucro econômico, mas como fábrica de imagens para um gozo paranóico. O sentimento fascista se interiorizou a um ponto tal que terá deixado de existir? Estaremos num universo linguístico de redundâncias? Na linha de montagem da subjetividade, parece irreal e fantasioso o parto de um outro mundo no interior deste. É proibido pensar.

A.M.


quarta-feira, 20 de julho de 2022

O CONSELHO DEFINITIVO PARA QUEM QUER ESCREVER, por CAIO F. ABREU

CLÍNICA E TECNOLOGIA DA IMAGEM - III


Numa acepção deleuziana, o acontecimento pode ser definido como um encontro de corpos, humanos e/ou inumanos, no qual e do qual emerge o Sentido. Assim. o sentido nunca é dado, nunca é "um estar lá", mas sim produzido no próprio ato do Encontro. É possível notar que a realidade virtual substituiu a realidade do Encontro (daí, a dos corpos) pela realidade da imagem, profusão de imagens sobre imagens, realidade descarnada, mas Realidade subjetivamente  assimilada como Verdade. Dissemos que a tecnologia da imagem não é um mal em si, mas um signo de poder acelerado a uma velocidade não captada pela Consciência. A velocidade é quem (sujeito) captura a consciência. Um encontro de corpos fica, então, descartado em prol da verdade da imagem, inclusive a imagem de si. Segue-se o empreendimento desejante de um profundo estilhaçamento do eu, beirando a psicose ou nela se instalando. Tempos esquizofrênicos, como previu Guattari. Ora, para uma psiquiatria atravessada por tais fluxos, há duas opções ético-políticas: 1- Encolher-se sob o discurso epistemológico das neurociências, detentor de uma verdade reificada, reificante e erguer o manto acadêmico como anti-autocrítica. 2-Abrir-se, estender-se sobre o campo social em suas formações discursivas caóticas e inventar clínicas à altura do horror dos tempos que correm. Fazer o acontecimento.


A.M.


 

UM SONHO


Sonhei, entre visões da noite escura, 

com a alegria morta, mas meu sonho 

de vida e luz me despertou, tristonho, 

com o coração partido de amargura.


Ah! que não vale um sonho à luz do dia 

para aquêle que os olhos traz cravados

nas coisas que o rodeiam e os desvia 

para tempos passados?


Aquêle santo sonho, sonho santo, 

enquanto o mundo repelia o pária, 

deu-me o confôrto, como luz de encanto 

a conduzir uma alma solitária.


E embora a luz, por entre a tempestade

e a noite, assim tremesse, tão distante,

que poderia haver de mais brilhante

no claro sol da estrela da Verdade?


Edgar Allan Poe

(tradução - Oscar Mendes)


A DREAM

In visions of the dark night

I have dreamed of joy departed —

But a waking dream of life and light

Hath left me broken-hearted.


Ah! what is not a dream by day

To him whose eyes are cast

On things around him with a ray

Turned back upon the past?


That holy dream — that holy dream,

While all the world were chiding,

Hath cheered me as a lovely beam

A lonely spirit guiding.


What though that light, thro' storm and night,

So trembled from afar —

What could there be more purely bright


Edgar Allan Poe 


 

terça-feira, 19 de julho de 2022

VIAGENS DE MIGUEL

O Encontro com uma criança, Miguel.  Como dizê-lo? Apenas que circula livre nas colinas verdes do meu pensamento. E brilha como um dia amante. Nada abstrato, já que ele está bem à minha frente (nesse momento) e diz: "pai, o que é a diferença?" Falo que não sei, bem, quer dizer, não sei lhe responder, já que a diferença rigorosamente não é, ela não está, ela vai, ela corre, flui num corpo se fazendo e a se fazer. A diferença é o devir. Tampouco é uma questão de saber, mas de sentir, perceber. A diferença é um certo jeito do afeto, o desejo em suas multiplicidades de risco. Ele não entende bem o que digo e volta a indagar: "mas onde ela anda, onde está?". A resposta vem súbita como num clarão-surpresa:  a diferença está em você, ó criança, a diferença é você, correndo e escorrendo pelos campos, montanhas, matas e flores, ventanias de um tempo infindo. Sossegue, você entende: por onde andar, os fluxos da diferença extrairão da sua beleza o sentido, mesmo o sentido do não sentido de viver. E cultivarão a alegria no meio das brutalidades do humano em volta. Tudo porque você é o amar como acontecimento, o sem retorno, o irreversível, o sem explicação, o sem razão, o sem nome. Antes de tudo,  poesia,  música e dança das florestas.


