QUANTO FALTA
Ao final, haverá um longo rastro de descuidos como animais esmagados. Começa pela comida. Um dia, quando ele voltar tarde do trabalho, vá dormir sem deixar o jantar pronto para ele, uma alteração no hábito de todos esses anos durante os quais, sempre que ele chegou tarde, você deixou comida feita. Nessa madrugada, quando ele se enfiar na cama, acorde e se lembre de como, até recentemente, quando isso acontecia você o abraçava como se tivesse fome ou sede. Agora lhe diga: “Vira de lado pra não roncar”. De manhã, na hora do café, pergunte a ele — tentando que na sua voz se note um incômodo inexplicável — o que ele jantou. Escute como ele responde sem rancor, genuinamente distraído: “Belisquei um troço no trabalho. Tava sem fome”. Sinta fúria e cansaço. Prepare café só para você, e não lhe ofereça. Uma semana depois, esqueça o dia do aniversário dele. Lembre-se no último momento e diga irritada para si mesma: “Tenho que comprar alguma coisa para ele”. Interrompa o que está fazendo. Vá ao shopping. Sinta, enquanto compra, que está perdendo tempo. Recorde a felicidade iridescente que lhe produzia, anos atrás, planejar o presente, escrever o cartão. Escolha algo, enfadada. Ao pagar, sinta que está desperdiçando seu dinheiro. Já em casa, escreva, em um papel usado: “Feliz aniversário!”. Deixe o presente sobre a mesa, de qualquer maneira. Pense: “Quando chegar vai vê-lo, não vai ser uma surpresa”. Pense: “E daí?”. Um dia, perceba que ele já não tem xampu, nem creme de barbear, nem o queijo de que gosta. Quando for ao supermercado, não compre nada disso. Pense: “Ele que compre”. Uma tarde ele dirá: “Estou com dor no pescoço”. Não se disponha, como sempre, a lhe fazer uma massagem. Diga-lhe: “Tomou ibuprofeno?”. Perceba que já faz meses que ele não a chama –“Amor, cheguei!” – ao entrar na casa. Pense: “Melhor”. Pergunte-se quanto falta.
Lelila Guerriero, El País,10/05, 21:56 hs
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