sexta-feira, 31 de maio de 2019

PRODUÇÃO DE ANTIPRODUÇÃO

O Estado, sua polícia e seu exército formam um gigantesco empreendimento de antiprodução, mas no seio da própria produção, e condicionando-a. Encontramos aqui uma nova determinação do campo de imanência especificamente capitalista: não somente o jogo das relações e coeficientes diferenciais dos fluxos descodificados, não apenas a natureza dos limites que o capitalismo reproduz a uma escala sempre maior enquanto limites interiores, mas a presença da antiprodução na própria produção. O aparelho de antiprodução já não é uma instância transcendente que se opõe à produção, que a limite ou a freie; ao contrário, ele se insinua por toda a máquina produtora, liga-se estreitamente a ela para regrar sua produtividade e realizar a mais-valia (donde, por exemplo, a diferença entre a burocracia despótica e a burocracia capitalista). A efusão do aparelho de antiprodução caracteriza todo o sistema capitalista; a efusão capitalista é a da antiprodução na produção em todos os níveis do processo. Por um lado, só ela é capaz de realizar o fim supremo do capitalismo, que é o de produzir a falta nos grandes conjuntos, de introduzir a falta onde há sempre excesso, pela absorção que ela opera de recursos superabundantes. Por outro lado, só ela duplica o capital e o fluxo do conhecimento, com um capital e um fluxo equivalente de imbecilidade que também operam a absorção ou a realização, e que garantem a integração dos grupos e dos indivíduos ao sistema. Não só a falta no seio do excessivo, mas também a imbecilidade no conhecimento e na ciência: veremos, notadamente, como é no nível do Estado e do exército que se conjugam os setores mais progressivos do conhecimento científico ou tecnológico e os débeis arcaísmos encarregados de exercer funções atuais.
(...)

Gilles Deleuze e Félix Guattari, in O anti-édipo

ANNA RAZUMOVSKAYA


Há uma grandeza, há uma glória, há uma intrepidez em ser simplesmente bom, sem aparato, nem interesse, nem cálculo; e sobretudo sem arrependimento.

Machado de Assis
IMANÊNCIA

A palavra imanência pode gerar algumas controvérsias ou desentendimentos. Não para nós! Partimos da ideia simples de que a realidade é em si mesma. Isso significa que a existência não possui fim algum a ser alcançado e que não vive em função de nada exterior. Ou seja, a realidade é o que é, determinada por ela mesma e pelas forças que a atravessam, dito de modo direto: é causa de si, está unida a ela mesma e nada além disso.

A imanência opõe-se à transcendência. Os dois conceitos implicam maneiras radicais de vida, completamente diferentes uma da outra. A transcendência é a causa que se afasta de seu efeito, implica uma criação que solto-se de sua causa. Deus criou o mundo em sete dias é um bom exemplo de transcendência. O criador faz o mundo e depois fica lá, olhando, intervindo caso necessário. Poderíamos dar outros exemplos: leis imutáveis pré-existentes ao universo, que estão para além de nossa realidade; uma finalidade para a nossa humanidade, como o avanço tecnológico, o lucro, ou talvez fazer o bem; um objetivo que conquistaremos como o fim da fome, a paz, etc. São todos exemplos de transcendência, algo que está além, depois, acima, como um ideal brilhando que nos guia.

Resolvemos escrever sobre a imanência a partir da perspectiva dos filósofos antigos, pré-socráticos, que eram chamados também de físicos naturais. Eles estavam preocupados apenas em entender a realidade, da maneira que esta nos chega. Seguindo este raciocínio, cada um deles considerou uma substância como essencial na composição de nosso mundo. Foi Empédocles quem fez a união dos quatro elementos essenciais. Para os pré-socráticos, tudo na vida apenas se faz e se desfaz a partir destes quatro elementos substanciais. É o reino do devir! Nada se perde, tudo se transforma; nada escapa, tudo permanece; nada é eterno, tudo está em fluxo.

A imanência é o único meio de viver plenamente esta vida, encontrar seus caminhos internos, suas dobras e protuberâncias sem perder-se em fins exteriores.


Do site Razão inadequada, acessado hoje

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Alma solitária

Ó Alma doce e triste e palpitante!
que cítaras soluçam solitárias
pelas Regiões longínquas, visionárias
do teu Sonho secreto e fascinante!

Quantas zonas de luz purificante,
quantos silêncios, quantas sombras várias
de esferas imortais, imaginárias,
falam contigo, ó Alma cativante!

que chama acende os teus faróis noturnos
e veste os teus mistérios taciturnos
dos esplendores do arco de aliança?

Por que és assim, melancolicamente,
como um arcanjo infante, adolescente,
esquecido nos vales da Esperança?!


