sexta-feira, 7 de agosto de 2020

SOLIDÃO POVOADA 

O psiquiatra viaja em mundos  distantes. Arrisca saltos no abismo em patologias vistas de bem perto. Depois mete-se no tempo das noites loucas do Santa Mônica. Tão longe estão que se apresentam intactas e livres. Hoje há um tempo a fazer, a se fazer. O psiquiatra lembra  que  não é para  lembrar, não é bom  lembrar e diz  que não há mais  tempo para não se tornar. Ele  flui e se esgueira sob as franjas da violência cotidiana. As palavras lhe soam bobas. Situações  pesadas são ocas de sentido. Fazer o que? O psiquiatra se desloca pelos campos verdes do pensamento, aspira blocos de manhãs. Elas insistem em nascer. Ele passeia entre vultos certamente desconhecidos, embora  com eles  privasse da  intimidade dos  deuses da loucura e da arte. Beira a idade dos sem tempo para mais nada que não seja o tempo cortante, sangrando a carne do espírito. Sai o almoço? Que  importa? O dia avança sem motivo, sem sentido, no rumo  da  curva dos olhos  da menina que sorri de dentro da mania. Sem alegria e sem charme. Chame o doutor. Não há  doutor. Um cara chega sem rosto e aquieta a enfermaria  lotada na noite  dos fogos  de artifício. Tudo vai, tudo volta. O círculo das águas,  o riso dos pacientes, o nó que  não desata, a catatonia do sem voz. A hora é intensa e quente. Ele andou pelos pátios  escuros e desérticos da madrugada de domingo no Santa. A ordem andava em plena desordem. Estaria de saída? Quem viria? O psiquiatra faz de suas próprias veias uma paixão inegociável. Tantos anos depois, tantos séculos se passaram, que quatro  criaturas levam-no à  procura de Kadath antes que chegue a primeira aurora da  eternidade do desejo. Das  quatro uma está tocada pelo rumores das novas vidas e sonhos diurnos nas  dobras  do mundo. A outra já salta e solta  entre continentes o grito dos corpos que se levantam para dizer que vivem apenas a alegria. Uma outra tem a percepção fina do que acontece e quer saber  onde está  a  resposta, mesmo sabendo que  não  há. Por  fim, a última, mas  não menos ligada, não menos bela, não menos apaixonante, espalha humor e espontaneidade na superfície da escrita, tornando-a doce e profunda. O psiquiatra, leitor do mundo e de si mesmo, revira-se na cadeira e não consegue esconder o reflexo nos seus olhos miúdos do universo olhando para  ele.  


A.M.

Nenhum comentário:

Postar um comentário