domingo, 22 de dezembro de 2024

O EXTERMÍNIO DA ALMA - 5

Trata-se da atualização pífia da sociedade moderna, com suas máquinas cerebrais encaixotadas em série. Ora, se a alma é o pensamento, aterra e vegeta no endoplasma dos neurônios apáticos. Trata-se do entorpecimento dos afetos como matéria prima do pensar, mesmo e principalmente o mais abstrato. Se a alma é uma abstração pura,  não se dobra aos valores de troca do mercado. " Não se troca de alma". Todavia, a devastação dos afetos prossegue o empreendimento da morte disfarçado em pessoa, mormente o discurso político de instituições conservadoras:  estado, mercado,  escola, direito, e sobretudo o eu e o organismo. Não importa: a orquestra continua tocando até que a água chegue aos ouvidos serenos. De olhos abertos, o nosso Titanic singra no pesadelo.


A.M. 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

O homem de bem é um cadáver mal-informado. Não sabe que morreu.

 

Nelson Rodrigues 


terça-feira, 17 de dezembro de 2024

A DIFERENÇA NA PSIQUIATRIA

(...) Um processo subjetivo é múltiplo e segue linhas de vida que se constituem como um sistema de crenças e o desejo como produção. As linhas moleculares  “fervilham” diante dessas  vivências (a crença e o desejo), oscilando entre o endurecimento prático (a  tirania do verbo  “ser”) e o deslizamento prático  longe das  formações estabelecidas (linhas  de fuga). O paciente encontra-se pois, numa encruzilhada de linhas existenciais  inseridas num dado  contexto. Os  quadros  nosológicos  se submetem a esse contexto e não  o contrário. Por  isso, é inútil  o uso da  CID-10 quando se trata de encontrar o paciente. Entre a linha molar e a molecular, a linha  de fuga surge (ou surgiu?) como um processo irreversível. Quem é você? A questão da singularidade do    portador de um transtorno mental  vem à  baila  como o objeto da  intervenção terapêutica, seja qual  for a modalidade  (psicofarmacológica, psicoterápica,etc). A singularidade é o que está em questão. Assim, as linhas que constituem a subjetividade ganham toda a pertinência na medida em que o paciente não é um sujeito egóico, mas uma multiplicidade que se expressa em singularizações. A linha de fuga percorre o Encontro e faz do mesmo uma via de mão dupla. O técnico e o paciente estão envoltos em multiplicidades que ultrapassam o enquadre simples da  clínica enquanto bipessoalidade. A forma-paciente (um rosto visível) cede lugar a mil formas  expressas em mapas a serem explorados. Já que as linhas de fuga são as primeiras, umas  estancam no sedentarismo molar.Outras disparam em direção às intensidades moleculares. O molde diagnóstico se aferra ao molar e passa a operar ao  gosto reducionista. Não é um erro. É uma opção de trabalho tendo em vista certos objetivos do momento, como o de acudir o paciente   num sintoma grave (uma depressão com tentativa  de suicídio, por exemplo).Ocorre  que  as linhas  molares ressoam na forma-técnico, levando-o a se manter fixo em condutas conservadas. A técnica  bem sucedida  remete a um modelo implícito de subjetividade. Quem é  o paciente? O que  é ser  normal? Voltamos ao círculo teórico expresso no paciente cerebralizado. Consertar  o  cérebro a partir  da sua  manipulação  fina é a tarefa em  que a psiquiatra biológica acredita .Como contraditá-la?

(...)

A.M.

domingo, 15 de dezembro de 2024

américa

uma mulher não é um território

mesmo assim

lhe plantam bandeiras

uma mulher não é um souvenir

mesmo assim

lhe colam etiquetas

mais que nuvem

menos que pedra

uma mulher não é uma estrada

não lhe penetre as cavidades

com a fúria

de um minerador hispânico

o ouro que lhe brota da tez

é antes oferenda

que moeda

uma mulher descende do sol

ainda que

forçada à sombra


Luiza Romão

A imprensa brasileira sempre foi canalha. Eu acredito que se a imprensa brasileira fosse um pouco melhor poderia ter uma influência realmente maravilhosa sobre o País. Acho que uma das grandes culpadas das condições do País, mais do que as forças que o dominam politicamente, é nossa imprensa. Repito, apesar de toda a evolução, nossa imprensa é lamentavelmente ruim. E não quero falar da televisão, que já nasceu pusilânime.

Millôr Fernandes

LUGAR DE GOLPISTA É NA CADEIA - EDUARDO BUENO

REALIDADE  DAS FORÇAS

A política é constituida por forças. Forças em relação com forças. Neste sentido, "tudo é política" desde que o elemento humano se faça presente. Em termos macrossociais (grandes conjuntos) e microssociais (pequenos conjuntos), a política funciona como um a priori das relações humanas. As forças se "ocultam" nas formas sociais, muitas delas produtivas e necessárias, digamos, a um "bom viver". É o caso da família, instituição muito antiga que "garante" a continuidade de outras instituições como a do eu, da subjetividade, da sexualidade, entre outras. Um axioma se impõe: toda instituição (cujo combustível é o poder) só funciona em  relação com outras instituições, formando redes de conexões imprevisíveis. Mesmo na composição do organismo humano (o fenótipo) e do corpo invisível (o sem modelo), instituições-força se relacionam muito mais para compor, conectar e não para destruir. Territórios são criados.  Assim, há ambiguidade no cerne do processo institucional. Inexiste "bem "  ou "mal" como essências dadas, mas como usos de afirmação ou negação da vida: processo da natureza sem fim. Dissecar esse entrelaçamento de linhas não é fácil e por vezes impossível. No fim, tudo conduz à ação politica segundo análises das forças em jogo. Desde um conflito entre estados nacionais até uma separação conjugal litigiosa, as forças são essencialmente fluidas à serviço de interpretações descoladas (ou não) do real conforme  interesses de toda ordem. Podemos chamar tal processo de micropolítico, mesmo que. por exemplo, seja uma crise do Estado de direito. A geopolítica. Eis o quantum desejante que move os corpos nas relações entre si. A moral comparece, mesmo que se a negue, principalmente por isso.


 A.M.

Persona (Ingmar Bergman, 1966)

O QUE PODE A ALMA?

Parece que a mente humana funciona por seleção e exclusão. Faz sentido pensar assim na vida prática, porque depois de virar à esquerda não podemos virar à direita; ou seja, ao escolher o caminho A, o caminho B fica automaticamente excluído. Fazemos escolhas diariamente, isso é natural e necessário, o problema começa quando, seguindo este raciocínio, precisamos escolher sobre o que pensar e o que não pensar.

Foi Deleuze quem transformou a afirmação espinosista em uma pergunta: afinal o que pode o corpo? Esta questão ficou famosa. Muitos tagarelam sobre a mente, dizia Espinosa, e parece que se esquecem do corpo. Deleuze levou ao limite esta afirmação e se esforçou para excluir do corpo todas as fórmulas tradicionais da filosofia. Desde então, muito se tagarelou sobre o corpo também! E a pergunta contrária de repente ficou proibida, ninguém ousava questionar: afinal, o que pode a alma? Esta curiosidade soava barroca, ou melhor, cristã. Certamente o pensador holandês, tão equilibrado em suas deliberações, jamais nos proibiria de fazer esta outra pergunta. Afinal, o problema não é sobre o que se pode ou não se pode falar. O que nos interessa é se podemos ou não podemos pensar bem uma questão.