Cruz e Sousa 

quarta-feira, 29 de maio de 2019

ARMADILHAS DA LINGUAGEM 

                                                                        
Para  nomear  o mundo, a  linguagem  organiza-se   ao   modo    dual.  Produz  identidades  fixas.  Paciente e  terapeuta, aluno  e professor, doente  e  são,  homem  e mulher, rico e  pobre,  etc. O dualismo  facilita   as  coisas.   Ao mesmo  tempo,  a  linguagem  é  usada   para   a  dominação  e  controle de  corpos  e mentes, empobrecendo  os  processos  subjetivos.Se  é   possível    pensar diferente  (sem  decalque do  real),  temos  que     sair   desse       dualismo  naturalizado...No  caso  da   Saúde  Mental  (a psiquiatria  como   paradigma), não é  recomendável   situá-la   numa  relação de  oposição  simples  do   tipo “ a  psiquiatria  não  presta”,  ou algo  similar.  A psiquiatria    presta  serviços, sim,   e este  é  o problema.  Ao mesmo  tempo, a  estrutura  do  poder  psiquiátrico  está  dada, implícita, à  espera apenas  que se  lhe   cumpra  ordens. Trata-se   de  uma    máquina  bem azeitada. Como  resposta,  seria    possível  uma  recusa  ao  Instituído?    Sim, desde  que    a  Crítica    evite   adotar  formas  de  oposição, o que  leva  o  discurso   à  armadilha  dos dualismos. Ou  isso  ou  aquilo. 
É  que  a     diferença  precede  e ultrapassa   modos  de oposição, ou  mais  precisamente, o Negativo. Ela  não  tem  modelo. Tomemos o    paciente.  Ele    se  constitui  como    afirmação  subjetiva   múltipla   do que  chamamos  de  singularidades.   Não  é o  negativo  do  Instituido  ( anormal  versus    normal) e  sim    uma  expressão  incodificável   de  viver.  Tal expressão  chega   “antes”  do sintoma  e    produz   territórios  do desejo.  Então, trabalhar  com a  patologia  mental    é    trabalhar com linhas  desejantes    agenciadas  na realidade.  A  clássica  divisão “conduta  psicótica/conduta  não  psicótica”  é substituída pela  análise das  linhas expressivas  consistindo  territórios existenciais = desejo.  Isso  não quer  sugerir  que    se    desconsidere  os  riscos inerentes  a um  estado   psicótico. Ao contrário, os   riscos serão avaliados no  contexto  específico  onde  se  acha  o paciente. A dimensão  do grupo-referência (geralmente  a  família)   assume  importância  fundamental na  condução  de  cada  caso.  Os  dualismos saem de cena. São   questões    práticas.Qual  a  “vantagem”   de  tal    modo de pensar?  Antes  de  tudo,  em  conceber o transtorno   mental  como  agenciamento  de  forças, tanto  na  etiologia  quanto  na clínica psicopatológica. Em segundo  lugar,  retirar  o paciente  da  esfera  do   “negativo” . Ele  sai   da  segregação e  invalidação   da  fala  para um contexto  de análise, escuta e  produtividade.  Por último,  a  conexão do  patológico com o não-patológico, o que  trará   consequências  importantes  ao  projeto  terapêutico. 


A.M.

terça-feira, 28 de maio de 2019

EMBRIAGUEM-SE

É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: "É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso". Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.


Charles Baudelaire

DUBLÊ DE CORPO - direção de Brian De Palma, 1984 (música de Pino Donaggio)

QUANDO O TRABALHO ADOECE

A síndrome do trabalhador esgotado (síndrome de burnout) aparecerá na próxima Classificação Internacional de Doenças (CID-11) da Organização Mundial da Saúde (OMS) como um problema associado ao emprego ou ao desemprego. Este distúrbio vinculado ao estresse crônico no trabalho já estava na edição anterior do catálogo (1990), mas em um item vago (problemas relacionados com dificuldades no controle da vida). Especialistas sugerem que essa mudança dará visibilidade à doença e, por estar ligada a um problema no trabalho, também facilitará o gerenciamento de afastamentos e incapacidades. A nova classificação entrará em vigor em 2022.

A síndrome do desgaste emocional, como explicitada na nova classificação, está associada ao estresse crônico no trabalho, caracteriza-se pela despersonalização das tarefas, exaustão emocional e física e baixo rendimento. Especialistas estimam que o burnout afete 10% dos trabalhadores e, nas formas mais severas, entre 2% e 5%.
(...)

Jessica Mouzos Quintáns, El País, 28/05/2019, 15:08 hs
Convém não facilitar com os bons, convém não provocar os puros. Há no ser humano, e ainda nos melhores, uma série de ferocidades adormecidas. O importante é não acordá-las.


Nelson Rodrigues

NDT - Marne van Opstal

Gravei seu olhar, seu andar 
Sua voz, seu sorriso
Você foi embora
E eu vou à papelaria 
Comprar uma borracha


Chacal
CAFÉ DA MANHÃ

O presidente Jair Bolsonaro receberá nesta terça-feira (28), para um café da manhã, os presidentes de todos os poderes no Palácio da Alvorada, informa o repórter Nilson Klava, da GloboNews.

Estarão presentes o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre.

O objetivo do encontro é mostrar harmonia entre os poderes depois das últimas manifestações e estabelecer uma espécie de pacto em defesa a pautas como a reforma da Previdência.
(...)

Gerson Camarotti, O Globo, 27/05/2019, 19:43 hs

segunda-feira, 27 de maio de 2019

NIKITA MANOKHIN


ZUMBIS MODERNOS

O desejo maquina entre os corpos e nos corpos. Exposto à luz do dia, mesmo à meia noite, ele  é produção incessante, formigamento nem sempre visível ; "o que não tem governo nem nunca terá". Uma criança. Por que a metamorfose? Não há porque, não há de que, aí onde a gratuidade empurra a existência por e para linhas insólitas.A morte não é substantiva, ela é o morrer, verbo infinito, mesmo que se fale de passados ressentidos e/ou futuros impossíveis. Como desejar? Não é fácil, mesmo que pareça. O desejo não é a festa! Antes de tudo as sociedades modernas fizeram e fazem do consumo a produção de territórios estáveis onde alguém se reconhece: este sou eu. No entanto, tal reconhecimento de si é tributário de forças sociais que, de longe bem perto fabricam o eu em seus estratos mais íntimos: meu mundo interior, meu ego, minha subjetividade, meu cérebro, minha profissão, meus títulos, meu saber. A propriedade e a forma das coisas substituem o desejo como produção. Ninguém escuta o que não quer. Prossegue o empreendimento de sabotagem das multiplicidades ; “como dói, mas como é bom”. Isso funciona em toda parte onde existe o produto cristão, a “pessoa humana”., mesmo entre não cristãos.Mas, afinal, onde anda o desejo? Ora, ele costuma ser trocado por dinheiro e transcendências astutas: a Esquerda. Por extensão, as novas gerações aceitam o mundo como o melhor dos possíveis  e para o qual não há fora, não há o fora, nem sequer é possível dar o fora. Trata-se de uma espécie de paralisia coletiva do pensamento. Este se revela como técnico-cognição: isso é um celular, isso é um computador, esta é uma lição pedagógico-terapêutica-comportamental: “busque não pensar, busque morrer”. As práticas de vida norteiam-se, então, pelo pensamento da representação: identidades petrificadas, especialismos em oferta, produtos à espera do consumo imediato e serial em shoppings da alma. Proibido viver, pensar, sentir, revolucionar.Um desejo humanizado se imiscuiu em redes sinápticas (ou até em redes internéticas) como caução ao  deus-capital quando este inflinge a dor em normas implícitas do bom viver. E o mundo prossegue em busca da salvação. 

