segunda-feira, 29 de novembro de 2021

OUTROS ENCONTROS

O organismo físico-químico, visível, palpável e mensurável, é o objeto da medicina, onde ela de fato intervêm, e, caso obtenha êxito terapêutico (principalmente por isso), retira mais-valia de poder. No entanto, junto a esse organismo e fora da relação linear causa-efeito, funciona o corpo das intensidades livres. Não é visível, não é palpável, não é mensurável, nem segue os mapas fisiopatológicos vistos em exames por imagem. Distinto da Consciência, a qual sempre obedece ordens, ele, ao contrário, não obedece, é rebelde e alterna com o organismo fluxos atuais e/ou antigos de afetos nômades. São estes que impulsionam a vida, que são a vida : potência sem forma. Em face desse estado (real) das coisas, tal corpo traz grandes dificuldades à pesquisa. Como acessar algo que não se vê, não se toca nem se mede? Na clinica psicopatológica é possível constatar: há um "corpo que não aguenta mais" e que se expressa em sintomas álgicos, como por exemplo em cefaléias crônicas, mas também na multiplicidade de sintomas que englobamos sob o nome de angústia. Aqui não se trata de usar a psicanálise como doutrina ou método de trabalho, mas de roubar deste saber a hipótese de um inconsciente para além da representação de papai-mamãe. Um inconsciente "órfão, ateu e anarquista", inconsciente-corpo. Apesar de estar sempre ao alcance da mão, não é fácil encontrá-lo.


A.M.

Covid: 4 perguntas ainda sem resposta sobre impacto da ômicron

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Mais do que em qualquer outra época, a humanidade está numa encruzilhada. Um caminho leva ao desespero absoluto. O outro, à total extinção. Vamos rezar para que tenhamos a sabedoria de saber escolher.


Woody Allen

domingo, 21 de novembro de 2021

A  LINHA DO  INFINITO

Há um limite a partir do qual a diferença não se reconhece e não mais reconhece o mundo. Um horror tão extremo e definitivo se instala: ela, a diferença, torna-se pequena e frágil. Tudo o indica. Fala-se da história da humanidade: uma brochada cósmica. A diferença não mais reconhece aí a palavra "vida" por entre escombros da própria vida. Resta o império do medo. Internético, ele assombra o dia que nasce. Assombra todas as revoluções. Nivela os afetos. Aniquila a política. Uma melancolia compõe a paisagem dos monstros da História. E os adorna. E os adora. Seguidores idiotizados nutrem-se da morte camuflada. Anunciam o fim, apocalipse moderno. No entanto, algo resiste... a diferença...

A.M.

GRANDEZA DE MARX


 

Salmo Perdido


Creio num deus moderno,

Um deus sem piedade,

Um deus moderno, deus de guerra e não de paz.


Deus dos que matam, não dos que morrem,

Dos vitoriosos, não dos vencidos.

Deus da glória profana e dos falsos profetas.


O mundo não é mais a paisagem antiga,

A paisagem sagrada.


Cidades vertiginosas, edifícios a pique,

Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais.

Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais,

As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,

Deus não nos reconhece mais.


Dante Milano

Furtivo


Passeando num jardim inexistente

Encontrarás uma mulher ausente ...


Segue-a. Fala-lhe. Espera que ela te olhe,

Beija-lhe a mão antes que se desfolhe,


Depois, no ouvido, dize-lhe o que sentes,

Expressa-lhe, em palavras balbuciantes,


Com voz arfante e comoção sincera

A paixão que te faz tremer os dentes ...


Dante Milano


sábado, 20 de novembro de 2021

Rehearsal Vanishing Twin - Jiří Kylián (NDT 1 | Sometimes, I wonder)


Revista Mal Estar e Subjetividade



 


Que política é possível com o pensamento deleuziano?


 


What politic it is possible with deleuzian thought?


 


 


Daniel Dutra TrindadeI; Tania Mara Galli FonsecaII


IMestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). End.: Av. Venâncio Aires, 101, apt. 405. Cidade baixa. Porto alegre, RS. CEP: 90040-191 E-mail: ddtpsi@yahoo.com.br

IIProfessora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Social e de Informática Educativa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). End.: R. Campos Salles, 262, Boa Vista. Porto Alegre, RS. CEP: 90480-030. E-mail: tfonseca@via-rs.net

RESUMO


Este trabalho pretende discutir a possibilidade de uma política na esteira do pensamento de Gilles Deleuze, levando em consideração a tensão existente entre as concepções de macro e micropolítica e a sua relevância diante de uma filosofia que preza, em última instância, pela diferença pura, o puro devir. O trabalho não pretende descrever o que é a política segundo Deleuze, mas como uma política pode servir de matéria para crítica e para o pensamento segundo o movimento filosófico de suas idéias. O que resulta desse trabalho não é um dado, mas uma interpretação que intenta ser justa com uma filosofia que em todo o seu corpus adensa a crítica do sujeito moderno, identitário e substancial. Essa justiça levada a cabo implica duas conseqüências: arrefece as pretensões humanistas e voluntaristas cujo fundamento está num sujeito capaz de, através da tomada de consciência de suas circunstâncias, mudar os rumos da história e da sociedade - um sujeito compreendido como causa de sua própria humanidade; e liberta o devir, como ser livre, de suas amarras humanas, demasiado humanas, mostrando que existe vida além do homem como medida de todas as coisas. Essas duas conseqüências certamente trazem o desconforto de não mais sentir as rédeas da vida nas mãos, ainda mais se tratando de um tempo histórico onde a miséria humana é chocante. Deleuze, no entanto, não conforta; ele impõe desafios e instiga a criação de sentidos esgotando o possível até brilhar uma vida...


Palavras-chave: macropolítica, micropolítica, sujeito, estética, devir.


ABSTRACT


This work has the/ pretention to discuss the possibility of a politic in the wake of the thought of Gilles Deleuze, taking into account the tension between the concepts of macro and micropolitic and its relevance to a philosophy that values in last instance the pure difference, the pure becoming. This work is not intented to describe what is politics according to Deleuze, but how a politics can serve as a subject to critique and to tought in the philosophical moviment of his ideas. What results of this work is not a fact, but an interpretation that intents to be fair with a philosophy wich, in all of its corpus, makes the critique of the modern subject, subject conceived in identity and substance, denser. This fairness carried out implies two consequences: it cools the humanist and voluntarist pretensions, whose foundation is in a subject capable of, through taking awareness of his circumstances, change the direction of history and society - a subject understood as cause of his own humanity; and frees the devir, as a free being, of its human tethers, all too human, showing that there is life beyond man as a measure of all things. This two consequences certainly bring the discomfort of no longer feeling the life's reins in our own hands, specially considering our historical time where the human misery is shocking. Deleuze, however, does not comfort; he imposes challenges and provokes creation of senses, exhausting the possible until a life shines...


Keywords: macropolitic, micropolitic, subject, esthetic, becoming.