Todos conhecem a parábola de Deus formando o homem do pó da terra e lhe soprando nas narinas o fôlego da vida. Esta é provavelmente uma das primeiras afirmações psicológicas da história do pensamento ocidental: o ser humano ganhando vida através da intervenção divina. este mito exacerba nossa concepção da separação entre alma e corpo. E pior, se a alma é presente divino e transcendente, então o corpo só pode nos parecer decaído, pecador. Estas interpretações ganharam força na tradição religiosa e invadiram vários aspectos da cultura e da filosofia, mas é preciso cuidado, estas histórias antigas não podem ser interpretadas com as ideias que temos hoje.

Imagina-se que o gênesis tenha sido escrito no século V a.C. Nesta época, andava pelas ruas da Mileto, na grécia, um antigo pensador pré-socrático chamado Anaxímenes, discípulo de Tales. Ele dizia algo muito parecido: uma força primordial (arché) carrega todas as coisas e por ela nos sentimos levantados, transportados, arrastados, conduzidos. Algo nos atravessa, como o vento que levanta uma folha e a faz dançar. A existência, como um todo, é uma lenta respiração que tudo invade; um eterno inspirar e expirar… um contrair-se e dispersar-se. Ou seja, a divindade aqui não aparece como uma entidade superior e punitiva, ela é o próprio soprar da existência, contínuo e infindável.

O ar é alma do mundo, é o que dá vida e movimento a ele. O ar atravessa o mundo da mesma maneira que um ser vivo a respirar. Trata-se de um pensamento hilozoísta, palavra que tem origem no grega: hyle que significa matéria e zoe que significa vida. Mas a vida aqui não é pensada no sentido estritamente biológico que estamos acostumados, porque os deuses e mesmo a natureza também são esta força. Sendo assim, trata-se muito mais de um impulso vivo que atravessa a matéria até onde consegue. Poderíamos chamar, como Bergson o fez, de Elã Vital. Seja qual for a palavra, o cosmos se mantém por um sopro de ar que o atravessa.

Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido” – Alberto Caeiro

Pois bem, é deste ar que estamos falando. A natureza é este sopro que se espalha em todas as direções, ela é um impulso de propagação que ao mesmo tempo mantém as várias partes deste impulso unidas. Pensemos por exemplo no nosso corpo, esta coleção de átomos, moléculas, proteínas, organelas, células, tecidos, órgãos. Como isso tudo funciona? Muitos biólogos diriam que o corpo funciona como um relógio, e quando uma peça quebra, ele se desregula e pode até parar de funcionar se um médico qualificado não atuar. Claro, este raciocínio é válido quando quebramos o braço ou algo parecido, mas nós sentimos bem fundo no peito que a vida é mais do que uma relação ajustada de peças.

Existe alguma coisa que atravessa todo esse conjunto, uma energia, alguns diriam, como o choque que o Dr. Frankestein descarregou em sua criatura feita de várias partes diferentes de corpos humanos. O que é essa força que dá vida? O que faz um corpo vivo ser diferente de um corpo morto? Neste caso, diríamos que o conjunto é maior que a soma das partes. Para onde segue esta força e o que quer de nós? Estas são as perguntas que nos fazem pensar sobre a alma.

No limite, poderíamos dizer: não amamos corpos, amamos almas, o que nos interessa é a força que atravessa um corpo e dá vida a ele. Tanto faz o nome, pode ser psiquê, mente, alma, espírito. Nos perguntamos o que é isso que faz um cadáver ser diferente de um ser vivo. Ao longo do desenvolvimento das ciências médicas, nos tornamos muito bons em falar do corpo, mas aos poucos parece que perdemos a relação com a vida em seu sentido mais filosófico.

Qual o valor da alma? Uma resposta inicial é possível: um boneco empoeirado encostado no canto do sotão não fala e não nos faz rir. Basta o Ventríloco segurá-lo em seu colo que ele começa a se mover e brincar com todos os presentes. A vida é uma força de interação, de criação; no seu ato de afirmar-se ela cria caminhos novos. O que pode a alma? Diríamos que ela é a emanação mais potente dos corpos.

Uma síntese pode ser feita, pensando numa trégua com os deleuzianos mais aguerridos. Reformulemos a pergunta: o que pode o corpo vivo? Ora, pode expressar a essência de um mundo afirmativo e criador. A alma é o corpo levado aos seus limites, e queremos saber até onde pode ir. Como o vento levanta a folha, nós também somos um sopro, apenas um suspiro, uma brisa efêmera, mas tudo isso importa, e muito.


Rafael Trindade, do site Razão Inadequada, acessado em 15/12/2024



sábado, 14 de dezembro de 2024

Vanishing Twin - Jiří Kylián (NDT 1 | Sometimes, I wonder)

Uma coisa branca,

Eis o meu desejo.


Uma coisa branca

De carne, de luz,


Talvez uma pedra,

Talvez uma testa,


Uma coisa branca.

Doce e profunda,


Nesta noite funda,

Fria e sem Deus.


Uma coisa branca,

Eis o meu desejo,


Que eu quero beijar,

Que eu quero abraçar,


Urna coisa branca

Para me encostar


E afundar o rosto.

Talvez um seio,


Talvez um ventre,

Talvez um braço,


Onde repousar.

Eis o meu desejo,


Uma coisa branca

Bem junto de mim,


Para me sumir,

Para me esquecer,


Nesta noite funda,

Fria e sem Deus.



Dante Milano

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Travessia da sexualidade

O SENTIDO DAS DEPRESSÕES

As depressões atuais se espalham num amplo espectro de acontecimentos, onde a etiologia (causa) e o quadro clínico (sintomas) são múltiplos. Desse modo, é essencial para uma clínica da diferença em psiquiatria não considerar as depressões no sentido biomédico. Dupla traição: trair a psiquiatria como especialidade médica e à psiquiatria como instituição (forma social). As depressões não são, pois, uma doença do cérebro, mesmo que este se mostre alterado em seu funcionamento. Ora, qualquer afeto produz efeitos sobre o cérebro, mesmo e principalmente  um "bom" afeto, por exemplo, a alegria. Ela embriaga. Assim, na análise semiológica do Encontro com o paciente, as perguntas devem partir do mundo para o eu, e não o contrário. De onde você veio, onde você vive, com quem vive, como vive, trabalha, como trabalha, em que acredita, amores, quais seus amores, etc. São linhas existenciais que mapeiam singularidades. Sim, talvez haja necessidade de um anti-depressivo...e se houver, será na contextualização de um tempo desejante. Pena que as cronificações depressivas circulem e se mostrem cada vez mais explícitas. No entanto, como poderia ser diferente se a própria psiquiatria anda deprimida? Sinapses esgotadas...  neurônios aflitos... angústia... A alma em colapso.