A.M.



Obs,: texto publicado em 31/12/2014, revisado e republicado.
Não entendo o porque das pessoas pensarem sempre no pior e não no mais provável que é pior ainda.

George Carlin

Salmo perdido


Creio num deus moderno,
Um deus sem piedade,
Um deus moderno, deus de guerra e não de paz.


Deus dos que matam, não dos que morrem,
Dos vitoriosos, não dos vencidos.
Deus da glória profana e dos falsos profetas.


O mundo não é mais a paisagem antiga,
A paisagem sagrada.


Cidades vertiginosas, edifícios a pique,
Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais.
Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais,
As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,
Deus não nos reconhece mais.


Dante Milano

domingo, 26 de maio de 2019

GRANDEZA DE FÉLIX

A crise mundial em que estamos mergulhados é, a meu ver, uma crise dos modos de semiotização do capitalismo, não só no nível das semióticas econômicas, mas de todas as semióticas de controle social e de modelização da produção de subjetividade.

A ascensão dessa imensa vaga reacionária que submergiu o planeta é em grande parte consequência do desenvolvimento da crise econômica que apareceu em 74. Mas, na verdade, não se trata verdadeiramente de uma crise econômica. Mais exatamente, essa crise econômica é apenas uma de toda uma série de crises. Aliás, é justamente porque os movimentos de esquerda sindicais tradicionais viveram essa situação unicamente em termos de crise econômica, que o conjunto dos movimentos de resistência social ficaram totalmente desarmados. E, na ausência de respostas, foram as formações mais reacionárias que tomaram conta da situação.

Dá para estimar que o essencial dessa crise mundial (que é, ao mesmo tempo, uma espécie de guerra social mundial) é a expressão da gigantesca ascensão de toda uma série de camadas marginalizadas, por toda a superfície do planeta. São centenas de milhares de pessoas que vivem com fome, e não só isso, mas também centenas de milhares de pessoas que não podem se reconhecer nos quadros sociais que lhes são propostos. Essa crise de modelos de vida, de modelos de sensibilidade, de modelos de relações sociais, não existe somente nos países subdesenvolvidos mais pobres. Ela existe também em amplas correntes das massas dos países desenvolvidos.
(...)

Félix Guattari, 1983
O INVOLUNTÁRIO


RIO - Contrariando as políticas públicas mais recentes e a opinião de muitos especialistas , o governo de Jair Bolsonaro decidiu dar ênfase à internação como forma de tratar a dependência química e, agora, está prestes a autorizá-la mesmo em casos em que não há o consentimento dos pacientes.

Um projeto de lei aprovado no Senado há dez dias, que aguarda apenas a sanção presidencial, estabelece a internação involuntária de dependentes químicos — a partir do pedido de um familiar, responsável legal ou até de um servidor público da área de saúde — e abre margem, por exemplo, para que populações de rua das chamadas Cracolândias sejam recolhidas e encaminhadas para leitos hospitalares.

O texto altera a Lei de Drogas , de 2006, e outras 12 normas sobre o assunto. A aprovação do Senado ao projeto — apresentado nos idos de 2013 pelo então deputado e hoje ministro da Cidadania, Osmar Terra — acendeu o alerta de especialistas e órgãos ligados à saúde e aos direitos humanos.

O Centro Brasileiro de Estudos sobre Saúde (Cebes) lançou nota pública na qual afirma ver “graves retrocessos nas políticas de drogas”. O comunicado crítico foi endossado por mais de 70 entidades, como o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil .
(...)

Audrey Furlaneto, O Globo, 25/05/2019, 18:49 hs

ALAN PARSONS - Time

AMORES DUROS

Um mal incurável assola a civilização industrial. Possui nomes permutáveis conforme os  interesses em jogo. O portador de transtorno mental torna-se o protagonista da anticura. É etiquetado por diagnósticos extensos que se popularizam via mídia. O psiquiatra é chamado num programa de TV para sancionar veredictos que enchem o olho - telespectador. Ao fim, a verdade injetada publicamente em subjetividades em série constroe um plano de inserção da  clínica farmacológica. Tudo é muito natural e sensacional. Você assiste ao próprio eu se materializar em cores excitantes e sons maviosos. Como resistência (ato político) resta trair a psiquiatria e escapar do esquema pomposo das maquinarias engenhosas, inclusive o rosto da saúde perfeita. A cognição das formas sociais invasivas adota o feitio do controle consentido e incentivado. Controlo a mim, controlo a você. No interior dos hiper-laboratórios, o poder afunila seu ponto de aplicação mais visceral. A procura da alma dentro do cérebro é substituída pela procura do cérebro dentro da alma. Supõe-se certamente que ela exista desde sempre como a porção etérea não codificável. Chegou a vez de tratá-la como coisa séria, coisa de cientistas. O mais a psiquiatria divulga sem cessar. No entanto, resistir, resistir é traí-la sem retorno e virar pelo avesso as baterias do fármaco, até que o mundo caminhe sobre suas próprias pernas. Fazer arte, escutar o paciente. Simples: apague o diálogo interno. Castañeda, Reich, Drácula, Lovecraft, Bukowski, freaks, espaços lisos e libertários por toda parte.

A.M.

sábado, 25 de maio de 2019

Xeque-mate

Quando menos se espera, já são horas.
A dama de espadas perde o gume
e o pássaro pousado vai embora. 

Quando menos se espera, o que se anuncia
não é a sorte grande, a estrela Aldebarã
ou a sagração da primavera.
São tempos de abutre
e o coração, músculo bélico, fraqueja. 

De repente, já é sábado,
há uns assuntos desagradáveis para resolver
e, sobre a pele confusa da alma,
uma densa crosta de óxido e desalento.