A.M.

TAIGUARA- Helena, Helena, Helena (Audio)

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Como identificar o fascismo? parte 3

Na experiência fascista está embutida a questão da verdade. Sob condições sócio-históricas e politicas muito amplas, isso conduz o destino de milhões: o Estado, a Nação, o Povo, o Poder, transcendências... A clínica psicopatológica diz: o fascismo não parece um delírio. Ele é um delírio que organiza o próprio juízo (não perdê-lo jamais) e ajuda o seu portador a produzir sentidos para a realidade atual do mundo. O fascista,  servo e devoto, é vizinho do paranóico, habitando o universo clínico da psiquiatria, talvez sem ser notado. Suas funções cognitivas estão intactas. Ao exame de sanidade mental, doença zero. Então, identificá-lo passa por categorias psiquiátricas, mas necessita ir além, até onde as linhas desejantes confluam em Certezas densas ou numa Verdade  absoluta. Rompe-se a fronteira com a forma-Religião, mas afetos subjetivos fixam uma vibração egóica. Esta se reconhece como identidade poderosa e qualifica o fascista como portador de uma mensagem de salvação política. Nas dobras da alma e na superfície da prática social, a tal identidade torna-se a verdade de cada um, ou seja, do indivíduo, ainda que o mais frágil. Pseudo-poder, universo privado, mundinho do eu. Assim se fecha o circuito da verdade, de uma verdade fabricada como território de sentido: isso é a vida, dir-se-ia... Caso ela desmorone, virá a tona a face suicidária do sentimento fascista, a qual discutiremos no próximo texto.

 

A.M.


domingo, 17 de julho de 2022

 vai ver que o apocalipse

 já aconteceu

e a gente nem percebeu


Nicolas Behr

MICHAEL FLOHR


 

garimpo


esta procura tem um nome insanidade

passei da idade de tentar fazer sonetos

eu só consigo descrever cinzas e pretos

acho que o verso não alcança claridade

pelas gavetas prateleiras escondidos

ainda agarro pelo rabo alguns cometas

quero as estrelas não encontro suas tetas

sinto a fissura dos pequenos desvalidos

a minha escrita sempre foi penosa esgrima

desde menina que não tenho paradeiro

eu caço sapo com bodoque o dia inteiro

nesta esperança de catar melhores rimas

vasculho as glebas os grotões e quem diria

bateio o sol chego a pensar que a noite é dia


Líria Porto


 

sábado, 16 de julho de 2022

Como identificar o fascismo?  parte 2


Sob uma ótica conservacionista ( e liberal) são demasiado simplórias as análises sobre o fascismo. Elas se sustentam na moral, em grande parte na moral cristã. Diz-se: coisa horrenda o grito de “viva a morte!”,  expelido da boca de cidadãos de bem, homens íntegros, pessoas humanas. Pensar assim é não pensar, é tão só “por a mão na consciência”, velho conceito teórico com usos  epistemológicos, filosóficos, psicológicos, psiquiátricos, políticos,  entre outros, para interpretar a realidade. Ao se evadir de tal  grade moralista, é possível usar o desejo como conceito operacional. Ele está fora da órbita do eu.  O fascismo,  então, é visto como construção desejante que nutre formas sociais carcomidas. Trata-se, apesar de tudo, do combustível que move as superfícies do mundo iníquo.  Uma  máquina afetiva (a história o mostra) se interioriza subjetivamente nos indivíduos (aos milhões) produzindo um sentido para a vida. “Morrer pela pátria e viver sem razão”. Ora, não há o desejo puro  e sim um composto de linhas subjetivas (forças)  em prol da hegemonia institucional do sujeito assujeitado. O discurso final fascista seria: “eu sinto, eu ajo, ...e destruo o que se move porque é sujo.” Ódio ao devir. Neste cipoal de desejos múltiplos, não há lugar para uma política dos corpos. O fascismo fez parar o tempo. Morte às minorias e ao Novo. Fiel à tradição da consciência (  a alma ), o corpo é o  organismo que deseja a si mesmo como modo de existir único e total. A fratura exposta do nazifascismo (como no Brasil de hoje) é denegada em favor do si mesmo,  apêndice existencial familiar e utilitário. O rosto mortuário das classes médias se anuncia e se revela a nu. Que o mundo vá mal desde que eu me salve.  O sentimento fascista opera uma revolução às avessas. Um ar rarefeito de oxigênio racional infecciona tempos midiáticos. Este é o limite político a ser ultrapassado. Ou não. 