A.M.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Erroll Garner - Laura

COMO  RECONHECER  O  NEOFASCISMO


Há 102 anos (Itália, 1922)  nascia o fascismo de Mussolini.Ao seguir na história, esse movimento político inspirou outros regimes (Alemanha, Portugal, Espanha, etc) tornando-se referência até para a dita esquerda. No entanto, à medida em que a sociedade industrial avança, e com ela a tecnologia da imagem, o fascismo se fez diferenciar do totalitarismo. Para obter a dominação e o controle de milhões, formas sociais (instituições) passaram a utilizar métodos com micro-efeitos nas populações, no que Félix Guattari chama de microfascismo. Sem esse dispositivo de “persuasão mental” o controle dos corpos e mentes se revelaria ineficaz. O fascismo tornou-se microfascismo. Dominar de modo explícito cedeu lugar ao controle sobre sujeitos sem que estes saibam que estão sendo controlados e mais, gostem de ser controlados. Óbvio que dominar “por dentro” sempre existiu, ainda que pelo terror induzido na mente dos supliciados. Mas falamos de outra coisa. 102 anos de fascismo foram suficientes para a produção em série (escala planetária) de pessoas humanas que adotam e adoram o capital com ponto hegemônico de subjetivação e desejam isso não só para si, mas para todos, ou seja, para o restante da população mundial. Um processo “natural” é induzido por agências de controle, mormente os Estados nacionais e o grande sistema financeiro e internético com suas mídias afiadas como serviços num plantão ad aeternum. É difícil identificá-lo no coração das pessoas de bem. Se este sentimento de “viva a morte” se instaura e age à revelia do seu portador, a impossibilidade de auto-crítica surge como pressuposto subjetivo. “Que eu morra, mas que permaneçam os valores em que acredito”. Tal foi o refrão macabro do cidadão comum para, por exemplo, para apoiar o governo federal brasileiro de 2018 a 2022. O mito é um desejo funéreo. Trata-se de uma linha suicidária que passa a ser o dado natural da vida. Morrer pela pátria equivale a morrer pela família, pela escola, pela religião, por Deus, por todas as formas sociais, enfim, de transcendências ( o além da vida).  Isso credita e legitima a existência da sociedade regida pelo capital,  não só como categoria de lucro econômico, mas como  fábrica de imagens para um gozo paranóico. O fascista é um paranóico. Este sentimento se interiorizou a um ponto tal que até parece ter deixado de existir, mas existindo mais do que nunca: teorias da conspiração tamponam o buraco do sentido. Estaremos num universo linguístico de redundâncias e paradoxos? Na linha de montagem da subjetividade capitalística, surge, então, como irreal, delirante, impossível e inconcebível, o parto (uma revolução?) de um outro mundo no interior deste. Pensar assim se tornou obsceno.


A.M.

ISSO NÃO PÁRA

dentadura perfeita, ouve-me bem:

não chegarás a lugar algum.

são tomates e cebolas que nos sustentam,

e ervilhas e cenouras, dentadura perfeita.

ah, sim, shakespeare é muito bom,

mas e beterrabas, chicória e agrião?

e arroz, couve e feijão?

dentinhos lindos, o boi que comes

ontem pastava no campo. e te queixaste

que a carne estava dura demais.

dura demais é a vida, dentadura perfeita.

mas come, come tudo que puderes,

e esquece este papo,

e me enfia os talheres.


Angélica Freitas

AS LINHAS

E, depois, há linhas, uma vez mais, de um outro tipo: linhas de fuga. As linhas que criamos, e sobre as quais nós criamos. Às vezes, nós nos dizemos: mas elas estão como que encalhadas, elas estão como que bloqueadas. Às vezes, elas se desvencilham, elas passam por verdadeiros buracos, elas se destacam. Às vezes, elas estão perdidas … Os outros dois tipos de linhas as engoliram. E, depois, elas podem sempre ser retomadas. O que é esse terceiro tipo de linha? Se dizemos: fazer uma esquizoanálise de alguém. Isso seria chegar a determinar essas linhas, e os processos dessas linhas. Ora, para responder, enfim, à questão, uma coisa muito simples: chamemos “esquizofrenia” o traçado de linhas de fuga. E esse traçado de linhas de fuga é estritamente coextensivo ao campo histórico-mundial. Eu, pequeno burguês francês que não saí do meu país; o que eu deliro, ainda uma vez? Eu deliro a África e a Ásia, à guisa de vingança. E, por quê? Pois é isso o delírio… E não é preciso ser louco para delirar.

Então, se chamo isso de processo: é esse fluxo que me carrega pelo campo histórico-social a partir de vetores. Chamemos isso de viagem, à maneira de Laing e Cooper. Não vejo nisso um inconveniente, pois, com efeito, posso, também, muito bem delirar a pré-história, posso muito bem ter algo a tratar com a pré-história. De toda maneira, é isso que deliramos. Então, o que se passa? Eu digo que cada tipo de linha tem seus perigos. Eu creio que o perigo próprio à linha de fuga, a essas linhas de delírio, é qual? É, com efeito, uma espécie de verdadeiro desmoronamento. O que é um desmoronamento? E, bom, o perigo próprio às linhas de fuga – e é fundamental, é o mais terrível perigo – é que a linha de fuga se torne uma linha de abolição, de destruição. Que a linha de fuga que, normalmente, e enquanto processo, é uma linha de vida, e que deve traçar como que novos caminhos de vida, se torne uma pura linha de morte. E, finalmente, há sempre essa possibilidade. Há sempre a possibilidade de que a linha de fuga cesse de ser uma linha de criação e gire em círculos, como que se pondo a girar sobre si mesma, e desmoronando naquilo que chamamos um ano de “buraco negro”. Ou seja, tornando-se uma linha de destruição pura e simples. E é isso que, a meu ver, explica um certo número de coisas. Isso explica, por exemplo, a produção esquizofrênica enquanto entidade clínica, a esquizofrenia enquanto doença. E creio que o esquizofrênico é fundamentalmente e profundamente doente. É aquele que “apreendido” pelo processo, carregado por seu processo, por um processo… não aguenta o golpe. Ele não resiste ao golpe. É duro demais … É duro demais.

(...)

Trecho de aula - G. Deleuze, "O anti-édipo e outras reflexões, Vincennes, maio de de 1980

sábado, 7 de dezembro de 2024

Xeque-mate


Quando menos se espera, já são horas.

A dama de espadas perde o gume

e o pássaro pousado vai embora. 


Quando menos se espera, o que se anuncia

não é a sorte grande, a estrela Aldebarã

ou a sagração da primavera.

São tempos de abutre

e o coração, músculo bélico, fraqueja. 


De repente, já é sábado,

há uns assuntos desagradáveis para resolver

e, sobre a pele confusa da alma,

uma densa crosta de óxido e desalento.


Quando menos se espera, o rei está em xeque,

e é dezembro.

Há uma complicação de trânsito

na avenida

uma artéria que não dá passagem.

Quando menos se espera, já é tarde.



Carlos Machado

Daniel Castro - I'll Play The Blues For You

A TRAPAÇA ESPIRITUAL

A chamada "espiritualidade" é, hoje, concebida e tratada como entidade, coisa. Tal é o efeito devastador do modo de reificação (coisificação) inscrito no circuito de "produção-consumo-produção"capitalístico. Fala-se de espiritualidade como se alguém a possuísse:  mais espiritualidade (bondade?) ou menos espiritualidade: um atributo, uma propriedade, um objeto-virtude a ser cultivado. Não pensamos assim: a espiritualidade não existe. Só existe o corpo, não o organismo fabricado pela medicina e agências conexas (estado, família, direito, escola...), mas o corpo que nos é tomado e formatado como corpo-organismo, trabalhador, responsável e normal. Ele, o corpo-desejo, está à espreita. O investimento sócio-religioso na espiritualidade cumpre, assim, a função de tamponar a potência do corpo, esvaziá-lo da força de criar a si mesmo e ao mundo. Quando alguém fala em melhorar a sua espiritualidade (muitos falam) exala um cheiro inconfundível de conformismo social. No entanto, esse dado é difícil de constatar ou de contestar de tal modo vem expresso em boas intenções cristãs. 


A.M.

domingo, 24 de novembro de 2024

O  EXTERMÍNIO  DA  ALMA - 4

Diante da lei da troca e do lucro infinitos, a alma não é trocável nem há lucro. Enquanto isso, e por causa disso, matadouros proliferam e se armam. A execução, consentida e incentivada, se dá como processo natural da produção de mentes apassivadas. E tudo recomeça.

A.M



quarta-feira, 20 de novembro de 2024

AINDA ESTOU AQUI |Trailer (2025)

toda cicatriz é um

rastro de história


perdemos: dente, roupas, melhores amigos,

filmes, aulas, tudo. e que dádiva é saber perder.

que dádiva é noticiar a presença de outro dente

nascendo ao redor da boca, ao lado da cura,

no infinito de tudo.