Quando menos se espera, o rei está em xeque,
e é dezembro.
Há uma complicação de trânsito
na avenida
uma artéria que não dá passagem.
Quando menos se espera, já é tarde.


Carlos Machado

ANNA RAZUMOVSKAYA


sexta-feira, 24 de maio de 2019

SER DE ESQUERDA SER DE DIREITA

Esquerda e Direita não remetem as essências. Elas são (ou deveriam ser) apenas linhas para um balizamento político. O que mudar? Por que mudar? Como mudar? Para que mudar? Mudar para quem? São questões amplas para problemas concretos. Todos (não só os políticos) falam em mudanças. Ninguém deixa de falar em mudanças, mormente num país com graves problemas sociais como o Brasil. Então, seguindo um pensamento das multiplicidades existenciais, é possível falar em muitas esquerdas e muitas direitas. Tudo vai depender de uma análise das instituições (formas sociais) em jogo. Seja um indivíduo: ele pode ter linhas de esquerda e direita misturadas, entrelaçadas, ao ponto de não ser possível distingui-las. Então, será preciso obter um conceito que abranja um desejo de mudança atravessando modos de subjetivação. Não indagando "quem sou?" (uma identidade) mas, à medida em que o tempo passa, em quem me torno? Ora, se o tempo passa é porque tudo muda, queiramos ou não. Assim, o conceito de "irreversibilidade do tempo" é o que nos serve para pensar a esquerda e a direita para além ou aquém das essências ou formas imutáveis. O cidadão que pensa encarnar em si mesmo a esquerda ou a direita vive da fabricação de um imaginário narcísico e paranóico. Somos simultaneamente esquerda e direita postos sob um solo de incessante mudança, ainda que imperceptível. E para lidar com a vertigem do tempo e a antinomia esquerda~direita que busca tamponar o devir, a arte é a linha afirmativa, não a monumental ou a mercantil, mas a arte como invenção de vida, de alegria. Ainda que às custas de demolições e sofrimentos inomináveis, desponta a utopia revolucionária. Resumindo, em meio ao dualismo político que assola o país, o processo revolucionário ressurge em toda a necessidade e potência, atravessa o desejo e a sociedade como o que existe de mais digno (existencialmente) para sair do buraco ético em que nos metemos.

A.M. 


Obs.: texto publicado em 20 de setembro de 2018, revisado e republicado.
TIRANIA DEMOCRÁTICA

Entre os tantos momentos graves vividos pelo Brasil desde que Jair Bolsonaro (PSL) foi eleito presidente e passou a governar como antipresidente, este em que ele e sua família pregam abertamente um autogolpe é possivelmente o pior. E, a depender de como for enfrentado pela sociedade, outros piores virão. Se aqueles que ocupam as instituições brasileiras ainda têm respeito pelos seus deveres constitucionais, é hora de resgatar o que resta de democracia e usar a Constituição para responsabilizar o ato golpista antes que seja tarde. Não há democracia possível se aquele que foi eleito para governar estimula o autogolpe, incitando seguidores que falam abertamente em fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Não há democracia possível se aquele que foi colocado no Planalto pelo voto está disseminando panfletos pelo seu próprio WhatsApp, em que a população é convocada para ocupar Brasília e as cidades do país no próximo domingo, 26 de maio. Se as instituições brasileiras, todas elas, assim como a sociedade, apenas assistirem passivamente ao antipresidente rasgar abertamente a Constituição, acordaremos na próxima segunda-feira em outro país. E, posso garantir: não será um lugar bom.
Mesmo que as manifestações pelo autogolpe fracassem no domingo, o fato de um presidente incitá-las já é um passo largo demais na escalada autoritária. É um pode tudo que numa democracia não pode. Se puder, e parece que está podendo, porque Bolsonaro está fazendo abertamente diante dos olhos de todos, é porque no Brasil o que resta de democracia já não segura mais nada. É este o autogolpe – e já está agindo como golpe, ao escancarar que pode tudo mesmo antes de poder tudo.
Depois de incitar e panfletear aquela que está sendo chamada de “marcha da loucura”, Bolsonaro tentou fazer o que sempre faz. Recuou, saiu da oposição ao próprio Governo e temporariamente voltou a ser situação. Anunciou ter desistido de ir pessoalmente à marcha e avisou aos ministros que também não deveriam ir. Tarde demais. A marcha tem o DNA de Bolsonaro em todas as partes do seu corpo monstruoso. Cada ato do próximo domingo será feito em seu nome.
É preciso compreender muito bem o que Bolsonaro e o bolsonarismo são e fazem. Apesar de se venderem como “nacionalistas” e falarem em defesa da “nação”, seus atos mostram que estão contra a nação. E não estou aqui esgrimando com retórica. É contra a nação porque seu golpe é feito em nome da família, do clã. E é feito pela família, pelo clã. Ainda que nação seja um conceito em disputa, com uma história longa, a ideia de nação se opõe radicalmente à ideia de clã. Bolsonaro tem governado abertamente contra a nação, pelo clã. Ele e seu clã querem expulsar do país todos aqueles que não fazem parte do clã. Seja porque defendem propostas diferentes no campo da política, seja porque representam ideias diferentes no campo dos costumes.
(...)

Eliane Brum, 22/05/2019, 12:15 hs

CHARLIE HADEN & CHET BAKER - Silence

terça-feira, 21 de maio de 2019

Tratado geral das grandezas do ínfimo

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.

Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogio


Manoel de Barros

segunda-feira, 20 de maio de 2019

TAURUS

O decreto assinado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, que regulamenta o porte e posse de armas no país, possibilitará que qualquer cidadão possa comprar um fuzil.

A compra do fuzil passou a ser possível a partir da nova classificação estabelecida pelos responsáveis pelo decreto. No documento, se aumenta em até quatro vezes o valor do poder de fogo de armas que podem ser adquiridas pelos civis.

A nova classificação inclui o fuzil T4, uma arma usada por forças táticas militares e produzida no Brasil pela empresa Taurus.
(...)