 


 


Introdução


O pensamento, desde muito tempo, vem sendo convocado pelo desespero de nossos dias, mas ele mesmo não pode desesperar. A urgência não pode ser razão do pensamento, sob pena de torná-lo imediatista. Isto não é uma proposição, esta é uma posição, uma perspectiva. E também é uma angústia a ser vivida. Se trouxermos a máxima cartesiana - penso, logo existo - para o âmbito mundano, e para muito aquém de suas reivindicações filosóficas, nos deparamos com uma contradição: pensar não é existir na imediatez dos instantes? Sim, todo esse jogo de palavras é retórico, abusamos da generalização dos termos pensar e ser ou estar no mundo. Mas esse jogo é útil para apresentar ou introduzir a percepção de uma tensão entre o pensamento (filosófico) e a ordem das coisas humanas dispostas sobre o "nosso mundo". Essa tensão é, por sua vez, acolhida no seio do que entendemos por território da política - aquele que se pretende a condição do encontro entre pensamento e um modo de ser no mundo. No entanto, este território está mais para o pensamento que para os modos de ser, pois é o pensamento que o reivindica a cada vez para insistir que é em si mesmo de natureza política, ou seja, a cada acontecimento seu ele está imediatamente ligado aos modos de ser e à práxis mundana. É assim que o pensamento quer para si que esse laço com o universo das coisas humanas o faça político. E é, talvez, das idéias a mais tacanha. A própria filosofia se responsabilizou pelos males do século XX (notadamente o regime nazista), e a partir de então, impõe a si mesmo um pathos político para afastar-se de uma vez por todas de sua alienação e consequente condescendência velada diante do mal. O pensamento, então, sucumbe à história, é politizado, condenado desde então a prestar contas ao que aí está. Abriu-se, diante da filosofia, duas alternativas apenas: ou ela está contra ou ela está a favor de um atual estado de coisas. O pensamento se transforma, assim, em diagnóstico, prescrição e prognóstico. Daí é certo que muitos devam lamentar a morte da filosofia, justamente porque não deixaram restar outra alternativa que a de se igualar a uma ciência, um tipo de conhecimento onde o primado é o do referente; neste caso, a filosofia estaria amarrada ao referente "nosso mundo", aquele consagrado pela história universal. E como esse "nosso mundo" espelha a precariedade e a miséria da humanidade, portanto, caberia à filosofia corrigir essa imagem, donde sua condição política de existência. Entretanto, vejamos.


A política foi, por muito tempo, o âmbito do "governo", onde as ações dos governantes assumiam um valor diante da sua incidência sobre as vidas alheias. Entretanto, nossa experiência modernista da política nos fez acreditar que o seu âmbito é aquele das atitudes e ações não mais relativas ao governo, apesar de estas também serem consideradas como políticas, mas relativas aos governados; a ação política se tornou uma questão relativa muito mais ao mau governo que ao bom governo. Da gama de reflexões sobre política que encontramos hoje em dia, pouquíssimas ou nenhuma explora a pertinência e a possibilidade do melhor governo, qual filosofia se atreveria a isso?, no entanto, encontra-se um número enorme de reflexões sobre qual governo não queremos mais, sobre as mazelas, o descrédito e o esgotamento de tal ou qual sistema político. A política se tornou, para nós, primordialmente, um dizer não ao governo; todavia, para não definhar numa atitude puramente negativa, imputa-se à política uma atitude afirmativa ao considerar cada novidade referente às práticas e discursos cotidianos como uma substância política. Dessa forma, toda ação humana se torna política, pois se ela desvia do sistema de governo ela é política por ser desviante, caso contrário ela também é política, posto que ela confirma o sistema. Assim, no círculo moderno da política uma tangente se torna impossível. E este círculo é, obviamente, o círculo do humanismo, o homem como centro da Terra e esta sob o reinado daquele; o homem tido como o grande transformador do universo, e não é este o sentido que toca o coração da política? - o homem sabendo como deve governar todas as coisas, porém, se este governo vai mal, cabe ao homem aprumar os rumos. Este "homem" tem outros nomes também: "sujeito", "ego", "consciência". De qualquer maneira, foram todos estes "nomes" os responsáveis, segundo os críticos da modernidade, pela progressiva decadência da civilização moderna. Não por que eles fossem as causas, mas porque eles estiveram no centro de toda essa "construção histórica". O "para-além-do-homem" se tornou praticamente uma exigência para a filosofia em nome da superação das grades de ferro do subjetivismo, nisso estão juntos alemães e franceses, não obstante a diversidade de suas construções filosóficas. O espectro dessas empresas críticas é muito vasto, as nuanças são várias, e as perspectivas estão, em muitas delas, em lados diametralmente opostos: derrubam-se os privilégios da "consciência" aqui, restaura-se este privilégio pela conversação lá; a crítica corrói a identidade e a interioridade do sujeito, mas a "liberdade do indivíduo" se mantém aqui e acolá. Poderíamos ainda dizer que parte da crítica filosófica tem como inimigo a pretensão humanista de universalidade, o imperialismo de um tipo-humano, por certo o homem de razão ocidental. Então, se abandonamos os universais podemos retomar o leme da vida num pequeno universo "particular" sem maiores pretensões. E se advém um abuso de poder no interior desse pequeno universo, certamente ele merecerá uma reviravolta "política", leia-se, as "individualidades livres" podendo transformar a situação. Finalmente, quando o controle vence qualquer "liberdade individual", a própria vida como fenômeno genérico se rebela, e a vida, essa potência subversiva e incontrolável por natureza, triunfa. O indivíduo, ao se identificar com o próprio fenômeno vida, colhe para si os louros dessa vitória; ele crê piamente que a liberdade da própria vida é a sua liberdade, e, portanto, a própria vida se torna um fenômeno essencialmente político - eis que surge uma biopolítica. O indivíduo, agora cúmplice da vida, certamente não usufrui de uma identidade, nem de uma interioridade fechada, nem mesmo de uma "individualidade", posto que a vida devém a todo instante uma outra natureza. A vida roubou a cena, mas não podemos ver quem dirige esta peça? Não pretendemos, nós, críticos da modernidade, dar voz aos "loucos", aos "criminosos", e a toda sorte de excluídos do monólogo da razão? Então, por que não ouvir a própria vida? Por acaso ela não diz "não queiram vocês serem o que eu sou, pois vocês já são e apenas eu posso querer, deixem de ser orgulhosos até no seu último instante"?


 


Deleuze: re-introdução do problema


São estes ouvidos delicados que Gilles Deleuze (1925-1995) parece ter criado para si, é essa delicadeza filosófica que viemos brindar da maneira como nos é possível. Não podemos falar por ele, somente tentar ouvi-lo. Nossa intenção é fazer somente um percurso a mais pelas sendas do pensamento de Deleuze pois, antes de mais nada, não queremos ser definitivos nem conclusivos, quereríamos mais ser incisivos. Visar uma última palavra não condiz aos nossos objetivos, nem por uma veleidade autoritária qualquer, nem por algum critério hermenêutico: a melhor interpretação. A propósito, a melhor interpretação não existe, no sentido de uma precisão indefectível. Ela pode ser, no mais, o esvaziamento dos sentidos dados, o rompimento do consenso; e nem mesmo as idéias de Deleuze escaparam dos círculos consensuais, ao menos dois deles, o dos que o leram desde sempre reativamente, e o de todos aqueles que acreditam ter herdado o seu próprio pensar. Ambos os círculos representam o desleixo para com uma filosofia em "tempos difíceis", não vêem a riqueza das nuanças, as sutilezas da retórica e as estratégias significantes, daí o consenso que banaliza ou tiraniza um filósofo - confunde-se um "romance policial" com um "caderno diário de notícias" e quer-se tratar das ordens do dia, a condenação ou a panacéia, a alternativa basta.