A.M.  


O FASCISMO AVANÇA

terça-feira, 12 de julho de 2022

CONVERSAR


Em um poema leio:

Conversar é divino.

Mas os deuses não falam:

fazem, desfazem mundos

enquanto os homens falam.

Os deuses, sem palavras,

jogam jogos terríveis.


O espírito baixa

e desata as línguas

mas não diz palavra:

diz luz. A linguagem

pelo deus acesa,

é uma profecia

de chamas e um desplume

de sílabas queimadas:

cinza sem sentido.


A palavra do homem

é filha da morte.

Falamos porque somos

mortais: as palavras

não são signos, são anos.

Ao dizer o que dizem

os nomes que dizemos

dizem tempo: nos dizem,

somos nomes do tempo.

Conversar é humano.


Octavio Paz


 

O ENCONTRO MARCADO


Numa prática clínica da diferença em psicopatologia, o conceito de Encontro é essencial. Ele diz respeito à chance de estabelecer ligações com os afetos que circulam livremente e/ou aprisionados pelas formas sociais (por ex., a de paciente "mental"). No caso da psiquiatria biológica, da terapia cognitivo-comportamental, das psicoterapias regidas pelo senso comum, das psicologias do bom senso, das terapias religiosas, das psicanálises edipianizantes, enfim, das agências psi normatizadoras, os afetos livres (devires) rodopiam no mesmo ponto subjetivo, endurecidos em sintomas prontos a serem eliminados. Há até pacotes comerciais disponíveis para resolução em apenas 3 meses. Confira. Caso haja êxito, vão-se os sintomas e com eles o desejo. Ao contrário, é preciso encontrar-se com o sintoma já que o Encontro é condição básica para 1-usar os afetos livres para fora da configuração subjetiva dita patológica; 2- desorganizar as formas sociais especializadas em infeccionar as forças ativas. Em ambos os casos, o Encontro não se dá com uma bela alma, mas com a crueza do real múltiplo. Estão e estarão aí, por exemplo, todos os tipos de personalidades anormais que a psiquiatria conservadora engloba sob o código F.60. Ou as histerias, filhas freudianas convertidas ao século XXI e estranhas ao diagnóstico psicanalítico. Ou os pânicos urbanos gritando alto frente à dissolução das certezas do homem tecnológico. Ou as psicoses não especificadas em eus cindidos e aniquilados pelo tempo virtual. Ou corpos descarnados oscilando entre a autoflagelação e o suicídio enquanto formas de se sentirem vivos. O Encontro hoje é, pois, um encontro sem rosto fixo, sem modelo, sem eu, sem consciência, mas ainda assim um Encontro.


A.M.

BACURAU | 2019

QUEM É POETA?

A experiência poética não é só a de quem escreve o poema, mas também a de quem o lê. Em tempos de tecnologia industrial avançada e aparentemente vencedora, a poesia ocupa um lugar de criação "menor" e por isso, maior. Maior só o menor, o ínfimo. Não no sentido de uma forma "pequena", mas o "sem forma", como nos espaços infinitesimais do filme "O incrível homem que encolheu" ( Jack Arnold, 1957). A experiência poética se dá num processo de criação subjetiva (bem entendido, escancarado no mundo) onde a violência feita à sintaxe e à semântica afronta o caos no próprio terreno que é o da semiótica. Produzir signos a-significantes talvez seja a função do poeta/leitor como aventureiro de universos indizíveis. Neles também o horror está incluído. Por isso experimenta o gosto das paixões sem dono, o insólito, o sem-explicação. Ler um poema é ligar-se ao texto numa linha de fuga existencial, nem que seja por um segundo. Zero para a possibilidade de interpretá-lo ou compreende-lo, o sem-razão, o sem-governo, o sem-sentido. Um sentido que é produzido pelo leitor. Assim, a experiência poética é acessivel a todos. Basta sentir as horas no coração da Terra. Isso não é fácil.

