INVENTAR O CAPS
Enfocando o grupo técnico em saúde mental, teríamos: 1-Trata-se de fato de um grupo? 2- A que interesses atende? 3-Que concepções sobre a loucura norteiam o trabalho clínico? 4-Como se dá a comunicação entre os segmentos técnico-profissionais em relação ao paciente? 5-Qual o lugar da ética e da política nas ações práticas? 6-Quais os índices da medicalização consentida que ainda assola a equipe? Tentemos processar, em linhas gerais, cada um dos itens, usando uma hipótese de base: apesar da reforma psiquiátrica, a psiquiatria é um modo de subjetivação que ainda domina e controla os que lidam com o paciente. Existe, pois, o grupo técnico trabalhando sob uma espécie de transcendência psiquiátrica. "Tomou a benção aos médicos?" Esse dado tem origens complexas (que fogem ao objetivo desse artigo) e se expressa no lugar de poder da medicina. Contudo, desde que a psiquiatria oferece um arsenal de medicamentos contra os ditos transtornos mentais, o despotismo psiquiátrico é tolerado e por vezes louvado. Remédio não é um mal em si. O bom ou mau uso é quem decidirá. A questão é que esse "uso" surge como primeiro na avaliação psicopatológica, se é que ainda existe psicopatologia nas hostes mentais. Questão de poder: a verdade da psiquiatria passa a ser a verdade do paciente. Inversão da propedêutica médica. Medicar e depois diagnosticar, se possível. Assim, o transtorno mental surge na e da psiquiatria como seu objeto aparentemente legítimo. Cabe aos demais técnicos acompanhar o carro-chefe. Ou nada. Esse fato compromete o trabalho de grupo como um trabalho coletivo. Mas, afinal, de que objeto se trata? Transtorno mental já não seria alguma coisa fabricada pela própria psiquiatria?Transtorno mental é um conceito nominal. Não esclarece nada, não explica nada. Ele é que tem que ser explicado. Ora, se esse é o objeto da psiquiatria, não pode ser objeto da psicologia, da farmácia, da enfermagem ou de outros saberes. Então, partir da psiquiatria como proprietária do paciente é admitir que tudo, em termos de equipe e tratamento, gira em torno do significante hegemônico “psiquiatria” como centro de significação clínico-institucional. E por extensão, o seu objeto, o paciente. Parece que estamos girando num círculo de redundâncias. Como então constituir um grupo se um sujeito (a psiquiatria) instituiu há muito o seu objeto (o paciente) ? Ora, a grupalidade só pode ser obtida se houver uma des-hierarquização das relações intra-grupais. Um mesmo plano de trabalho e de afetos. Fora disso atolamos na burocracia técnico-administrativa. Então, esta é a primeira condição para um grupo de trabalho em saúde mental. Todos são iguais em suas diferenças. Em segundo lugar, a que interesses atende o grupo? Pode ser o interesse do Estado-patrão, sempre de olho na mídia e em possíveis desvios da normalidade jurídica e policial. Ou o interesse da sociedade como um todo e o seu famigerado bom senso para saber como andam, como se comportam ("estão quietinhos?") seus loucos. Ao contrário, acreditamos que o grupo deve atender aos interesses da loucura. Entendemos esta como uma linha existencial libertária e avessa aos domínios e interesses do Estado, do Mercado, da Escola, do Direito, da Família e instituições conexas. A loucura, na verdade, não tem e não vive de interesses. Ela vive do desejo agenciado em praticas de mundo, é o puro desejo agenciado, contaminando produções subjetivas ao acaso dos encontros. Tal definição vive e se nutre no campo do impessoal. Portanto, não falamos do louco, mas da loucura que poderá se encarnar, aí sim, num suposto louco. Em terceiro lugar, o desejo está em toda a parte onde se trabalha com o louco. Ressoa a questão: que linhas o desejo percorre e escorre, ou, ao contrário, estagna, trava, impregna quando o louco se diz (ou dizem) que ele é louco? Por fim, em quarto lugar, a análise de um grupo técnico incide sobre práticas que o desejo impulsiona. É que a equipe técnica compõe-se de linhas do desejo e práticas coextensivas. Ela demanda uma autoanálise político-institucional incesssante das suas operações cotidianas. Para isso ser possível, usamos um método que traça a cartografia das produções desejantes num meio (ou conjugação) de determinações coletivas múltiplas. O meio é o método.Trata-se da subjetividade como modo de produção contextualizada. Devires, o conteúdo do desejo, processos de criação. Deste modo, evitar que o Caps reproduza o modelo biomédico, matriz da violência cientificamente autorizada e dos horrores registrados na história da psiquiatria, será possível?
A.M.
Obs.; publicado em 09/09/2017, revisto e republicado.