No próprio seio de sentidos deleuzianos, queremos não mais que apontar para uma linha de atualização dentre toda a gama de virtuais que compõem sua filosofia, uma filosofia da e para a Diferença. Essa linha de atualização, ou matéria-fluxo, é a de uma política ainda indefinida em seus significados porque o seu próprio sentido é um foco problemático; isso quer dizer: a questão "que política é possível a partir do pensamento deleuziano?" ainda está carente de resposta; essa tensão problemática deve ser mantida num primeiro momento. Manutenção que já é um índice de uma esquiva a respostas prontas e de um desejo de imprevisto; não pretendemos ser cômodos nem incômodos com esse jogo, queremos apenas desviar os olhares e a espera do óbvio. Retomemos, agora, o teor das questões que até o momento nos entretinha.


Em que sentido pensamos em uma política, comumente? No mínimo em dois, ação e organização, dois termos que carregam consigo, ainda mais em se tratando de política, uma conotação bastante voluntarista. Eis aqui um ponto problemático, mas o deixaremos em suspenso por ora. A estes dois termos aditam-se mais questões: se tratamos de ação, quem age?; se tratamos de organização, quem organiza?; se agimos ou organizamos, para quê?! Esses movimentos interrogativos pelos quais nos encontramos agora rodeados seriam facilmente sossegados se recorrêssemos à figura do Sujeito (figura, porque ela é intrinsecamente representativa). Porém, o Sujeito como unidade representativa é um alvo tão significativo para a filosofia da Diferença quanto fácil de acertá-lo e dissipá-lo; o Sujeito da representação não se mantém, sua fragilidade e imperfeição constituintes o subjugam e o ultrapassam, sem finalidade e sem sentido, sempre. A tríade que pretende definir o Sujeito (substância, representação, identidade) é paulatinamente diluída pela acidez do pensamento deleuziano ao longo de toda a sua vida filosófica. O Sujeito que representa e é representado não passa de um artifício, um artifício ruim. Mesmo a partir dessa desconstrução do "sujeito da representação" ainda nos restaria um "sujeito da ação", que poderia, de direito, abdicar, dos derivados da representação, o representante e o representado, e levar a cabo um "ativismo político", sob o qual a representação é sepultada, mas sobre o qual o sujeito permaneceria inteiro1. Nesse outro ponto a que chegamos, impõe-se outra questão: as ações de um sujeito definem-se desde o princípio como ações políticas? Parece óbvia que a resposta seja negativa, então, qual seria o elemento que nos permitiria definir as ações politicamente? Esse elemento parece ser a finalidade, com a condição de que essa finalidade intervenha num campo social; é o elemento da finalidade que define se uma ação é política ou não. Notemos, nesse entretempo, que ainda estamos tratando de uma política que não escapa do sujeito como referência (como um pólo lógico ou empírico). Qual seria, em última instância, a finalidade mais pertinente da atualidade quando colocados em relação o sujeito e a política, de um ponto de vista geral, evitando a abstração, senão a reivindicação de direitos individuais? (Poderíamos pensar em direitos de uma coletividade, mas quaisquer destes direitos só se efetivam se distribuídos individualmente). Com essa questão, nosso traçado crítico se configura da seguinte maneira: um encerramento da política entre os pólos do sujeito e da finalidade, que remonta ao sujeito, na forma de indivíduo. Essa é uma visão demasiado humana da política, nós sabemos; entretanto, haveria um outro sentido para a política que não este do interior de um confinamento subjetivo e teleológico? Essa questão nos leva certamente a um limite do significante político e são essas linhas limítrofes da política que pretendemos tornar mais claras.


 


A micropolítica: alguma impertinência


"Em suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica" (Deleuze, G., Guattari, F., 1996, p. 83).


Conceitualmente, essa proposição é um tanto precária, porque se tudo é político, logo, a política é tudo, e definir alguma coisa dessa maneira é absolutamente não defini-la, seria uma simples generalização, abstrata demais. A oração adversativa que segue essa definição é mais pertinente, todavia, ela inicia um campo polêmico que é o de uma micro-política, sendo que a polêmica estaria menos numa micrologia dos acontecimentos que no significante que lhe serve de companhia e de valor, a politização dessa lógica dos acontecimentos. De nossa perspectiva, o significante não tem qualquer relevância fundamental, bem como uma colcha de retalhos onde os retalhos são os significados, o significante é nada mais que as formas, as cores e as posições dos retalhos; se mudarmos os retalhos, a colcha não é mais a mesma. Assim, o que importa é que os significados sempre destituam os significantes, e que não permaneça, sob a invenção de uma micro-política, a sombra significante da macro-política, demasiado humana e avessa ao seu próprio estatuto de invenção (o preconceito do homem como ser político natural), ou ainda, uma política guiada pela fé de carvoeiro na liberdade da vontade do sujeito. No entanto, nos parece que em espaços e tempos dispersos (ou seja, ora aqui, ora acolá), é o próprio significante política que insiste em resistir à insurreição dos seus novos significados quando concernidos ao universo de um micro-logos, mantendo debaixo dessa sombra significante (ela é de fato uma sutileza) o bem-estar vicioso e viciante do círculo sujeito, finalidade, sujeito (indivíduo). Em suma, para que seja pensada uma micropolítica da imanência é preciso eliminar qualquer preeminência transcendente de um Sujeito, é preciso realçar a pureza da ação micropolítica (a-subjetiva). Essa precisão conceitual, que por si mesmo é crítica, nos permitiria escapar de um mal-entendimento das coisas desumanas que compoem esse nosso mundo e não tomar por micropolítico aquilo que é macropolítico. Não se trata de instaurar uma falsa polêmica, mas de desiludir os voluntaristas e reativos (para não dizer niilistas) de plantão que nos capturam como outros tantos "eus" que nos compõem, exatamente como Deleuze e Guattari alertavam para o microfascismo que se refugia em cada um de nós. Assim como o Bergsonismo a respeito do corpo, da matéria e da memória, podemos dizer que politicamente somos um misto mal analisado (Deleuze, 1999). Uma tarefa para a filosofia é justamente purificar essa mistura de naturezas distintas, a micro e a macropolítica, e privilegiar a parte boa, direita (qualquer alusão é uma falsa ironia). Esse percurso pode nos levar a um desenlace bastante radical, cujo signo poderia estar numa pergunta como esta: existiria uma política da Vida, dos Acontecimentos, da Diferença?


 


Sem sujeito e sem finalidade: ainda uma política?


Voltemos aos acontecimentos de maio de 68, já que é um exemplo conhecido de acontecimento micro-político, aos olhos de Deleuze e Guattari. Naquele tempo, o que houve de mais significativo certamente não fora a reivindicação de sujeitos pelo poder nem por garantia de direitos (nos referimos aos direitos formalizados), mas agenciamentos coletivos de enunciação e agenciamentos maquínicos de desejo que se expressaram na vontade e na prática de conviverem de uma outra maneira, à imagem e semelhança de uma liberdade. Antes de qualquer pensamento, ação ou reflexão, era preciso que a sensibilidade fosse outra, e parece ter sido exatamente o que acontecera naquela ocasião e que, até hoje, nos inspira tanto: milhares de pessoas, cujos rumores desabafavam obstinados: - não queremos mais viver do mesmo modo, não queremos mais qualquer poder e sim o quanto for de prazer em vivermos juntos. Esse clamor é certamente um fluxo revolucionário (é possível uma revolução despolitizada!), mas qualquer atribuição de subjetividade ou finalidade a esse fluxo é mera ilusão de molaridade (curioso anagrama de moralidade). O sujeito, unidade molar, só pode dizer sim ao próprio movimento ou essência das coisas (do Ser), matéria intensiva em diferenciação, atualização sensível das intensidades - nietzschianamente: o Homem dizendo sim à própria Vida. A afirmação pelo sujeito da própria diferença e multiplicidade vitais: essa é a ética que nos reclama, mas podemos nos perguntar, o que tem de política essa ação? Onde estão aí sujeitos da ação, cuja finalidade retorna aos indivíduos? Ainda, essa ação não pertence a uma micro-política (quando Deleuze e Guattari montam um esquema binário) ou ainda, essa ação não é uma linha de fuga, um fluxo ou quanta (quando Deleuze e Guattari montam um esquema ternário), ou melhor, ela é uma ação eminentemente micro-política na mesma medida em que ela abandona as coerções de uma subjetividade. A expressão "afirmação pelo sujeito" não significa "afirmação cuja causa é o sujeito", mas "afirmação que atravessa o sujeito". Dizermos, por exemplo, que é preciso que tracemos cada vez mais linhas de fuga em nossos diagramas sociais não passa de uma incorreção, senão de uma trapaça teórica.