Leslie Leitão e Paulo Renato Soares, Jornal Nacional,20/05/2019, 20:57 hs, atualizado há 20 min.

GLÓRIA FEITA DE SANGUE - direção de Stanley Kubrick, 1957

Talvez os poetas estejam certos. Talvez o amor seja a única resposta.

Woody Allen
SUBJETIVAÇÃO PSIQUIÁTRICA

(...)
Fiel às suas origens embrenhadas em relações de poder, a psiquiatria consiste numa forma  social ou forma de relação social que se propaga e se institui como subjetivação psiquiátrica. Isso atinge intensamente a todos os que  estão envolvidos  com a  problemática  do louco, inclusive  o próprio louco, que passa a se chamar “psicótico”. É importante frisar, de acordo com a definição institucional, que não nos referimos à psiquiatria apenas como organização visível ( o hospital) nem tampouco como dispositivo (o ato médico). Falamos da  psiquiatria  como  uma  forma  social tanto mais  abstrata  e  invisível quanto mais concreta  e incisiva nas suas práticas de subjetivação. Pensar  psiquiatricamente,sentir psiquiatricamente, perceber psiquiatricamente, agir psiquiatricamente etc. Há, pois, uma subjetividade psiquiátrica  que atravessa  segmentos não psiquiátricos no campo da saúde mental, como é  o caso da psicologia e demais saberes da área psi.
(...)

A.M.


Obs.: extraído do texto "o diagnóstico psiquiátrico e a clínica da diferença"

GEORGY KURASOV


Ofício

Constróis com empenho
teu artefato de sílabas.

Enuncias a noite
alcanças o feminino 
das coisas sem gênero
vagueias no campo branco
do que não se diz.

Relojoeiro, numismata
colecionador de conchas do mar
gastas o olho
e a alma 
nesse ofício minúsculo.

Tua ração é o tempo
o tempo e seu estandarte
de sustos
paisagem sem freios
à janela do trem.

Mas sabes: 
depois de tantos incêndios
luas novas e paixões
o que se aprende é bem pouco.

Bastaria dizer:
os espinheiros florescem
na varanda.


Carlos Machado

domingo, 19 de maio de 2019

Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra.

Caio Fernando Abreu

O QUE É PENSAR?

Trabalhar com pacientes num Caps implica em sair das grades do manicômio, do ambulatório, do consultório, estes por sua vez marcados pela forma-hospício. Significa explorar linhas de multiplicidade, mesmo e principalmente no paciente identificado ao portador de transtorno mental. Há linhas não percebidas, talvez invisíveis. Pacientes registrados, cadastrados, codificados, rotulados sob o efeito de formas sociais (instituições) como a família, a clínica, a escola, o trabalho, o direito, o estado, a polícia, o casamento, entre outras, estão enfiados em buracos negros onde o devir-pensamento foi relegado a uma atividade cognitiva mínima, rasteira, como consta nos manuais psiquiátricos. Curso, forma, conteúdo, raciocínio, juízo, são categorias semiológicas usadas num exercício de mortificação do devir-pensamento. Elas compõem o mundo da  representação. Tornar o pensamento visível e frear a sua velocidade infinita é assunto e tarefa de psiquiatras torturadores e adquire na clínica atual o requinte das tecnologias de ponta. Subjacente à técnica, existe a crença de que o paciente não pensa, ou se pensa, é para responder qual o nome, que dia é hoje, onde estamos, que veio fazer aqui, etc. Insistimos no dado de que o pensamento não é só o que é falado, mas o que é experimentado via sensações, intensidades, afetos. A alma é o pensamento. O que muitas vezes não  pode ser dito, não chega a ser  dito, não consegue ser dito. Mas existe.
(...)

A.M.

sábado, 18 de maio de 2019

Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.

Sophia de Mello Breyner Andresen

ZECA BALEIRO - Bicho de sete cabeças

A LOUCURA, HOJE

O Movimento da Luta Antimanicomial nasceu junto às lutas políticas no período imediatamente pós-ditadura militar. Era 1987. Ele se alia à chamada reforma psiquiátrica e se conjuga ao projeto de implantação do SUS. Então, pensar a Luta hoje seria pensar sócio-políticamente a relação com o paciente.Uma perspectiva que nos conduz ao presente, justo quando forças conservadoras impregnam o país. Tais forças são poderes explícitos e/ou implícitos. O estado e a psiquiatria:  instituições avessas à loucura e daí à lógica antimanicomial.  Aliadas a outras instituições (escola, direito, polícia, família, etc) elas odeiam esse tipo de abordagem. Querem mais é medicalizar a vida, tamponar o desejo, racionalizar a existência e manter um status hegemônico. Assim, a figura sinistra do manicômio torna-se concreta na ordem subjetiva vigente; um muro. A luta antimanicomial é um ato de resistência contra os manicômios internos de todos nós.

A.M.
Solução melhor é não enlouquecer mais do que já enlouquecemos, não tanto por virtude, mas por cálculo. Controlar essa loucura razoável: se formos razoavelmente loucos não precisaremos desses sanatórios porque é sabido que os saudáveis não entendem muito de loucura. O jeito é se virar em casa mesmo, sem testemunhas estranhas. Sem despesas.
(...)

Lygia Fagundes Telles

sexta-feira, 17 de maio de 2019

DMITRI DANISH


O OUTRO LADO

As linhas da existência se mostram lúgubres e humilhadas.Para onde quer que se olhe a grande esfera decadente vegeta em porões da alma. A boca é uma cloaca. Ela arrota a estrada sem rumo. No future. Este se corporifica em chagas invisíveis do corpo extenuado e imóvel num canto do quarto. A existência tece linhas duras, opacas, impossíveis de tocar como se toca uma vida. Um deserto sem fim estende seus campos alargados em veias exangues. O buraco da consciência engole tudo. Fica uma sensação de partida sem partir, de sofrer sem viver, de morte sem morrer. Terrível paradoxo escala os buracos de um rosto pétreo e imenso. Isso não faz piscar o olho encolhido no meio da noite. Silêncio! Ao contrário, a visão se congela e congela o nada. Já não mais se canta a canção livre da passarinhada. Limite zero, superfície rugosa e única, apocalipse, armegedom, fim de mundo. Mas eis que de repente, quase imperceptível, em esboço, um rosto de mulher... se avizinha.

