terça-feira, 14 de novembro de 2017

SEM CORPO

Que a psiquiatria não tem um corpo, isso foi dito com rigor metodológico por Foucault em “O poder psiquiátrico, 1973, 1974". Significa estabelecer o dado de que ela, de fato, não é uma medicina, não é Medicina. Esta, óbvio, tem um corpo, o organismo físico-químico composto por órgãos e sistemas interligados. Ao final do século XIX, a psiquiatria tenta suprir esse buraco prático-conceitual com a instituição do corpo neurológico a partir da alta morbidade da sífilis cerebral na Europa. Já no século XX, dá-se uma cisão psicopatológica interna ao sistema nosológico psiquiátrico, qual seja: patologia mental orgânica = sífilis cerebral; patologia mental não orgânica = histeria. As pesquisas clínicas tornaram-se mais complexas quando Bleuler, em inícios do século XX, sob a influência da psicanálise, inventa o conceito clínico de esquizofrenia (cisão do eu), substituindo, assim, a antiga demência precoce de Kraeplin. Ora, é importante verificar que ainda hoje, a psiquiatria permanece sem um corpo, pois, tanto na histeria quanto na esquizofrenia não há constatação de lesões e/ou disfunções cerebrais correlatas à sintomatologia. O corpo neurológico não atende aos critérios para uma etiologia definida e definitiva do transtorno mental. Na última década do século XX, também chamada década do cérebro, com o avanço dos exames por imagem, o cérebro passou a ser estudado com mais detalhes no seu funcionamento. Tal progresso científico serviu e serve à linha do biopoder (cf. Foucault), aos interesses da indústria farmacêutica internacional, ao mercado do consumo desenfreado de remédios químicos atrelado às prescrições médicas, e produz o fato de que o corpo da psiquiatria passa a ser o cérebro, já então reificado (coisificado) como agente causal das patologias mentais.


A.M.


P.S. - Texto republicado.

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