Quiçá afoitos demais, chegamos num ponto crítico, qual seja, o de se questionar por que uma política que é de outra natureza é ainda designada política, a não ser sob o risco de conotar e aludir à macro-política, cuja marca de expressão mais forte é a de uma revolta da consciência em relação a um estado de coisas. Poderiam nos objetar que a vida é política em si mesma, que em seu seio se desenreda nada mais que um irredutível jogo de forças e dominação. Desse modo, a vida politizada se apóia na seguinte cadeia significante: forças-disputa-dominação. Aqui, dormita um grande mal-entendido, aquele que pretendemos desfazer, quem sabe entre tantos outros esforços, o de que aqueles signos não são políticos, são signos estéticos porque a vida é um fenômeno estético. O sentido (dominação) de um jogo de forças é nada mais que o desejo afetando-se, é uma questão de encontros, que somente por uma sobrecodificação (a finalidade para o Sujeito) pode adquirir um caráter político. (Não é por acaso que Espinosa escreveu uma Ética, e não uma Política).


"Os afectos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra" (Deleuze, G., Guattari, F., 1997, p.18). São esses os significantes que devemos corromper a cada novo trabalho, são armas de uma guerra que não é santa, nem quente, nem morna, nem fria, essa guerra é uma guerra imaginária, mas não é impotente. Caso não tomemos esse cuidado, corremos o risco de, a cada enunciado, ressuscitar o velho monstro que habita a língua: o estereótipo: o signo do poder (Barthes, R., 2007).


 


A máquina de guerra: para além da síntese suplementar


Os problemas se apresentam sempre desse jeito. Boa ou má, a política e seus julgamentos são sempre molares, mas é o molecular, com suas apreciações, que a "faz" (Deleuze, G., Guattari, F.,1996, p. 94).


Ao fim do Tratado de nomadologia, Deleuze retoma uma proposição que já havia sido colocada em Micropolítica e segmentaridade, a de que a máquina de guerra não tem por objeto a guerra. Por que então essa máquina é de guerra? Ela se transforma em máquina de guerra em duas circunstâncias, quando ela é capturada pelo aparelho de Estado, e quando ela reage aos movimentos de captura do aparelho de Estado. Num caso, sua natureza é destorcida ou manipulada, no outro, sua natureza é negativa. Deste modo, quando a guerra se torna o objeto da máquina essa síntese é apenas complementar, ela é fortuita. Ora, ainda nos resta a melhor parte que é a positividade de qualquer natureza, aquilo que a movimenta como causa sui, no caso da máquina de guerra, é a própria produção de um espaço liso e a distribuição de uma quantidade numérica sobre ele, cujo fim é o privilégio dos fluxos e das velocidades absolutas sobre este espaço: o nômade não quer deixar o deserto (ele não é imigrante), ele apenas povoa e amplia esse topos. Qualquer império é apenas um obstáculo para o nômade, não a sua condição. Aqui, já não vemos mais onde está a guerra, mas ainda sentimos a máquina, e mais, ousaríamos numa direção incisiva em dizer que a máquina que encontramos como pura forma de exterioridade é uma máquina de diversões (devir-infância?) como efeito de uma substituição potencializante da máquina de guerra. Diversão é a consistência daquilo que diverte, divertir é verter-se numa outra direção, a máquina de diversões corresponde à produção maquínica de clinamens, produção heterogênea de desvios. A máquina de diversões é uma máquina clínica ou analítica. O que nos interessa é mostrar que essa máquina é puramente ativa ou resignativa (não no sentido de passividade, mas no sentido de ação mínima), quem habita o espaço liso produzido por essa máquina está mais para Bartleby2 que para o Nômade, não há resistência direta: entre lutar e render-se o Nômade reage escolhendo lutar, entre lutar ou render-se Bartleby age minimamente dizendo "prefiro não".


Cremos que as relações entre máquina de guerra e aparelho de Estado são muito mais complexas hoje do que foram a milhares de anos3. A própria exterioridade geográfica é um ponto notável; outrora, era o alargamento territorial dos Nômades ou do Estado (primitivo) que tinha por conseqüência o enfrentamento de ambos; hoje, já não experimentamos este tipo de exterioridade. Máquinas se constroem dentro do Estado, e o próprio Estado já se degenerou em suas aparelhagens, é o Capital quem cerceia e controla a despeito das fronteiras. Aqui, podemos ver a encruzilhada medonha em que se encontram os resistentes ao Capital, os que aderem ao Estado (qualquer tipo de estriagem ou organização, mesmo as de formação estratégica) ou os que esquecem a política. O que tentamos mostrar até aqui é justamente o impasse que permeia essa encruzilhada, ou uma micro-política ainda supõe um Estado (micro), ou simplesmente ela não é política, queremos dizer, em ultima instância a micro-política deve deixar de rebelar contra e divergir, ou tergiversar, ou ainda criar qualquer tangente para além do ressentimento e da reação. Caso contrário, morreremos tristes no cerne de uma batalha infindável, a da revolta contra o status quo. A micro-política que Deleuze nos faz ver parece estar para além de toda revolta (ainda imantada num Estado), para além da consciência (a melhor arma do insurreto), no entanto, até que ponto nossos olhos deixam ver?


Em matéria de método intuitivo, ou a diferença é uma diferença de grau ou é uma diferença de natureza. Entrementes, o fato intrigante é o desprestígio da diferença de grau quando esta se torna consciente. Afinal, qual é o problema dos sujeitos em agir com vistas a um fim que remonte a individualidade? Qual é o problema em lutar pelos direitos individuais? Qual é o problema em lutar pelas minorias? Qual é o problema de lutar contra a injustiça, contra a miséria, contra o abuso de poder, contra a corrupção? Qual é o problema de lutar para além da Representação, para além da Universalidade, para além da Identidade? A existência de uma sociedade sem uma macro-política nos parece impossível, não porque ela é uma condição essencial da sociedade, mas porque nós, modernos, somos impotentes para abandoná-la. Podemos dispensar a boa vontade dos sistemas representativos, esgotados e corrompidos, em nome de um ativismo cada vez mais intenso, desde que não beire o fanatismo. A condição e a fórmula dessa política pode ser esta: podemos ir a todos os lugares e lutar por quem quer que seja: sem-terras, minorias raciais, gays, palestinos, o povo de Oaxaca, os índios da Amazônia, os monges de Mianmar etecetera e tal. Ainda assim, nossa primeira questão continuaria em pé, com uma pequena variação provocante: é essa a política possível no pensamento deleuziano? É possível sim, desde que desfeitos os mal-entendidos a respeito do que é macro e do que é micro-político, para não cairmos numa trapaça. Porém, já demos algumas pistas de que não é essa política que encontramos em Deleuze e que motiva esse texto, e até mesmo de que a potência revolucionária e subversiva da sua filosofia das multiplicidades, a despeito da estereotipia dos termos, não se expressa numa política, não importam as dimensões, mas numa estética da Diferença e das multiplicidades, cuja beleza se encontra num pensamento sem imagem e numa lógica dos acontecimentos (a-subjetiva, pré-individual). Sentir e pensar: é como inventar uma nova vida, é como viver num outro mundo.