A.M.

domingo, 10 de julho de 2022


 

Como identificar o fascismo?parte 1

Para se efetivar e operar na prática, o fascismo torna-se um sentimento. Desse modo, antes de detectá-lo nas grandes formações sociais, será preciso analisar o seu funcionamento nas pessoas, o que chamamos de microfascismo. Insistimos que sem esse nível de análise, é impossivel compreender suas motivações e causas. Ora, se ele é um sentimento (afeto triste no sentido espinosiano)  trabalha pela destruição da vida, mesmo que diga o contrário. Vimos que o disfarce e a mistura de vários sentimentos maquiam o rosto e a fala da chamada pessoa humana, conceito cristão por excelência. Assim, o grito de "viva a morte" não se faz de modo explícito, já que a pessoa, como organização subjetiva, é quem se expressa no campo das ações práticas: é uma cognição da normalidade social. O fascismo estatal ( grande e histórico fascismo) se estabelece sem ser notado, ou seja, é naturalizado junto a mil sentimentos que até podem ser contraditórios, não importa. O que vale nesse "estágio" é manter a organização da pessoa e do indivíduo como ordem interna que necessita da coesão de forças afetivas e perceptivas. A organização dos órgãos na medicina clínica é uma analogia forte. Ser afetado pelo mundo e percebê-lo sem que os signos de fora (a exterioridade) fraturem (como na ortopedia) a identidade da pessoa é uma "ordem" implícita. Assim, a pergunta "quem sou?" deve ser respondida com convicção imediata. Um território subjetivo está montado e a postos como cerne e servo da condição humana. Ele atravessa povos, raças, países.

A.M.



sábado, 9 de julho de 2022


 

Exílio

Quando a pátria que temos não a temos

Perdida por silêncio e por renúncia

Até a voz do mar se torna exílio

E a luz que nos rodeia é como grades


Sophia de Mello

Como identificar o fascismo? Uma introdução

Antes de tudo é preciso partir da análise dos microfascismos. São produções metastáticas (na oncologia se diz:  tumores secundários se desgarram do tumor primário) ,  que seguem o rumo/ritmo de destruições múltiplas. Da vida. Há  um fascismo maior (histórico) do Estado, dos partidos políticos, da grande política, etc,  que não existiria sem os  tumores subjetivos. Eles o fazem letal. O conceito de fascismo ( grande grito de "viva a morte") opera nas relações sociais como combustível de enunciados simples, inclusive os do cotidiano.  Usa o universo tecnológico da internet como campo hiper-veloz onde são editadas suas palavras-de-ordem. Quais? Veremos adiante. O que antes importa é que tais discursos convivem com mil outros discursos: religiosos, filosóficos, científicos, jornalísticos, todos voltados ao Bem. Em suma, o fascismo como método trabalha nos disfarces da produção mental. Só assim ele "pega". 

A.M.

quarta-feira, 6 de julho de 2022

CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA - 1

A produção capitalística, em tempos atuais, se dá em escala planetária: a devastação da Terra. Por isso Félix Guattari criou o conceito de Capitalismo Mundial Integrado. O CMI significa a produção subjetiva e portanto material, ou o contrário, a produção material e portanto subjetiva. "Só existe o desejo e o social". Neste sentido, infere-se que o sistema capitalístico se afirmou e se afirma em tão amplas proporções exatamente por que domina e controla os indivíduos por dentro, produzindo subjetividades robotizadas (modos de pensar, sentir, perceber e agir) que giram em torno do valor-dinheiro como abstração concretizada em bens de consumo. A servidão imunda, consentida, é querida: consome-se todo tipo de produto, incluindo sentimentos, valores, religiões, notícias, doenças, conhecimentos, assistencialismos, remédios, espiritualidades, etc. Ora, em tal universo, o sentido é produzido sem cessar como sendo o mundo mais desenvolvido, mais avançado já alcançado pelo Homem, o que é comprovado pela tecnologia científica. Sob tais condições, é muito difícil pensar diferente, ou apenas pensar! Porque não há (aparentemente) um fora do capitalismo. O sistema abarcou tudo, tomou tudo, invadiu tudo até as estruturas do inconsciente. Estamos de fato num mundo delirante (Marx o destaca no "fetichismo miraculante" da mercadoria no início de "O Capital"). A Crença maior é o delírio do capital e é para todos. Atravessa países, cidades, continentes: uma busca enlouquecida pela felicidade no exercício diário do consumo fez do homem moderno uma engrenagem plástica (onde só há uma cultura...) da máquina do capital. Como resistir a tal insânia normatizadora, religião profana, alma escrava?