A.M.
DUAS CARAVELAS

Meu amor, me beija
com a ternura deste dia azul

Lá fora
fiapos de nuvem rolam
e o marinho do lote ao lado
está verde, crescendo

Quase não sopram
os ventos 


Francisco Alvim

Claus Ogerman - It's Not Unusual

quinta-feira, 16 de maio de 2019

INVENTAR  O  CAPS

Enfocando o grupo técnico em saúde mental, teríamos: 1-Trata-se de fato de um grupo? 2- A que interesses atende? 3-Que concepções sobre a loucura norteiam o trabalho clínico? 4-Como se dá a comunicação entre os segmentos técnico-profissionais em relação ao paciente? 5-Qual o lugar da ética e da política nas ações práticas? 6-Quais os índices da medicalização consentida que ainda assola a equipe? Tentemos processar, em linhas gerais, cada um dos itens, usando uma hipótese de base: apesar da reforma psiquiátrica, a psiquiatria é um modo de subjetivação que ainda domina e controla os que lidam com o paciente. Existe, pois, o grupo técnico trabalhando sob uma espécie de transcendência psiquiátrica. "Tomou a benção aos médicos?" Esse dado tem origens complexas (que fogem ao objetivo desse artigo) e se expressa no lugar de poder da medicina. Contudo, desde que a psiquiatria oferece um arsenal de medicamentos contra os ditos transtornos mentais, o despotismo psiquiátrico é tolerado e por vezes louvado. Remédio não é um mal em si. O bom ou mau uso é quem decidirá. A questão é que esse "uso" surge como primeiro na avaliação psicopatológica, se é que ainda existe psicopatologia nas hostes mentais. Questão de poder: a verdade da psiquiatria passa a ser a verdade do paciente. Inversão da propedêutica médica. Medicar e depois diagnosticar, se possível. Assim, o transtorno mental surge na e da psiquiatria como seu objeto aparentemente legítimo. Cabe aos demais técnicos acompanhar o carro-chefe. Ou nada. Esse fato compromete o trabalho de grupo como um trabalho coletivo. Mas, afinal, de que objeto se trata? Transtorno mental já não seria alguma coisa fabricada pela própria psiquiatria?Transtorno mental é um conceito nominal. Não esclarece nada, não explica nada. Ele é que tem que ser explicado. Ora, se esse é o objeto da psiquiatria, não pode ser objeto da psicologia, da farmácia, da enfermagem ou de outros saberes. Então, partir da psiquiatria como proprietária do paciente é admitir que tudo, em termos de equipe e tratamento, gira em torno do significante hegemônico “psiquiatria” como centro de significação clínico-institucional. E por extensão, o seu objeto, o paciente. Parece que estamos girando num círculo de redundâncias. Como então constituir um grupo se um sujeito (a psiquiatria) instituiu há muito o seu objeto (o paciente) ? Ora, a grupalidade só pode ser obtida se houver uma des-hierarquização das relações intra-grupais. Um mesmo plano de trabalho e de afetos. Fora disso atolamos na burocracia técnico-administrativa. Então, esta é a primeira condição para um grupo de trabalho em saúde mental. Todos são iguais em suas diferenças. Em segundo lugar, a que interesses atende o grupo? Pode ser o interesse do Estado-patrão, sempre de olho na mídia e em possíveis desvios da normalidade jurídica e policial.  Ou o interesse da sociedade como um todo e o seu famigerado bom senso para saber como andam, como se comportam ("estão quietinhos?") seus loucos. Ao contrário, acreditamos que o grupo deve atender aos interesses da loucura. Entendemos esta como uma linha existencial libertária e avessa aos domínios e interesses do Estado, do Mercado, da Escola, do Direito, da Família e instituições conexas. A loucura, na verdade, não tem e não vive de interesses. Ela vive do desejo agenciado em praticas de mundo, é o puro desejo agenciado, contaminando produções subjetivas ao acaso dos encontros. Tal definição vive e se nutre no campo do impessoal. Portanto, não falamos do louco, mas da loucura que poderá se encarnar, aí sim, num suposto louco. Em terceiro lugar, o desejo está em toda a parte onde se trabalha com o louco. Ressoa a questão: que linhas o desejo percorre e escorre, ou, ao contrário, estagna, trava, impregna quando o louco se diz (ou dizem) que ele é louco? Por fim, em quarto lugar, a análise de um grupo técnico incide sobre práticas que o desejo impulsiona. É que a equipe técnica compõe-se de linhas do desejo e práticas coextensivas. Ela demanda uma autoanálise político-institucional incesssante das suas operações cotidianas. Para isso ser possível, usamos um método que traça a cartografia das produções desejantes num meio (ou conjugação) de determinações coletivas múltiplas. O meio é o método.Trata-se da subjetividade como modo de produção contextualizada. Devires, o conteúdo do desejo, processos de criação. Deste modo, evitar que o Caps reproduza o modelo biomédico, matriz da violência cientificamente autorizada e dos horrores registrados na história da psiquiatria, será possível?

A.M.


Obs.; publicado em 09/09/2017,  revisto e republicado. 

quarta-feira, 15 de maio de 2019

NAS REDES E NAS RUAS

Os cortes de verbas nas universidades públicas e o cancelamento de mais de 3.000 bolsas de pesquisa anunciados pelo Governo Federal no fim de abril desencadearam intensas manifestações de usuários nas redes sociais e começaram a movimentar as peças de um tabuleiro político virtual até então dominado por bolsonaristas. Desde que o ministro Abraham Weintraub disse que cortaria recursos de universidades que promovessem "balbúrdia" em vez de melhorar o desempenho acadêmico, no dia 30 de abril, o WhatsApp foi infestado por imagens e mensagens que ridicularizavam essas instituições, muitas delas de teor sexual. A ação foi orquestrada por grupos mais alinhados à direita, avaliam pesquisadores que monitoram manifestações políticas nas redes sociais desde as últimas eleições, quando o fenômeno mudou de escala no Brasil. Pela primeira vez, no entanto, essa rede de apoio ao presidente encontrou uma resistência mais forte, a partir de uma contranarrativa da comunidade acadêmica, que começou a compartilhar suas experiências pessoais e produções na universidade, principalmente pelo Twitter. A movimentação em torno do tema rivaliza com um debate mais antigo e também crucial para o Governo: o da reforma da Previdência.