 


Conclusão: para terminar num começo


Tornar-se um território propício ao desfile dos devires nos parece, sem dúvida, um fenômeno estético, e nos parece também que esse é um objetivo essencial da filosofia deleuziana, talvez o mais importante e notável; neste trabalho, esse objetivo é nossa linha mestra. É certo que esse objetivo, o de se tornar um território fértil, deva ser pensado como uma colocação subjetiva ou individual, talvez este seja o derradeiro ato político que aparece em Deleuze, não o ato, como se este fosse a apoteose de sua filosofia, mas uma discrição, um devir ou uma virtualidade. Sabemos que todas as partículas em velocidade, consideradas sob um desenvolvimento normal, em algum momento hão de precipitar, talvez esse seja um momento análogo àquele em que tantas possibilidades de um pensamento precipitam-se num uso dominante: a reivindicação do pensamento deleuziano pelos movimentos políticos, seja de um grupo ou de um pensador, parece corresponder exatamente ao momento precipitante. Entendemos as urgências sociais e planetárias, a calamidade que se exibe no abismo existente entre um miserável que se alimenta de papelão e um milionário que coleciona lipoaspirações; imaginamos o quanto um profissional da psicologia social não deve ter chegado até essa especialidade senão por um viés crítico e humanitário (esqueçamos qualquer sentido pejorativo desse adjetivo, pois sabemos muito bem o que sentimos diante da decrepitude humana, para o bem ou para o mal); compreendemos o sentimento de revolta que todo aquele que, por uma benção ou fatalidade, alguma vez nessa vida tomou consciência da condição e circunstâncias humanas. Como num momento delicado, no qual a gagueira precede a notícia, não sabemos muito bem por onde começarmos. Certamente não diríamos que o pensamento de Deleuze não serve à consciência insurreta, nem que essa não é o melhor acolhimento das suas idéias, mas estamos tentados a usar, pela primeira vez, um artigo definido e dizer que no (e não num dos) pico mais intenso da sua filosofia, onde ferve o afecto mais perturbador da sua arte, o presente desfere um golpe mortal no seu passado, o esquecimento consome o destino daquele que desfrutava de um rosto, o emprego, o próprio nome, a mágoa e a esperança, qualquer horizonte, a vida ordinária, tudo isso se esvai. Um brutal acontecimento. Não há restituição ulterior possível. Ele nos colocou nalgum instante na corredeira da vida. Não é possível nos tornarmos reformadores, o que nos cabe é transformar, transfigurar; não podemos mais criar um partido, mas podemos agregar amigos; não podemos mais convencer os mais fortes de sua fraqueza e tampouco os mais fracos de sua força, nos foi roubado o fundamento, o argumento, o julgamento, o ressentimento, a redenção. Desapegamos de nós mesmos e nos apaixonamos pelo que acontece, desperdiçamos nossa vontade e mergulhamos no desejo, nos matam a cada dia e no dia seguinte renascemos em todo lugar, nos tornamos a vida e a vida não morre. Eis a nossa beleza, eis a nossa alienação; ainda nos resta sentir, ainda nos resta pensar, ainda nos resta sonhar. Não temos nem habitamos alguma polis, nos falta o sujeito e a alteridade, nos falta a comunicação, somos ninguém fitando os olhos de outrem, fabulando a imagem de um mundo deserto, a espera do povo porvir... somos solidão... povoada. Morreremos sentados4, mas sorrindo!


 


Segunda conclusão: para não parecer que o começo é um fim


Nossa interpretação dos movimentos e idéias deleuzianas não quer acomodar os ânimos. Cremos ter deixado isso bem claro desde o início. O desconcerto que o filosofar deleuziano suscita e as possibilidades que ele prenuncia na maior parte das vezes assustam, outras vezes irritam, outras ainda comovem, e outras tantas consolam. Mas esse não é o sentimento daquele que escuta "não seja mais o mesmo, não queira mudar o mundo, e não diga que viver não vale a pena"? Vivemos desde há muito tempo sob o conforto das certezas, principalmente aquela que guarda o porquê das nossas vidas. Deleuze não foi apenas mais um a dizer "que razão queremos para viver, se já temos a melhor de todas em estarmos vivos"? Esse é, certamente, um pensamento dos mais singulares, dos mais profundos, e por que não dos mais horríveis. Não é esse o abismo que separa o pensamento filosófico das coisas demasiado humanas, e no qual as cruzadas políticas que intentam amarrar os nós de um lado e do outro são engolidas? Sabemos que a questão é delicada, e aprendemos a temer o tirano que pode estar por detrás de "pensamentos profundos e horríveis", mas não podemos descuidar, o consenso contra o "mal" também tiraniza. O ser humano sempre foi um pescador de ilusões até que um dia lhe disseram uma coisa dessas, "deus e o homem estão mortos", e tudo isso justamente para lhe devolver a inocência. Mas, desde então, vivemos num embaraço, numa espécie de delírio, por vezes muito desiludidos e cansados, por outras vivazes e desejantes. Deveríamos estar felizes, porque Nietzsche (1944-1900) jogou todas as fichas e ganhou; nós podemos ser, depois de tantas cargas e lutas, uma criança novamente. No entanto, bem como uma criança, estamos ou estupefatos ou distraídos demais para agradecer o presente que nos foi dado; não nos atiramos ainda à experiência dessa nova vida, que é a da reinvenção da brincadeira com as ilusões. A "verdade" de que não estamos no comando do barco da vida e de que o oceano é o grande senhor não impede que imaginemos nossas aventuras: temos ainda terras a serem descobertas, tesouros escondidos, inimigos para guerrear, amigos para conquistar e, acima de tudo, o contentamento de sentir o vento e a liberdade de horizontes sempre à espera. As "grandes verdades" destroem apenas as "grandes mentiras", mas não as grandes ilusões, estas são as maiores riquezas e brindes dessa nossa vida. Se existe um grande desafio ao nosso tempo, deve ser o de reinventar as ilusões sem a má companhia das mentiras, deve ser o de achar que realmente transformamos a realidade, que nossos fracassos e sucessos realmente existem, que somos torpes nalgum momento e sublimes num outro. Ser humano é poder iludir-se e o niilismo moderno é a diminuição dessa potência, cujo sintoma é a busca de uma certeza, ou seja, a maior das mentiras. Se a clareza nos foi permitida pelas armadilhas da linguagem é possível compreender que Deleuze foi mais um a nos presentear com "verdades" e não com certezas, e cabe a nós continuar a mais séria das brincadeiras - ser humano.


 


Notas


1. Ver Revisitando os intelectuais e o poder, Renato Janine Ribeiro em Gilles Deleuze: uma vida filosófica.


2. Personagem de Herman Melville em Bartleby, o escriturário: uma história de wall street.


3. Ver Post scriptum: sociedades de controle em Conversações, Gilles Deleuze.


4. "Morrer sentado" é uma alusão ao esgotamento beckettiano em L'èpuisé, Gilles Deleuze.