“Textos Para Tocar Cicatrizes” (Globo, 2022), de Igor Pires

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Gary B.B. Coleman - The Sky is Crying

O QUE É UMA PSIQUIATRIA MENOR?

É uma psiquiatria da alma. Não a alma usada nas religiões, mas a alma do mundo das coisas,  a que se desloca veloz e invisível: o pensamento. A psiquiatria cuida disso. Ou deveria. Pelo menos, quando enlouquece...

Uma psiquiatria menor busca captar o paciente através de percepções finas e encontrá-lo onde jamais alguém o encontrou. Uma ética de força e criação guia suas ações, mesmo as farmacológicas.

Seu instrumento de pesquisa e intervenção prática (clínica) é uma psicopatologia aberta às mil influências (saberes) do que está longe e ao mesmo tempo tão perto. Seu objetivo é sondar o fora não como espaço, mas como ligação ao cosmos aqui em terra firme. É uma psiquiatria do real.

Considera antes de tudo, os corpos-em-relação, os corpos-em-vibração,  o que move o paciente e o técnico: afetos. 

A política existe como trama de poder onde a psiquiatria está incluída. No entanto, para além ou aquém do regime binário direita/esquerda, ela é apaixonada pela diferença, pela singularidade e pelo múltiplo.

Uma psiquiatria menor é grande. Psiquiatras neuro-maníacos lhe são estranhos.

A.M.

TULIPAS ETERNAS


 

domingo, 17 de novembro de 2024

SOBRE O "ANTI-ÉDIPO"

Escrever é esquecer, antes de tudo, o esquecimento da conveniência formal, do bom estilo. Já não os canais, os parques, os arvoredos, os lagos à francesa da escrita rarefeita destes tempos, nem sequer as graciosidades epigonais hexagonais e de um gosto muito seguro;  nem as mil conotações apagadas. Quando o olho de Deleuze-Guattari pisca, é tão grande como uma represa.O seu livro é um deslocamento de águas volumosas, umas vezes lançadas em torrente, outras estacionárias, trabalhando por baixo, mas avançando sempre, quer com as vagas ou com as correntes, quer contra-correntes. O que está em causa não é uma significação, mas uma energética. O livro não traz nada, leva muito, transporta tudo(...) Não é um livro de filosofia, isto é, de religião. Nem sequer a religião das pessoas que já não acreditam em nada, a religião da escrita. A escrita é antes tratada como uma maquinaria: absorve energia e a transforma em potencial metamórfico no leitor.

(...)

J.F. Lyotard

Vivo nas estrelas porque é lá que brilha a minha alma.


Manuel Bandeira

sábado, 16 de novembro de 2024

Rehearsal 'Clowns' - Hofesh Shechter (NDT 1 | Architecture of the Invisi...

FÁBRICA DO ÓDIO

Para a antropóloga Isabela Kalil, pesquisadora do Observatório da Extrema Direita, o atentado com explosões na praça dos Três Poderes não é um fato isolado e está estritamente conectado o 8 de Janeiro. A pesquisadora integra o grupo de trabalho criado pelo governo que discute o combate a discursos de ódio e extremismos.

Para ela, o governo precisa dar respostas certeiras aos ataques motivados por discursos de ódio e instigados pela extrema direita. Caso contrário, atentados semelhantes voltarão a ocorrer.

"Não é um lobo solitário", diz a especialista. A extrema direita estaria, segundo ela, recrutando cada vez mais pessoas, sobretudo homens e até mesmo crianças. 

(...)

Do UOL, 16/11/2024, 12:00 hs

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

"Baiana" Barbatuques | Galen Hooks Choreography

Futuro do Pretérito

O barista pega o copo de papel e o coloca sobre a grade vazada. Com um gesto automático, retira a peça da máquina, descartando sem pensar o pó usado. Mói e deposita um novo pó, acoplando as partes da máquina e apertando o botão com a precisão de um autômato. Enquanto o líquido escorre lentamente, despeja o leite na leiteira e o aquece com o vapor que escapa de um orifício estreito ao lado da máquina. O café fica pronto logo em seguida, numa sincronia apática, enquanto as fragrâncias se espalham pelo ar. O atendente mistura os dois líquidos e pergunta: “açúcar?”, mas seu questionamento ecoa pelo vazio. Com um gesto mecânico, ele fecha a tampa, escreve o nome do cliente com uma canetinha preta e se esforça para chamá-lo em voz alta. Uma pessoa, absorta no celular, pega o copo sem olhar para o rosto do atendente e sai sem agradecer. No copo, um aviso: cuidado, quente. O barista observa a porta se fechar, sem esboçar reação, sem sonhos nem esperanças, para logo em seguida repetir a mesma pergunta: “bom dia, o que vai querer?”.

Ninguém ousa falar desta maneira, mas as contrações do nascimento são a maneira mais direta do corpo expulsar uma criança de seu interior. Claro, sabemos, ela ainda não está pronta, nasce frágil e indefesa pois o seu cérebro desenvolveu apenas 40% do tamanho total. Ainda assim, apesar de incompleto, o lado de fora é o único lugar onde ela cabe neste momento, esperar mais seria tornar o parto perigoso para a mãe. Ser no mundo é ser cuspido por um útero, e todos nós fomos jogados neste universo, com maior ou menor violência. Trata-se de um exílio forçado imposto pelo corpo da mãe. O choro inicial representa o medo de um lugar que não é de modo algum quente e acolhedor como espaço de onde viemos. A existência é cinza fria, mas bem mais espaçosa.

Não escolhemos onde nem quando nascemos, mas é assim. Alguns chegam antes de serem chamados, outros pensam que nasceram no lugar errado. Não há outro caminho, é preciso insistir num lugar desconhecido, que já estava aí muito antes de nossa existência tornar-se fato. Por estarmos mergulhados na sociedade, a vida nos coloca em uma relação íntima e direta com ela. A partir do momento em que entramos no mundo, este passa a roçar em nossa pele, soar em nossos tímpanos e iluminar nossa retina. São cheiros e sabores novos, tudo é um espetáculo a descobrir e mesmo o banal se enche de possibilidades. Esta relação de passividade sensorial ganha volume e se transmuta lentamente em planos e expectativas. 

Através de prazeres e dores acumulados aprendemos a ansiar pelo futuro, o jogado aprende a jogar mais longe. Imaginamos o que vai acontecer, criamos cenários e fazemos planos. Ser no mundo é planejar o momento seguinte.  Somos capazes de imaginar o que será daqui cinco dias, cinco semanas, cinco anos, cinco décadas. A vida se torna isso: traçar caminhos, esboçar soluções, colocar metas, preparar saídas. Nos lançamos ao futuro com armas na mão. 

A sociedade aponta os caminhos abertos daquele momento, com placas mal sinalizadas, claro, como numa trilha desgastada pela selva viva. Logo percebemos que a vontade de correr se contrapõe à densidade da floresta. Ser no mundo é limitar-se às fronteiras que a realidade oferece. E com o tempo percebemos que as possibilidades são muito menores do que podíamos imaginar. Quantas vezes não vimos o universo ignorar nossas preces sem oferecer nenhum serviço de atendimento ao cliente. Quantas vezes a realidade tratou com a mais absoluta indiferença nossos anseios mais íntimos. A força ou automatismo da realidade são proporcionais aos nossos anseios, mas não à nossa capacidade de concretizá-los. O futuro faz piruetas no ar, as reviravoltas nos confundem e a semente jogada no solo, mesmo regada com cuidado e dedicação, teima não em crescer. O porvir se torna lentamente turvo.

