quarta-feira, 7 de junho de 2017

O QUE É ESCREVER

Escrever não  é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. A literatura é antes do lado do informe, ou do inacabamento, como Gombrowicz o disse e fez. Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrever, estamos num devir-mulher, num devir-animal ou vegetal, num devir-molecular, até num devir-imperceptivel. Esses devires encadeiam-se uns aos outras segundo uma linhagem particular, como num romance de Le Clézio, ou então coexistem em modos ou niveis, segundo portas, limiares e zonas que compõem o universo inteiro, como na pujante obra de Lovecraft. O devir não vai no sentido inverso, e não entramos num devir-Homem, uma vez que o homem se "apresenta" como uma forma de expressão dominante que pretende impor-se a toda matéria, ao passo que mulher, animal ou molécula têm sempre um componente de fuga que se furta à sua própria formalização. A vergonha de ser um homem: haverá razão melhor para escrever? Mesmo quando é uma mulher que devém, ela tem de devir-mulher, e esse devir nada tem a ver com um estado que ela poderia reivindicar. Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que já não seja possível distinguir-se de uma mulher, de um animal ou de uma molécula: não imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto se singularizam numa população.
(...)
Gilles Deleuze in Crítica e Clínica

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