 


Referências


Alliez, E. (2000). Gilles Deleuze: Uma vida filosófica. Rio de Janeiro: Editora 34.        [ Links ]

Barthes, R. (2007). Aula. São Paulo: Cultrix        [ Links ]

Deleuze, G. (1992a). Conversações. Rio de Janeiro. Editora 34.        [ Links ]

Deleuze, G.(1992b). L'épuisé. In S. Beckett, Quad et autre pièces pour la télévision (pp. 55-112). Paris: Editions de Minuit.        [ Links ]

Deleuze, G. (1997). Crítica e clínica. Rio de Janeiro: Editora 34.        [ Links ]

Deleuze, G. (1999). Bergsonismo. Rio de Janeiro: Editora 34.        [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari. F. (1996). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia (5ª ed., Vol. 3). Rio de Janeiro: Editora 34.        [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari. F. (1997). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia (Vol. 5). Rio de Janeiro: Editora 34.        [ Links ]


terça-feira, 16 de novembro de 2021

O que é psiquiatria?  parte 3


Há na psiquiatria uma clínica a ser inventada. 

A clínica é o lugar de resistência à violência simbólica ou real, aos manicômios da alma e às emergências programadas.

Para isso o trabalho da psiquiatria tem um sentido a ser oferecido no encontro com a loucura de todos nós e os pacientes.  

Para os multi-sintomáticos,graves, gravíssimos, medicar com precisão exige método, arte e intuição. Muito difícil a jornada solitária.

O psiquiatra e os  mil afetos  no exame do paciente. Aí se constroe a ajuda. Ou nada.

Ser mais um técnico em saúde mental, buscar relações não hierarquizadas com os técnicos em saúde mental.

Usar o diagnóstico psiquiátrico como função terapêutica e não como estigma e controle moral.

Avaliar os sinais delicados da psicopatologia na inserção subjetiva da realidade social. A pergunta (ampla) seria: como você vive?

Sempre que possível, reagir às agressões farmacológicas antes sofridas. Tal atitude requer mudanças de prescrição e orientação técnica ao paciente, familiares ou terceiros.

Diante do paciente, evitar ocupar o lugar de juiz, policial, professor ou sacerdote, entre outros. Ser técnico já é muito.

Entrar no delírio (se for o caso) com o paciente, não no lugar dele. Não confirmar o delirio, mas aceitar o delirante.

Valorizar a psicoterapia, antes como atitude, arte e depois como técnica.

Valorizar a arte, antes como estilo, depois como técnica.

Fazer psiquiatria.


A.M.





 



segunda-feira, 15 de novembro de 2021

BORIS DENEV


 

O que é psiquiatria?  parte 2

Uma especialidade diferente essa.

Tudo porque não apenas é especialidade médica, mas instituição.

Do ponto de vista epistemológico, ela está plugada às ciências biológicas e às ciências humanas.  No primeiro caso, o organismo físico-químico. No segundo, a realidade social. Trata a realidade social como organismo físico-químico.  Trocou as bolas.

É uma especialidade ancorada em pilares teóricos de naturezas diferentes. Vive num paradoxo.

Sua condição de ser uma especialidade pode ser ampliada para a de instituição social. É que a pesquisa lida com um universo simbólico no qual a própria especialidade está inserida. 

Tal condição “institucional” normalmente é ignorada pelos psiquiatras e similares. Muito difícil que fosse diferente.

Como instituição ela codifica as pessoas. Daí, estas não precisam ser psiquiatras para pensar, sentir e agir como um. 

Atrelada à visão biomédica do comportamento humano em suas alterações (o chamado transtorno) a psiquiatria estanca numa reflexão teórica rasa, onde não consegue sequer definir com precisão o que é uma psicose.

Em essência, esse é o fundo da  "sua"epistemologia. Um conhecimento atolado na moral.

“Loucura”, conceito não-médico, converte-se ao de “transtorno mental”, termo naturalizado como distúrbio da mente igual à distúrbio do cérebro. A equação conceitual cérebro=mente estabelece, então, a partir da década do cérebro, a última do século XX , fortes razões científicas para um “admirável cérebro novo” que toma o lugar da psicopatologia.

Quanto ao aniquilamento desta última, há testemunhas: os pacientes.

Ai, então, a neurociência se fez impecável. Uma psiquiatria atual, acolhida como ciência do cérebro e surda à fala do sofrimento mental, conquistou o mercado.

No entanto, o cérebro mente.


A.M.


O Que Há Em Mim É Sobretudo Cansaço | Poema de Fernando Pessoa com narra...

domingo, 14 de novembro de 2021

HOSPÍCIOS DA ALMA

Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes. A tristeza, os afetos tristes são todos aqueles que diminuem nossa potência de agir. Os poderes estabelecidos têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos. O tirano, o padre, os pastores, os gurus, os tomadores de almas, têm necessidade de nos persuadir que a vida é dura e pesada. Os poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar, ou, como diz Virilio, de administrar e organizar nossos pequenos terrores íntimos. A longa lamentação universal sobre  a vida: a falta-de´ser que é a vida... Por mais que se diga "dancemos", não se fica alegre. Por mais que se diga "que infelicidade a morte", teria sido preciso viver para ter alguma coisa a perder. Os doentes, tanto da alma quanto do corpo, não nos largarão, vampiros, enquanto não nos tiverem comunicado sua neurose e sua angústia, sua castração bem amada, o ressentimento contra a vida, o imundo contágio.

(...)

G. Deleuze e C. Parnet in Diálogos

O que é psiquiatria?   parte 1


A psiquiatria é uma especialidade médica surgida na França em fins do século XVIII. Ai se dá a passagem (conforme Pinel) dos asilos aos manicômios.

No entanto, sua origem mais longínqua remete à existência de asilos no século VII (cultura árabe) e no século XV (ocupação árabe na Espanha). Desde então os asilos (aos poucos) passam a ser chamados de hospícios e se espalham pela Europa.

Sendo assim, a origem da psiquiatria se confunde com a origem dos asilos, dos hospícios e dos manicômios. Uma máquina institucional se prepara para encolher as mentes.

A lógica dos asilos é o DNA da psiquiatria.

Já o século XIX, chamado século dos manicômios, dá origem aos hospitais psiquiátricos conforme o modelo atual.

São conhecidas as agressões e os horrores perpretados contra pacientes internados nos manicômios europeus. Michel Foucault descreve com rigor os detalhes das torturas científicas.

No Brasil, entre outros horrores, o hospital psiquiátrico de Barbacena (criado em 1903) tornou-se um registro histórico e modelo de uma barbárie consentida. O holocausto brasileiro.

No período do estalinismo na União Soviética (1927/1957) presos políticos (quantos?) foram internados em hospitais psiquiátricos. 

No período da ditadura brasileira (1964/1985)  presos políticos (quantos?) foram internados em hospitais psiquiátricos.

A psiquiatria tem uma história pouco edificante.

No Brasil, vieram a reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial (em 1978). Mas no campo restante da medicina não há notícia de alguma reforma cardiológica, pneumológica, nefrológica, oftalmológica, etc.

De fato, trata-se de uma especialidade diferente.

A psiquiatria (psicopatologia) não produziu uma teoria dos afetos, apesar da extrema importância desse conceito para o trabalho clínico na construção do vínculo terapêutico com o paciente.

O paciente psiquiátrico muitas vezes não quer ser atendido pelo psiquiatra, sendo levado por familiares ou terceiros. Contudo, na clínica médica não se tem notícia de tal recusa, que por vezes é hostil e agressiva.

O objeto de pesquisa e intervenção clínica da psiquiatria é invisível, impalpável e abstrato. Chamado de “mente” , não há nada parecido em pesquisa médica em termos de metodologia científica.