Com o tempo, os planos envelhecem e perdem a validade. Lentamente o futuro se torna passado sem nunca passar pela realidade de nossas vidas. É o que a gramática qualificou como futuro do pretérito. Nós seríamos, teríamos, faríamos, e até mesmo amaríamos, mas não, nada disso aconteceu, apenas em nossas cabeças. O livro continua na estante, sem ser lido, a pessoa amada continua distante, sem ouvir nossa declaração de amor. O futuro veio e passou como um ônibus que se recusa a parar no ponto. É triste pensar o quanto de nós nunca virá a ser, o que nos obriga a observar, sozinhos, todos estes sonhos partindo para longe. Ser no mundo é estar de luto e enterrar sonhos que já nasceram mortos. Quantos presentes não foram e nunca serão vividos? O futuro do pretérito mostra como o tempo é misterioso, pois às vezes parece estar em dois lugares ao mesmo tempo.

E se imaginávamos muito mais do que a realidade estava disposta a dar, o que dizer dos sonhos que nem pudemos sonhar, aqueles que não nos deixaram sequer entrever? Talvez isto seja o que há de maior em nós, aquilo que nunca será nem ao menos uma possibilidade. Ser no mundo é, em sua maior parte, nunca realmente ser no mundo. É sonhar e esquecer que sonhou, é desejar e não saber o quê. São como galáxias com um brilho colossal mas que, de tão distantes, deixaram sua luz escoar de nossa consciência. Afinal, quais os ritos fúnebres adequados aos filhos que morreram por não poder nascer?

Talvez a vida seja um grande sonho do qual lembramos apenas de cenas esparsas. “Fale-me mais sobre isso”, pergunta o analista, mas é impossível dizer. Existem sonhos que não têm palavras, e, ainda mais longe, existem coisas que não aprendemos nem a sonhar. Muitos falam do Iceberg que tem apenas uma ponta de seu enorme volume acima da superfície, mas poucos veem o mar infinito que o sustenta.


Rafael Trindade do site "Razão Inadequada", acessado em 15/11/2024

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A vida é uma ferida?

O coração lateja?

O sangue é uma parede cega?

E se tudo, de repente?


Eduardo Pitta

UM MUNDO PARANÓIDE

Numa análise do desejo, o militante de extrema direita ou o crente de extrema direita (o que dá no mesmo), adota (e carrega) uma visão paranóide da realidade. Trata-se da  bolha de egos mantida com proteção hostil e armada. Secreta o inimigo onipresente, que Deus ajuda a vigiar. E punir. A extrema-direita funciona como "remédio social", já que prega uma revolução às avessas às custas da grande faxina das mentes emporcalhadas. Uma produção insana de teorias conspiratórias é o exemplo de acesso fácil e aterrador. Expressa um universo deliróide montado em escala industrial. A fratura da linguagem já está exposta. Isso não cessa, isso não pára, isso não cede, isso mata: a semiologia clínica é a de uma mega-psicose coletiva: enfim, a profecia cumpriu-se: o capital, como os vampiros, encarnou-se  no espírito: No return.  A internet é pródiga. Confira.

A.M.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

a alma sente o mundo

e o corpo

é o mundo


por isso a estranheza dos afetos

e a velocidade da arte

fazem do tempo


um amor sem jeito

e sem forma



A.M.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

CAPITALISMO MUNDIAL INTEGRADO : O EMPREENDIMENTO DA MORTE

Para entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a idéia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro.  Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro.  O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas - assumiu  o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania ), manipula e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o fato de o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o titulo de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o euro a qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o que significa “a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas humanas? Só numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas.

(...)

Giorgio Agamben - trecho de entrevista concedida em 16/08/2012

😱 Eduardo Marinho

terça-feira, 22 de outubro de 2024

A escrita rizomática

O rizoma faz o múltiplo, mais do que o anuncia. O fracasso de uma biologia que não fosse molecular, segundo Félix Guattari, em seu livro Revolução molecular, poderia encontrar na botânica os princípios de um rizomorfismo. [1] Em outras palavras, simultaneamente conexões, heterogeneidades, multiplicidades e assignificâncias, o rizoma em sua orfandade radical desenha uma literatura e uma escrita cuja alma, sempre carnal, nervura e gozo sem entraves da língua, na língua, está para além das regenerações, das reproduções das hidras e medusas. Rizoma é só produção, dança das palavras, viagem da língua na língua.Em oposição ao modelo centralizado, coagulado, desidratado e organizado, o rizoma se define como um agenciamento de alianças, sempre pelo meio, e em perpétuo devir. Fazer rizoma é enveredar como um cavalo louco para uma escrita cujo devir é o devir-pensamento-musical da própria escrita. A escrita rizomática é órfã, inclusive, do pecado… Qual foi o castigo maior, a infâmia suprema do Divino contra o homem pecador? Ao pecar, ele nela, ela nele, ambos desaprenderam a cantar. Sem a música, sem a fascinação nela inserida, como uma sina, a escrita torna-se seca, fria, túmulo do pensamento. A escrita não perde apenas o sexo, as sexualidades, os arrepios do gozo, mas seu destino maior: o acontecimento. Ser digno daquilo que nos acontece, afora todo e qualquer axioma moral.

O corpo como pensamento melódico, o corpo como saúde, isto é, como literatura sem o aprisionamento de uma língua que a asfixia na nulidade de uma escritura que se substitui, como um câncer, ao fogo da escrita.  A escrita sempre por vir. Ora, saúde, enquanto literatura, consiste em inventar um povo que falta. Cabe, pois, a função fabuladora da escrita de engendrar esse povo que falta, sob o signo de palavras parideiras. Palavras parideiras, disse eu?! Como as “Pedras Parideiras” de Frecha da Mizarela, famosas em Portugal, a escrita rizomática são pedras que parem pedras.

(...)

Daniel Lins

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O  EXTERMÍNIO  DA  ALMA - I

Fenômeno modelar das sociedades industriais modernas (plugadas na ideia de progresso ), ele opera nas dobras invisíveis da alma, expondo-a à venda. Tal é o reino da mercadoria. A instituição -ciência comparece com o selo de garantia da verdade. Um culto à morte se instala naturalmente. Verifique as guerras.


A.M.

sábado, 12 de outubro de 2024

CURA DA LOUCURA?

“Não. A condição humana não termina nunca. Isso é um sonho. A loucura existe desde a noite dos tempos, como a sexualidade, o suicídio ou a morte. Ela faz parte da condição humana. O que muda é a representação que fazemos dela. Na Idade Média, o louco não tinha o mesmo lugar que tem hoje. O grande movimento se deu quando se considerou, a partir do século 18, que a loucura era uma doença mental. Essa é a mudança. Antes, falava-se em possessão do demônio, que era a expressão entre os antigos, de uma fúria interna ligada ao organismo, etc. Hoje, tudo é considerado do ponto de vista da doença. É a nossa época. Pensava-se que seria vencida, pois poderíamos curá-la, como se cura uma doença. Mas não. E a prova é que se pensava isso também do suicídio, que os remédios venceriam o suicídio. Mas não se pode vencer os grandes dados da condição humana. Ela tomará formas diferentes. A humanidade não pode curar-se do que ela é. Já imaginaram uma sociedade que eliminasse a morte, o suicídio, a loucura, o que mais? Curaríamos a neurose. Mas seríamos o quê, então? O que seria o homem livre de suas paixões? Seria um cemitério!”