Para os pesquisadores, trata-se de um índice não desprezível do movimento, que começa a confrontar a hegemonia virtual dos bolsonaristas e tem seu teste de força nas ruas nesta quarta-feira, nos diversos protestos marcados para acontecer todo o país em defesa da Educação e contra os cortes de verbas nas universidades federais. São mais de 7 bilhões de reais congelados em todos os níveis educativos, incluindo o não repasse de 30% do orçamento não obrigatório das instituições de ensino superior. A mobilização cresceu na esteira da greve nacional de um dia já convocada por professores contra a reforma previdenciária e a organização das manifestações não está apenas nas redes sociais, mas também nos tradicionais espaços de mobilização, como sindicatos e assembleias universitárias. Os partidos políticos, porém, têm se mantido comedidos até agora, ainda que apoiem os atos, numa tentativa de criar uma rede de coalizão e atrair novos atores em um momento político que segue marcado por uma forte polarização. A movimentação ganhou a esperada adesão da UNE (União Nacional dos Estudantes), mas também endossos menos óbvios, como das principais universidades estaduais de São Paulo (USP, Unicamp e Unesp) e de uma série de colégios particulares da capital paulista, a maior cidade do país.
(,,,)

Beatriz Jucá, El País, São Paulo, 14/05/20'9, 22:51 hs

terça-feira, 14 de maio de 2019

E agora o que fazer com essa manhã desabrochada a pássaros?

Manoel de Barros

ANNA RAZUMOVSKAYA


Foi quando eu senti, mais uma vez, que amar não tem remédio.

Caio Fernando Abreu
PAIXÃO DAS ARMAS

Não acredito que exista hoje, em um país democrático, um líder político com uma paixão tão mórbida e desenfreada pelas armas como o presidente brasileiro, o capitão reformado Jair Bolsonaro. Desde que chegou ao poder, há pouco mais de quatro meses, nenhuma outra categoria de pessoas foi mais favorecida por seus decretos do que aquelas que se sentem atraídas pelas armas.
Em seu último decreto, provavelmente inconstitucional, não só concedeu a possibilidade de possuir e portar armas a 19 milhões de brasileiros, de 20 categorias diferentes, como também abriu as comportas para dar essa possibilidade a milhões de "menores de 18 anos ", para que possam ser treinados no uso de armas letais em clubes de tiro. Um presente envenenado que não sabemos que consequências pode acarretar em uma sociedade como a brasileira, cujos adolescentes vivem no fogo cruzado de uma violência que os alcança até nos bancos escolares.
(...)

Juan Arias, El País, 14/05/2019, 15:11 hs

segunda-feira, 13 de maio de 2019

um   pouco  de  ar
senão eu  sufoco
deleuze  respira

respira  deleuze
esta  canção  doce

e  infernal


A.M.
INVENTAR  CONCEITOS

Depois de meia vida dedicada ao ensino, um professor de Filosofia argentino que gostava de usar métodos heterodoxos para que a matéria “gerasse erotismo, desejo, vontade de se envolver”, recebeu uma encomenda de uma de suas alunas de pós-graduação. Ela trabalhava em um novo canal de televisão e lhe propôs desenvolver um programa sobre filosofia (Mentira la Verdad, que já tem 52 capítulos). “Foi aí que tudo explodiu”, diz Darío Sztajnszrajber (Buenos Aires, 1968) na Casa de América, em Madri, onde, depois de tirar a jaqueta o jornalista descobre que usava uma camisa preta com uma gola branca, como se fosse um colarinho clerical. O homem que tirou a filosofia da sala de aula e provocou um boom filosófico na Argentina fala sobre seu best-seller, Filosofía en Once Frases, no qual, de Sócrates a Marx, propõe através de uma trama romanesca uma viagem (“ou uma desconstrução”) pela história da filosofia.
(...)

Jorge Morla, El País, Madri, 12;05;2019, 21:57 hs

domingo, 12 de maio de 2019

BEEG GEES - Too Much Heaven (1979)

UMA REALIDADE INCÔMODA

Já que você e eu estamos agora mesmo neste jornal, cabe supor que concordaremos em algumas apreciações. O cara é um tosco insuportável, um ególatra desenfreado, um mentiroso patológico. Até aqui, estamos de acordo, não? Ignora a mudança climática e até se alegra com o derretimento da calota polar, despreza os imigrantes, odeia a imprensa que o critica, pratica um nepotismo ridículo e confunde seus interesses pessoais com os do país. Continuamos em sintonia? Diria que sim.
Ressaltemos que esse homem pode provocar uma catástrofe a qualquer momento e que não sabemos como acabará sua queda de braço comercial com a China. Dito isso, vamos encarar a outra parte da realidade. Sob a presidência de Donald Trump, os Estados Unidos recuperaram uma prosperidade típica dos felizes anos sessenta. Quase não há desemprego, a economia cresceu mais de 3% no primeiro trimestre, a inflação segue baixa, os salários aumentaram e o declínio industrial foi contido.
Sim, claro, você dirá. Mas isso está sendo conseguido com um monstruoso endividamento público e um alarmante déficit orçamentário. É fato.
(...)