Nos hospitais psiquiátricos (ainda há!) é muito comum pacientes fugirem. Pulam o muro. Em contraste,  nos hospitais gerais isso não existe. 

Sim, uma estranha especialidade essa.


A.M


Bedroom Folk - Sharon Eyal & Gai Behar (NDT 1 | Skin of the mind)

sábado, 13 de novembro de 2021

O que é organização?


Uma organização social é um conjunto de pessoas (ou indivíduos) com  objetivos comuns. Isso os une. A organização é um grupo ampliado. Entre seus objetivos práticos está contida a natureza do trabalho, não só remunerado. É na execução do trabalho que funcionam afetos

Entre as organizações, há variadas estruturas jurídicas, bem como objetivos diversos. Consideramos nesse breve texto tão só o campo do serviço público em saúde.

Seja, pois, uma organização (ou serviço) em saúde mental. Os grupos que a constituem são por sua vez codificados em linhas institucionais (formas de relação social). Algumas delas seriam: divisão de trabalho, hierarquia, formação e função técnica, salário, servidor público, gênero, papel social, etc. A lista é extensa.

Desse modo, para além da organização visível, há níveis de funcionamento do serviço que não são captados a “olho nu”. É, então, possível considerar os grupos (subgrupos), as instituições e os afetos. Estes últimos são o combustível que faz andar (ou desandar ) a organização.

Eles são a produção.

Afetos remetem a pessoas. Entre elas, ou seja, na relação umas com as outras é onde se dá a prática diária do trabalho para obtenção dos objetivos propostos. Isso parece óbvio.

Entre pessoas é onde correm e escorrem fluxos de produção ou de antiprodução dos resultados. 

Circulando sem parar, há, então, três correntes de afetos possíveis 1- atração; 2-repulsão; 3-indiferença. Elas se sustentam na função técnica. Você faz bem o seu serviço? As relações são técnicas e é nesse nível que alguém é atraído (gosto de trabalhar com você), sente repulsa (não gosto de trabalhar com você) ou é indiferente (para mim tanto faz).

É um quadro que apareceria explícito nas reuniões, conversas, discussões de casos e  problemas do dia a dia do serviço.

Mas nem sempre. Há camuflagens.

É que a realidade das relações humanas é muito mais complexa. Dois elementos a fazem mutante, plástica e  por vezes misteriosa. O primeiro diz respeito à mutualidade dos afetos. Uma atração pode não corresponder a outra atração e sim a um rechaço. Ou o inverso. Além disso, tal configuração pode mudar ( a atração pode se tornar indiferença ou um rechaço).

Há um processo do tempo institucional. Que não volta. Este é o dinamismo que nos leva ao segundo elemento da realidade, aquilo que está “escondido”, o invisível.

O conjunto das correntes afetivas que não se mostra, que não se explicita (por variados motivos) pode ser chamado de inconsciente institucional. Não no estilo freudiano como “a outra cena” mas como a cena real do cotidiano do serviço, onde e quando os afetos são a própria consistência do viver (um território) de se estar trabalhando com prazer, alegria, tristeza ou irritação, entre tantos afetos que “empurram” a produção. 

Produção do trabalho como de si mesmo: a subjetividade. 

A subjetividade do trabalhador é produzida pelo que ele trabalha, como e onde trabalha, com quem, por que, para que e para quem. Marx vive.

Voltando à realidade de um serviço público em saúde mental, a natureza do trabalho, ou seja, o que lhe dá valor e sentido é o cuidado ao paciente. As questões institucionais, subgrupais e afetivas, importantíssimas para esse cuidado, devem ser expostas e debatidas unicamente com esse fim, sob pena da equipe técnica se esfarelar como uma psicose coletiva de mau prognóstico: a pseudo-equipe.

Assim, só uma auto-avaliação e uma auto-criação permanentes encontram saídas para os impasses do serviço.

A.M.


terça-feira, 9 de novembro de 2021

O que é arte em saúde mental?

Como foi dito, a saúde mental não é uma questão médica. É social. A medicina vem depois.

No entanto, o pensamento clinico costuma obedecer a ciência. Que comanda e prescreve.

Por toda a parte, técnicos de "branco", munidos de seringas e ampolas, mesmo que imaginárias,  tentam escutar, acolher e cuidar.  Tudo funciona a partir dessa consciência ética. 

É parte do trabalho da equipe de saúde mental num serviço de atenção psicossocial. 

Essa equipe lida com estranhas imagens (induzidas) das ruas: cérebros avariados, sinapses inquietas, neurônios aflitos, doidos varridos. Fantasmas reais assombram a Hora do acolhimento.

O acolhimento é um dispositivo técnico criado na história dos caps. Ele se baseia na ética da recusa à exclusão do paciente vindo dos tempos do manicômio. Tem uma feição de consulta ou triagem. Mas não é.

Daí, a questão da arte passa a ser hoje a escuta como miolo do acolhimento. Tal manejo só é possível se o técnico se separar do pensamento racional em direção ao pensamento da arte.

O pensamento da arte é  um pensar livre. 

O pensamento das sensações.

E nem é preciso que o técnico seja um artista. Basta que ele "viaje" (pelo menos na hora do encontro) do pensamento da ciência para o pensamento da arte: uma linha de criação se esboça como clínica do Novo.

Trata-se de uma sensibilidade, ou melhor, de mil sensibilidades vividas a partir das sensações que o paciente produz em nós. 

A arte em saúde mental implica, pois, numa visão da clinica para além de toda moral julgadora.E de toda idolatria à ciência.

Experimente.

Escutar é arte, acolher é arte, cuidar é arte. 


A.M.


  






CASA VAZIA


Poema nenhum, nunca mais,

será um acontecimento:

escrevemos cada vez mais

para um mundo cada vez menos,


para esse público dos ermos

composto apenas de nós mesmos,


uns joões batistas a pregar

para as dobras de suas túnicas

seu deserto particular,


ou cães latindo, noite e dia,

dentro de uma casa vazia


Alberto da Cunha Lima

domingo, 7 de novembro de 2021

O que é delírio?

Delírio é um dos principais sintomas em psicopatologia clínica. Numa visão biomédica, deve ser  eliminado,  como, por exemplo, se faz com uma dor de cabeça.

Ou ainda, segundo essa visão, remete a uma causa, a qual sendo eliminada, cessa o efeito (sintoma). Relação linear causa-efeito. A face tosca da "inteligência psiquiátrica."

Tanto num caso como noutro, a compreensão "do que é delírio" está falseada. Não conduz ao essencial que é cuidar do paciente. Leva apenas ao controle e à violência maquiada.

Mas, afinal, o que é isso, o delírio?

Delírio é uma vivência em que o juízo da realidade (de si e do mundo) está alterado. Mais profundamente significa dizer que uma outra realidade foi inventada. Trata-se de uma crença.

O que está em jogo então é a verdade. Pergunta-se: isso é verdade?

A questão da verdade abrange todos nós.A verdade vem de fora. Desde muito cedo nossos pais  enfiam verdades em nossas mentes. Acreditamos, claro, sem questionar. E mais: a crença (qualquer uma) vem sempre acompanhada de um afeto. A crença na família, na escola, na pátria, em Deus, etc...

Delirar talvez seja acreditar no que ninguém ou poucos acreditam. A arte, a filosofia e a ciência fazem isso.

E por que surge o caráter patológico, ou seja, aquilo que conduz à busca de uma ajuda clínica? Lembremos que nem sempre o delirante quer ajuda. Isso é fácil de verificar.