Elizabeth Roudinesco, entrevista concedida em 1999, disponível em hhp://www.rodaviva.fapesp.br 

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

OUTRAS PAISAGENS

É possível que a amizade se nutra de observação e de conversa, mas o amor nasce e se alimenta da interpretação silenciosa. O ser amado aparece como um signo, uma "alma"; exprime um mundo possível, desconhecido de nós. O amado implica, envolve, aprisiona um mundo, que é preciso decifrar, isto é, interpretar. Trata-se mesmo de uma pluralidade de mundos; o pluralismo do amor não diz respeito apenas à multiplicidade dos seres amados, mas também à multiplicidade das almas ou dos mundos contidos em cada um deles. Amar é procurar explicar, desenvolver esses mundos desconhecidos que permanecem envolvidos no amado. É por essa razão que é tão comum nos apaixonarmos por mulheres que não são do nosso "mundo", nem mesmo do nosso tipo. Por isso, as mulheres amadas estão muitas vezes ligadas a paisagens que conhecemos tanto a ponto de desejarmos vê-las repetidas nos olhos de uma mulher, mas que se refletem, então, de um ponto de vista tão misterioso que constituem para nós como que países inacessíveis, desconhecidos.

(...)

G. Deleuze in Proust e os signos

Rehearsal world premiere - Christos Papadopoulos (NDT 1 | Architecture o...

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

E se realmente gostarem? Se o toque do outro de repente for bom? Bom, a palavra é essa. Se o outro for bom para você. Se te der vontade de viver. Se o cheiro do suor do outro também for bom. Se todos os cheiros do corpo do outro forem bons. O pé, no fim do dia. A boca, de manhã cedo. Bons, normais, comuns. Coisa de gente. Cheiros íntimos, secretos. Ninguém mais saberia deles se não enfiasse o nariz lá dentro, a língua lá dentro, bem dentro, no fundo das carnes, no meio dos cheiros. E se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de amor? Quando você chega no mais íntimo, No tão íntimo, mas tão íntimo que de repente a palavra nojo não tem mais sentido. Você também tem cheiros. As pessoas têm cheiros, é natural. Os animais cheiram uns aos outros. No rabo. O que é que você queria? Rendas brancas imaculadas? Será que amor não começa quando nojo, higiene ou qualquer outra dessas palavrinhas, desculpe, você vai rir, qualquer uma dessas palavrinhas burguesas e cristãs não tiver mais nenhum sentido? Se tudo isso, se tocar no outro, se não só tolerar e aceitar a merda do outro, mas não dar importância a ela ou até gostar, porque de repente você até pode gostar, sem que isso seja necessariamente uma perversão, se tudo isso for o que chamam de amor. Amor no sentido de intimidade, de conhecimento muito, muito fundo. Da pobreza e também da nobreza do corpo do outro. Do teu próprio corpo que é igual, talvez tragicamente igual. O amor só acontece quando uma pessoa aceita que também é bicho. Se amor for a coragem de ser bicho. Se amor for a coragem da própria merda. E depois, um instante mais tarde, isso nem sequer será coragem nenhuma, porque deixou de ter importância. O que vale é ter conhecido o corpo de outra pessoa tão intimamente como você só conhece o seu próprio corpo. Porque então você se ama também. 


Caio Fernando Abreu

Lançamento: 14/10/2024


 

com minha fome de mundo,

qual amor preenche a

lacuna de viver se jogando

em tudo que me requer

êxtase, empatia e, sobretudo,

coragem?


Igor Pires da Silva

MIL DELEUZES

 


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

O EXTERMÍNIO DA ALMA - 3

Muita gente na rua perfilada em ordem unida. O rosto do automóvel e das carretas arreganha estradas perdidas. Todo dia a ladainha: gestos ferozes e partos à força. A alma é pega de surpresa em suas andanças miúdas. Ora, se a sua matéria é o invisível mais visível, algo passa e deixa um perfume de amazonas impregnar o ar. A extensão da alma é, então, adornada pelos tesouros do amor. A Terra exulta. Para além-aqui oceanos, rios e luares encantam o corpo: camuflagem para poder existir.


A.M.  

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

PAVEL MITKOV


 

No meu julgamento, o sexo foi mais bem entendido, mais bem expressado no mundo pagão, no mundo dos primitivos e no mundo religioso. No primeiro, era exaltado no plano estético; no segundo, no plano mágico, e no terceiro, no plano espiritual. Em nosso mundo, onde apenas o nível bestial impera, o sexo funciona num vazio.

(...)


Henry Miller

PRESENÇA 


É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,

teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento

das horas ponha um frêmito em teus cabelos...

É preciso que a tua ausência trescale

sutilmente, no ar, a trevo machucado,

as folhas de alecrim desde há muito guardadas

não se sabe por quem nalgum móvel antigo...

Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela

e respirar-te, azul e luminosa, no ar.

É preciso a saudade para eu sentir

como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...

Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista

que nunca te pareces com o teu retrato...

E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.



Mario Quintana

Dead Can Dance - The Carnival Is Over (Official Video)

sábado, 21 de setembro de 2024

NA CONTRA-CORRENTE

Na clínica da diferença em psiquiatria, o conceito de desejo "empurra" o processo terapêutico para um tempo de instabilidades existenciais. Isto significa considerar 1-a subjetividade como o mundo social que se expressa em sintomas clínicos; 2-o tempo como passagem, travessia, devir, irreversibilidade. Portanto, o que está "doente" é, antes, o mundo em que o paciente vive, o qual, na verdade, é ele mesmo. Este mundo é uma trama de instituições que dá forma e consistência afetiva à subjetividade. Produz sentido, mesmo o mais torpe. Daí ser preciso, com sabedoria, prudência, técnica e delicadeza, dissolvê-lo em prol de linhas desejantes voltadas à criatividade. Trata-se da Arte, não como monumento ou mercadoria, mas como estilo, singularidade, o "viver" para além dos códigos estabelecidos. Quem arrisca?


A.M.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

IHU – Segundo o próprio Deleuze, a filosofia não possui compromisso com o consenso. Você concorda?

André Araujo – Sim, isso é bem importante. Refletia sobre essa ideia da comunicação como consenso, mas preciso também fazer essa observação de que o consenso para Deleuze é a coisa que mais produz ojeriza. Ele é um pensador que tem um paradoxo muito importante que é essa predileção por uma dimensão do conflito como alguma forma de apaziguar qualquer problema. O consenso sempre soa para Deleuze como forma de imposição de uma perspectiva dominante, por isso ele nunca vai buscar em seu pensamento uma forma de ser normativo ou como um mapeamento do modo como uma sociedade se articula e pensa.

Pelo contrário, sempre vai buscar experiências mais marginais, que estão à borda, do modo como vivemos coletivamente e que colocam em xeque os modos de vida mais estabelecidos, porque, para Deleuze, os modos de vida que temos são apenas um hábito. Não há, para ele, razão metafísica alguma para vivermos como vivemos. Há razões políticas para viver como vivemos, mas não há nada próprio no tecido do mundo que impeça que a gente constitua um modo de viver absolutamente distinto do modo como a gente vive agora.


Instituto Humanitas Usisinos, IHU, entrevista com André Araújo, julho de 2021

Fim da Amazônia, extinção dos recifes de corais: o futuro do Brasil supe...

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

POÉTICA DOS ENCONTROS

Uma linguagem poética alumia os corpos que antes se arrastavam como organismos em ordem unida. Deste modo desarruma os enunciados da razão esperta em prol dos afetos que circulam sem fim. Não é o poeta o único que expressa a "sua" poesia, mas sim as multiplicidades: elas formigam e pulsam em horas desérticas e transitórias. Habitam a chamada "pessoa humana"e se nutrem de micro-signos no círcuito enlouquecido do viver por viver. Todas as palavras são embaralhadas e extraídas ao acaso dos encontros. E tudo recomeça sob a égide da criação do tempo em meio às velocidades mais estonteantes dos dias tecnológicos que correm. Uma poética da diferença afirma a superioridade dos corpos lisos e inocentes sobre organismos endurecidos pelas agências do poder invisível. Só assim o ato de pensar, encharcado de afeto e mistério, nasce a cada segundo. Como um raio.