Enric González, El País,11/05/2019, 16:00 hs
ESTUDO CLÍNICO DAS PSICOSES - III

As psicoses são reconhecíveis pelo delírio. Mas, atenção: o delírio nas psicoses se constitui como sentido. Desse modo, ultrapassa a dimensão do sintoma (elemento da semiologia médica) em direção a uma produtividade subjetiva incompatível com o meio social e com a percepção moral. Tanto é verdade que os quadros ditos negativistas (quando o paciente não fala, não responde, não obedece...) respondem mal ao uso de psicofármacos ou simplesmente não respondem (não melhoram). Sinal de que há algo mais que o sintoma. A psiquiatria biológica chama isso de sintoma negativo. Quem trabalha numa equipe de saúde mental sabe como é difícil se aproximar de um "sintoma negativo". O essencial a reter é o fato de que o delírio não necessita ser dito verbalmente, já que ele pode ser dito não verbalmente, como o jeito de olhar, de andar, de rir, por exemplo. As psicoses, conforme uma psiquiatria da diferença ou de uma diferença na psiquiatria, produzem uma semiótica desconcertante (regime de signos) que só será acessada mediante o uso de recursos técnicos fora da psiquiatria. Isso não invalida, ao contrário, o uso da medicação antipsicótica. Antes, estabelece a psicofarmacologia como um instrumento terapêutico cujo valor estará condicionado a uma postura ético-política de quem atende, de quem cuida. Infelizmente, há um muro na clínica das psicoses. É que o problema essencial, a má formação "congênita" da psiquiatria biológica é a sua adesão inconfessa a um positivismo cientificista raso e danoso para o paciente enquanto ser vivente capaz de autonomia existencial. Considerando-o objeto inerte e passivo (e perigoso) tal psiquiatria, claro, está instalada em seu próprio território de poder, e daí obtém resultados terapêuticos de abominável controle sobre as mentes, inclusive as dos próprios psiquiatras. E a sua que me lê agora.


A.M.


Obs.: texto publicado em 12/02/2019, revisado e republicado.

EMIL NOLDE


sábado, 11 de maio de 2019

onde anda a política
que muda?
onde  anda a muda
que floresce?


A.M.
QUANTO FALTA

Ao final, haverá um longo rastro de descuidos como animais esmagados. Começa pela comida. Um dia, quando ele voltar tarde do trabalho, vá dormir sem deixar o jantar pronto para ele, uma alteração no hábito de todos esses anos durante os quais, sempre que ele chegou tarde, você deixou comida feita. Nessa madrugada, quando ele se enfiar na cama, acorde e se lembre de como, até recentemente, quando isso acontecia você o abraçava como se tivesse fome ou sede. Agora lhe diga: “Vira de lado pra não roncar”. De manhã, na hora do café, pergunte a ele — tentando que na sua voz se note um incômodo inexplicável — o que ele jantou. Escute como ele responde sem rancor, genuinamente distraído: “Belisquei um troço no trabalho. Tava sem fome”. Sinta fúria e cansaço. Prepare café só para você, e não lhe ofereça. Uma semana depois, esqueça o dia do aniversário dele. Lembre-se no último momento e diga irritada para si mesma: “Tenho que comprar alguma coisa para ele”. Interrompa o que está fazendo. Vá ao shopping. Sinta, enquanto compra, que está perdendo tempo. Recorde a felicidade iridescente que lhe produzia, anos atrás, planejar o presente, escrever o cartão. Escolha algo, enfadada. Ao pagar, sinta que está desperdiçando seu dinheiro. Já em casa, escreva, em um papel usado: “Feliz aniversário!”. Deixe o presente sobre a mesa, de qualquer maneira. Pense: “Quando chegar vai vê-lo, não vai ser uma surpresa”. Pense: “E daí?”. Um dia, perceba que ele já não tem xampu, nem creme de barbear, nem o queijo de que gosta. Quando for ao supermercado, não compre nada disso. Pense: “Ele que compre”. Uma tarde ele dirá: “Estou com dor no pescoço”. Não se disponha, como sempre, a lhe fazer uma massagem. Diga-lhe: “Tomou ibuprofeno?”. Perceba que já faz meses que ele não a chama –“Amor, cheguei!” – ao entrar na casa. Pense: “Melhor”. Pergunte-se quanto falta.

Lelila Guerriero, El País,10/05, 21:56 hs

sexta-feira, 10 de maio de 2019

SOBRE A DIFERENÇA

Pergunta-se o que é a diferença.  A diferença não é o indivíduo, não é a pessoa, não é algo fixo e estável onde se possa ancorar o corpo e a alma exaustos. Nem tampouco ver, assuntar, medir, pesar, adjetivar, qualificar. Ela não é do campo do substantivo nem do adjetivo, nada tem a ver com alguma substância dura, pétrea, imóvel, formatada em ideais de valor de troca. Nada a ver com a troca, pilar e essência do capital em seu cortejo mortuário. Ela não é o ser-diferente, até porque não há o ser. Não é o estranho-em-nós. Já somos de antemão  e suficientemente estranhos, estranhos a nós e ao mundo. Não há cálculos para identificá-la. Quando há, dão sempre errado, as contas não fecham, tudo se frustra e se decompõe. Ao inverso e bem mais além aqui mesmo, há somente corpos, corpos de corpos, corpos no interior de corpos, devires, processos, passagens, relãmpagos, vertigens, intensidades, frêmitos, respirações, ardores, ardências, viagens anômalas no mesmo lugar. Da diferença não se alimenta o narcisismo porque também não existe o narcisismo num universo terráqueo, o dela, este sim, verso encantado, encantador e cantador em estradas desertas. A diferença é o bicho. Não tem forma, não é identificável pela percepção de representações exatas ou imagens-clichês. A diferença é o bicho na espreita. Percorre o mundo em linhas finas de sensibilidade. Com delicadeza foge de todos os dualismos, de todos os títulos, de todos os senhores, de todas as pátrias, de todas as pretensões e boas intenções da racionalidade, da consciência e do pensamento da autoridade, mesmo a mais admirável e mansa. Brinca com o poder, com a morte e com o amor. Faz disso a própria natureza do seu percurso invisível e silencioso pelos caminhos desconhecidos do encontro. Composta de multiplicidades ingênuas e  encravada na irreversibilidade do tempo, se tece e se faz inglória e pura. Mas quem a suporta?

A.M.