A.M

NIKOLETTA KIRÁLY


 

terça-feira, 5 de julho de 2022

O que é psiquiatria?   parte 1

A psiquiatria é uma especialidade médica surgida na França em fins do século XVIII. Ai se dá a passagem (conforme Pinel) dos asilos aos manicômios.

No entanto, sua origem mais longínqua remete à existência de asilos no século VII (cultura árabe) e no século XV (ocupação árabe na Espanha). Desde então os asilos (aos poucos) passam a ser chamados de hospícios e se espalham pela Europa.

Sendo assim, a origem da psiquiatria se confunde com a origem dos asilos, dos hospícios e dos manicômios. Uma máquina institucional se prepara para encolher as mentes.

A lógica dos asilos é o DNA da psiquiatria.

Já o século XIX, chamado século dos manicômios, dá origem aos hospitais psiquiátricos conforme o modelo atual.

São conhecidas as agressões e os horrores perpretados contra pacientes internados nos manicômios europeus. Michel Foucault descreve com rigor os detalhes das torturas científicas.

No Brasil, entre outros horrores, o hospital psiquiátrico de Barbacena (criado em 1903) tornou-se um registro histórico e modelo de uma barbárie consentida. O holocausto brasileiro.

No período do estalinismo na União Soviética (1927/1957) presos políticos (quantos?) foram internados em hospitais psiquiátricos. 

No período da ditadura brasileira (1964/1985)  presos políticos (quantos?) foram internados em hospitais psiquiátricos.

A psiquiatria tem uma história pouco edificante.

No Brasil, vieram a reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial (em 1978). Mas no campo restante da medicina não há notícia de alguma reforma cardiológica, pneumológica, nefrológica, oftalmológica, etc.De fato, trata-se de uma especialidade diferente.

A psiquiatria (psicopatologia) não produziu uma teoria dos afetos, apesar da extrema importância desse conceito para o trabalho clínico na construção do vínculo terapêutico com o paciente.

O paciente psiquiátrico muitas vezes não quer ser atendido pelo psiquiatra, sendo levado por familiares ou terceiros. Contudo, na clínica médica não se tem notícia de tal recusa, que por vezes é hostil e agressiva, medo de psiquiatra.

O objeto de pesquisa e intervenção clínica da psiquiatria é invisível, impalpável e abstrato. Chamado de “mente” , não há nada parecido em pesquisa médica e metodologia científica.

Sim, uma estranha especialidade essa.


A.M

Marina Silva

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Noite Morta


Junto ao poste de iluminação

Os sapos engolem mosquitos.


Ninguém passa na estrada.

Nem um bêbado.


No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras.

Sombras de todos os que passaram.

Os que ainda vivem e os que já morreram.


O córrego chora.

A voz da noite . . .


(Não desta noite, mas de outra maior.)


Manoel Bandeira



 

sábado, 2 de julho de 2022

LINHAS DO  INFINITO

Há um limite a partir do qual a diferença não se reconhece e não mais reconhece o mundo. Um horror tão extremo e definitivo se instala: ela, a diferença, torna-se pequena e frágil. Tudo o indica. Fala-se da história da humanidade: uma brochada cósmica. A diferença não mais reconhece aí a palavra "vida" por entre escombros da própria vida. Resta o império do medo reinando entre pessoas do mal que se acham do bem. Um dualismo pérfido. Portador de uma verdade, o monstro (sem forma) do Ressentimento assombra e contamina  o dia que nasce. Aborta as micro-revoluções internas dos sonhos azuis de uma criança. Nivela os afetos. Aniquila a política, escorraça a ética e enfeia a estética. Resta a melancolia ( como um drone) sobrevoar a paisagem das pessoas monstruosas ou dos monstros pessoais. E os adornar. E os adorar. Idiotizados, o Império os nutre com a carne fria da morte em vida. Mercadoria da alma. Tudo é disfarce. Anunciaram em rede nacional o apocalipse moderno. Mas algo resiste como a diferença...

A.M.

Débora Wainstock | Se Eu Fosse Eu | Clarice Lispector

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Eu sou completamente a favor da separação da Igreja e do Estado. Penso que essas duas instituições já nos ferraram o suficiente por conta própria, então as duas juntas é morte certa.

George Carlin