A.M.

sábado, 14 de setembro de 2024

Certo dia, atrasei-me ao voltar da escola e meus pais pensaram que eu havia sido seqüestrado. E aí entraram imediatamente em ação: alugaram meu quarto,


Woody Allen



 

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Glória Feita de Sangue , Stanley Kubrick, 1957

SOBRE O MÉTODO DA DIFERENÇA

O  psiquiatra  se despersonaliza. Torna-se algo que se torna outra coisa.Vive nos e dos  paradoxos  da linguagem que o  empurram a encontrar  o  paciente, o  mundo,  o  cosmos.  Não  compreende o que se passa. Perplexo, interroga e interroga-se. Dança e entoa em silêncio cânticos extraídos  do fundo de  vielas existenciais. Não  busca uma  ontologia  da  psicose  e/ou  dos transtornos mentais. Ele  talvez  consiga ser  um  feiticeiro da modernidade técnica, criando linhas  de  pura alegria (ainda  e  principalmente)   nas  quedas  e surtos dos  pacientes  e  de  si  mesmo.  O método da diferença  traz essa possibilidade para o interior  da  clínica. Os fármacos podem (claro  que  sim!)  ser parceiros  numa   empreitada  sem signos  prévios. Use  e  controle  essa  droga  lícita, sabendo que   ela  pode se  tornar  ilícita  se atentar contra  a criatividade  do  viver.  Não só  a química,  mas  todo  e qualquer  objeto  pode  induzir a uma dependência  abjeta.  O  psiquiatra-feiticeiro não é esse objeto. O psiquiatra remedeiro, sim. Este se  alimenta  de subjetividades enrijecidas, esvaziadas, ocas, trastes apelidados de pacientes.É preciso um combate incessante contra a máquina farmacológica.  O  fármaco é apenas um elemento  prático-terapêutico.Um devir-feiticeiro é outra coisa, um estilo: a sensibilidade, a intuição, a percepção do invisível, o senso de observação, a escuta do silêncio, a espreita, o olhar de lince, a pele em brasa, a expressão da flor, um devir-poesia, devir-arte, etc, todo um conjunto  de dispositivos... práticos...


A.M.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

DADO MORONI, EDDIE GOMEZ & JOE LA BARBERA - Forever

No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava

escrito:

Poesia é quando a tarde está competente para dálias.

É quando

Ao lado de um pardal o dia dorme antes.

Quando o homem faz sua primeira lagartixa.

É quando um trevo assume a noite

E um sapo engole as auroras.


Manoel de Barros

UM ENCONTRO DIFÍCIL

O organismo físico-químico, visível, palpável e mensurável, é o objeto da medicina, onde ela de fato intervêm, e, caso obtenha êxito terapêutico (principalmente por isso), retira mais-valia de poder. No entanto, junto a esse organismo e fora da relação linear causa-efeito, funciona o corpo das intensidades livres. Não é visível, não é palpável, não é mensurável, nem segue os mapas fisiopatológicos vistos em exames por imagem. Distinto da consciência que sempre obedece ordens, ele não obedece, é rebelde e alterna com o organismo fluxos atuais e/ou antigos de afetos nômades. Tampouco é o corpo que a psicanálise entronizou como "a outra cena". São fluxos que impulsionam a vida, que são a vida : potência sem forma. Em face desse real estado de coisas, tal corpo traz grandes dificuldades à pesquisa. Como acessar algo que não se vê, não se toca nem se mede? Na clinica psicopatológica há um "corpo que não aguenta mais" e que se expressa em sintomas álgicos (por exemplo, cefaléias crônicas - simbolismo do órgão?), mas também como multiplicidade de sintomas que resumimos sob o nome de angústia. Aqui não se trata de usar a psicanálise como doutrina ou método de trabalho, mas de "roubar" deste saber a hipótese de um inconsciente para além da representação de papai-mamãe. Um inconsciente "órfão, ateu e anarquista", inconsciente-corpo. Não é fácil encontrá-lo.


A.M

domingo, 8 de setembro de 2024

JENNY SAVILLE


 

A EXPERIÊNCIA POÉTICA

Quem sonda o verso escapa ao ser como certeza, reencontra os deuses ausentes, vive na intimidade dessa ausência, torna-se responsável por  ela, assume-lhe o risco e sustenta-lhe o favor. Quem sonda o verso deve renunciar a todo e qualquer ídolo, tem que romper com tudo, não ter a verdade por horizonte nem o futuro por morada, porquanto não tem direito algum `a esperança, deve, pelo contrário, desesperar. Quem sonda o verso morre, reencontra a sua morte como abismo.

(...)

Maurice Blanchot - in  O espaço literário.

Chet Baker - Autumn In New York - 1956

sábado, 7 de setembro de 2024

CRU E CRUEL

Falamos de instituições como formas abstratas de relações sociais que se materializam em práticas. A subjetividade é uma instituição. O machismo é uma instituição. Nenhuma instituição funciona só. Sempre em tramas, sempre em rede, elas se aliam ou combatem umas às outras. Consistem de relações de forças, poderes. (Foucault). Há que se despir, portanto, de todo e qualquer humanismo ao analisá-las, e principalmente, vivenciá-las.


A.M.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

O  EXTERMÍNIO  DA  ALMA - 2

A alma é grandiosa. Ultrapassa a fronteira da pele em direção a países e terras distantes. No entanto, vive aqui na Terra entre os azuis cinzentos das metrópoles rurais. Chame-a pelo nome e ela responderá com aceno de pássaro. Está cercada de ilhas e algorítmos. Não fala, só inaugura o silêncio dos gritos e a pulsação das marés. De todas as partes as notícias dizem que ela escondeu de si mesma o segredo da criação. Uma usina de afetos é o seu sustento até que o céu desabe. Não há mais clima. Apesar disso,  continua sensível e veloz.  

A.M.


"Feeling Good" Michael Bublé/Choreography by Christin Olesen/Dance

vou moer teu cérebro. vou retalhar tuas

coxas imberbes & brancas.

vou dilapidar a riqueza de tua

adolescência. vou queimar teus

olhos com ferro em brasa.

vou incinerar teu coração de carne &

de tuas cinzas vou fabricar a

substância enlouquecida das

cartas de amor.


Roberto Piva

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

SABOTAGEM DO DESEJO

É importante que os termos "senso comum" e "bom senso" sejam concebidos como práticas sociais, e não como conceitos. É que os conceitos podem ser tomados como abstração, idealização, mas as práticas sociais não. Isso é fácil de verificar na psiquiatria fármaco-biológica. Ao prescrever um remédio químico, o psiquiatra intervêm na vida concreta do paciente, incluindo efeitos terapêuticos, colaterais, adversos, sugestivos, transferenciais, etc. São biopoderes que produzem subjetividades. Daí, práticas. O Senso Comum e o Bom Senso funcionam embutidos em discursos grávidos de verdades, sejam científicas, tecnológicas, religiosas, filosóficas, e tanto mais seja necessário o controle. Tal controle é o índice clínico e semiótico para se poder dizer; "Ah, ele está melhor!" No entanto, para além da psiquiatria em sua explicitude clínica e do seu primarismo teórico, as psicoterapias lastreadas pelo senso comum e pelo bom senso também geram efeitos de controle mental não tão explícitos mas também contrários à produção desejante de singularidades existenciais.


A.M.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Para que serve minha vida e o que vou fazer com ela? Não sei e sinto medo. Não posso ler todos os livros que quero; não posso ser todas as pessoas que quero e viver todas as vidas que quero. E por que eu quero? Quero viver e sentir as nuances, os tons e as variações das experiências físicas e mentais possíveis de minha existência. E sou terrivelmente limitada. (…) Tenho muita vida pela frente, mas inexplicadamente sinto-me triste e fraca. No fundo, talvez se possa localizar tal sentimento em meu desagrado por ter de escolher entre alternativas. Talvez por isso queira ser todos – assim, ninguém poderá me culpar por eu ser eu. Assim, não precisarei assumir a responsabilidade pelo desenvolvimento do meu caráter e de minha filosofia.

Eis a fuga pra loucura…


Sylvia Plath

Sociedade de controle em Deleuze

domingo, 25 de agosto de 2024

ALGUÉM  ME PERSEGUE

Numa análise do desejo, o militante da extrema direita ou o crente da extrema direita (que dá no mesmo), adota (e carrega) uma visão paranóica do mundo. Ele deseja uma revolução às avessas e que promova uma faxina nas mentes. A produção de teorias conspiratórias é um exemplo didático. Expressa bem o universo deliróide que funciona 24 hs em direção a uma psicose coletiva.

Confira. Pode ser na internet.


A.M.

DESTRUIR, DESTRUIR

Gememos sob o peso do progresso, que nos escraviza enquanto promete nos libertar” – Bergson


Quando a semente cai no solo, alguma coisa acontece. Este encontro desperta o grão do seu torpor; seu interior se retorce, tudo nele tende ao exterior, quer brotar. A partir deste momento, a luz, a água, todos nutrientes da terra serão seus mais íntimos aliados. Seu destino é morrer pra germinar. A planta quer brotar, a semente quer virar árvore, e tudo em seu caminho será visto como um obstáculo a ser superado. 

A ideia de passagem da potência ao ato é muito antiga. Este conceito é entendido da seguinte maneira: tudo o que é, em ato, parece ser apenas uma fração do seu ser em potência. Em outras palavras, tudo o que é ainda não o é  totalmente, pois falta alguma coisa. A semente é a árvore em potência, a criança é o adulto em potência, os ingredientes separados são o prato em potência. Ou seja, ainda não são, mas existe a possibilidade de ser, caso o ato produtivo seja levado ao seu limite.

Este mesmo raciocínio teleológico foi aplicado ao ser humano. A existência estendida numa linha progressiva de evolução. Primeiro, o ser humano nasce, é um bebê, precisa se desenvolver. Depois cresce, torna-se um adulto produtivo e reprodutivo. E depois de preencher seu destino, cooperar com a sociedade e reproduzir-se, pode enfim morrer. Eis o caminho: nascer, crescer, se reproduzir e morrer. Esta é a linha da existência, que se entrelaça com outros membros da sociedade e os filhos. Quando criança, o ser humano ainda não é tudo o que pode ser, por isso, cabe a todos nós a tarefa de nos tornarmos plenamente aquilo que guardamos em nossa essência.

Por fim, esta ideia ganhou conotações sociais. Não mais apenas o ser humano, mas agora toda a humanidade, em seu conjunto, é vista como um ser em potência. Este pensamento foi levado às últimas consequências: se antes vivíamos como primitivos, e depois o pensamento filosófico prevaleceu, agora estamos no momento da plena afirmação da ciência. Fomos capazes , muitos diriam, de transformar a potência primitiva em ato científico e atingir o topo da civilização.

Vivemos encantados pela ilusão de uma sociedade em potência, que em algum momento do futuro realizará completamente todas as suas potencialidades escondidas, basta que as condições certas sejam preenchidas. Sim, mas quais? Bom, alguns dizem que é necessário desenvolver mais o campo tecnológico; o argumento dos economistas é que o PIB precisa bater novos recordes; os liberais dizem que a saída passa pela educação e os conservadores argumentam que é necessário manter a tradição, afinal, ela que guarda a nossa essência. Apesar de ser difícil apontar o caminho correto, o raciocínio é sempre o mesmo: há uma barreira entre nossa incompletude e o sonho de plenitude.

Deste modo, parece que todas as nossas ações são tentativas de abrir as portas do progresso e convidá-lo a entrar, mas ele se recusa… se faz de difícil, permanece do lado de fora. Tentamos seduzi-lo com nossas ações, palavras e promessas, mas parece que ainda não somos dignos de sua presença. Desta maneira, estamos sempre nos lançando num futuro que nunca chega. É preciso produzir mais, acumular mais, comprar e vender mais, colonizar mais! Pensando nisso, saímos à procura de mais mercados consumidores, mais acordos bilaterais, mais extração de madeira, petróleo, minérios. Mais, sempre mais e mais. Enchemos a dispensa da casa com todos os produtos possíveis, mas o progresso não chega. Levamos a democracia para os quatro cantos do mundo, mas o progresso não se aproxima. De tão etéreo, este sonho começa a brilhar à distância, como uma ideia norteadora de todas as nossas ações. Sabemos que ele não chegará, mas ao menos serve de guia para sabermos o que fazer. 

Este é o pensamento ao qual o nosso tempo existencial se submeteu. O mundo se acelera cada vez mais tentando alcançar aquilo que nunca virá. E neste momento o filósofo começa a desconfiar. Por que acreditamos que o futuro será melhor que o passado? Quando esta crença sequestrou a nossa imaginação? Tudo começou com a convicção de que as coisas têm um caminho pré-estabelecido, uma essência pré-determinada. Depois esta crença converteu-se em um dever, que se intensificou com a ideia absurda de que a evolução da sociedade se faria em linha reta numa única direção. 

O que poucos admitem é que a ideia de progresso está destruindo nosso mundo. O progresso parece falar de uma felicidade geral para a sociedade, um novo estágio onde a satisfação geral seria garantida pelos excessos da produção. Mas esta busca frenética mostra outra coisa: uma violência onde alguns poucos se beneficiam da exploração da natureza e do corpo social. Basta ver como este objetivo nunca foi capaz de reduzir o esforço, e sim apenas aumentar a produção. Sendo mais direto: o progresso e a evolução acontecem apenas na conta bancária dos poderosos. 

É fácil perceber como a imposição da ideia de progresso não se torna um subterfúgio imaginativo para autorizar a violência e exploração de muitos em benefício de poucos. Em outras palavras, a teoria na prática é outra, enquanto a natureza é violentada por motoserras e picaretas e o trabalhador é massacrado por jornadas de trabalho extenuantes e metas inalcançáveis, o lucro das empresas no fim do semestre bate novos recordes.

É difícil não ser alarmista, mas a ideia de progresso vai acabar com o planeta como o conhecemos. Ironicamente, a busca pelo melhor dos mundos se tornou uma das causas de sua destruição. Os “melhoradores da humanidade” construíram máquinas, se esforçaram para tornar tudo mais eficiente, e conseguiram, mas a felicidade é adiada em nome do progresso, ainda não é hora, é necessário deixar o bolo crescer mais antes de dividi-lo.

Estamos no meio desta encruzilhada, onde a soma de mais com mais, de alguma maneira, dá menos. A matemática atual diz que se somarmos tudo, terminaremos com nada. Sabemos que vivemos no século do progresso, mas quem nunca se perguntou, “progresso de quê?”, ou melhor, “progresso pra quem?”, ignora aspectos importantes desta questão. E não se enganem, os melhoradores do mundo não sabem responder a estas perguntas.


Do site "Razão idadequada", acesso em 25/08/2024