De todo modo, o delírio em saúde mental remete a várias causas e formas clínicas. Os quadros mais graves são os que o paciente nem mais delira já que é o próprio delírio. São as psicoses por vezes chamadas de esquizofrenias.

A rigor, qualquer patologia mental pode apresentar delírio. Ou mesmo qualquer vivência mental não patológica ( desilusão amorosa, a morte de alguém querido, um trauma existencial) pode  gerar um delirio.

O capítulo sobre delírio em psicopatologia é muito extenso. Convém destacar aqui o aspecto vivencial que o aproxima do normal ou do patológico.

Neste sentido o delírio do paciente pode estar próximo ao "delirio" do técnico que o acompanha. Esse fato nem sempre ocorre, claro, mas serve como linha comum do Encontro com a loucura, conforme exposto em texto anterior.

Concluindo, o delírio está em toda a parte onde há alguma crença. E sempre há. Ele compõe a realidade do mundo (veja a política...) e nem por isso  risperidona e haldol lhes são prescritos. Só para delirantes cadastrados.

A.M.



quando eu tiver setenta anos

então vai acabar esta minha adolescência


vou largar da vida louca

e terminar minha livre docência


vou fazer o que meu pai quer

começar a vida com passo perfeito


vou fazer o que minha mãe deseja

aproveitar as oportunidades

de virar um pilar da sociedade

e terminar meu curso de direito


então ver tudo em sã consciência

quando acabar esta adolescência


Paulo Leminski

sábado, 6 de novembro de 2021

ALEXIS SLUSAR


 

O que é técnico em saúde mental?


Não existe uma Faculdade do “técnico em saúde mental”. É que não há  identidade profissional... Como reconhecê-lo?

A formação do técnico em saúde mental se dá no Encontro com o paciente. Não no encontro com a pessoa do paciente, mas no encontro com a loucura do paciente. Isso faz toda a diferença.

Mais: no encontro com a loucura dele mesmo, o técnico.

Se há um Encontro, pois, é com a loucura. 

É bom lembrar que “loucura” não é um conceito psiquiátrico. A psiquiatria (historicamente) humilhou e escorraçou a loucura.

Tentemos situar (apesar das dificuldades) esse conceito.

Loucura é uma realidade sem nome, dissolução do nome, frase desconexa, sem sentido, afeto estranho, conduta rota, mundo fora dos eixos.

Isso e muito mais, é loucura.

Curioso como a palavra pode ter significados opostos: 1- “Você não foi à festa. Perdeu. Foi uma loucura”. 2-  “Meu amigo, não faça isso. É loucura.” No primeiro caso, “alegria, prazer”. No segundo,  “ algo ruim, talvez suicídio.”

Entre os opostos, o nosso eguinho oscila como um pêndulo. Quem, pelo menos no pensamento e/ou no sonho, não experimentou loucuras?

O técnico em saúde mental só aprende a trabalhar lidando com isso (em si e nos outros), que no fundo é o mesmo: loucura do mundo. 

Qualquer um pode entrar nessa “vibração louca sem estar louco”. É  condição ética para escutar e cuidar do paciente. E nem é preciso que seja um técnico de nível superior. Às vezes é até melhor que não. Nesse campo de ação prática tão escorregadio, só sensibilidades finas interessam. 


A.M.


MORO: ANTES DA FAMA

PSIQUIATRIA: SAIR DE SI MESMA

Para ser possível pensar ( e não refletir sobre...) a Saúde Mental, é necessário fugir da psiquiatria como "concepção de mundo". Tal manobra conceitual só se torna possível abrindo-a aos fluxos de saber que estão fora, que são o fora, e com ela compõem agenciamentos produtivos de desejo. Desejo é produção. Tal é o caso da arte. Não como arte mercantil, monumental ou contemplativa, mas como expressão subjetiva de modos de viver. Mas não só a arte. Outros saberes, mil saberes circulam livres "à espera"de encontros com a clínica que travou a psiquiatria num nó neurobiológico e capitalistico. Seus compromissos políticos (às vezes implícitos e inconfessáveis) com agências de poder (Estado, Escola, Direito, Família, Polícia, Mídia, Mercado, etc), fazem dos possíveis encontros desencontros, ou simplesmente maus encontros. Sob tais condições, fazer uma psiquiatria da Diferença e não da Semelhança, e não da Academia, e não dos Remédios químicos, e não do Eu, e não da Verdade científica, implica em práticas isoladas e heteróclitas. Talvez sob camuflagem.


A.M.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Will Calhoun w/Marc Cary & Charnett Moffett - Afro Blue

Não sei quantas almas tenho


Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem achei.

De tanto ser, só tenho alma.

Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê,

Quem sente não é quem é,


Atento ao que sou e vejo,

Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo

É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem;

Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.


Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser.

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li

O que julguei que senti.

Releio e digo: "Fui eu ?"

Deus sabe, porque o escreveu.


Fernando Pessoa

terça-feira, 2 de novembro de 2021

HENRY ASENCIO


 

O que é escuta em saúde mental?


Escutar em saúde mental não é ouvir. Apenas.

O técnico em saúde mental tem orelhas enormes movidas a uma percepção delicada. 

Ele anda à espreita de novidades.

Contudo, em face da herança psiquiátrica, é muito difícil escutar. A psiquiatria não escuta. Mesmo que haja (raros) psiquiatras que escutem, isto se dá apesar da psiquiatria e não por causa da psiquiatria. Nesse mister ela é um horror.

Escutar passa essencialmente pelos afetos. A psiquiatria não  dispõe de uma teoria dos afetos. Como então estabelecer um vínculo com o “seu” paciente? Restou vampirizar sinapses cansadas.

Afetos do paciente, afetos do técnico. Bons e maus. Construtivos e destrutivos. Esse é o jogo. 

Convém ao técnico em saúde mental não buscar ser juiz, policial ou professor. E saber que não julga, não pune nem salva.  Só facilita as coisas do viver.

A escuta é um conceito-chave em saúde mental.  Traz a pergunta: diante da loucura, o que é que eu faço?

A não-escuta reflete o mundo atual. Ninguém escuta ninguém.

Assim, como acolher se não escuto? Como tratar se não escuto? Como cuidar se não escuto?

Expor-se às mil formas de ser/agir no mundo é a escuta em saúde mental. Não é fácil. 


A.M.


Caetano Veloso - Sem Samba Não Dá

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

O que é transtorno mental?

O termo “transtorno” foi introduzido em 1992 na Classificação Internacional de Doenças (CID-10). O objetivo, segundo os autores da OMS,  era o de retirar o estigma de “doença mental” do capítulo F, referente à psiquiatria.

Assim, “transtorno” vem da psiquiatria, e é nesse contexto que pode ser avaliado.

A CID-10 é um sistema classificatório de “todas” as doenças, o qual, por padronizar a nomenclatura e os dados relacionados à semiologia clínica, facilita a interação entre os profissionais de saúde de todo o mundo. 

Na prática clínica em saúde mental, a CID-10 é instituída como referência obrigatória, até porque consta no preenchimento de documentos importantes para o paciente.

No entanto, já que a “mente” é invisível pois é composta por afetos em relação com outros afetos, o uso do termo (ou diagnóstico) “transtorno mental” tem limitações importantes nas ações de cuidado.

Tal sistema de diagnósticos psiquiátricos com respaldo jurídico e internacional, é de auxílio no exame de situações não terapêuticas como incapacidade laboral, incapacidade de gerir os atos da vida civil, imputabilidade criminal, entre outras.

Contudo, além da insuficiência prático-técnica do termo, ele pode produzir estigmas morais ou auto-estigmas depreciativos, acusatórios e irreversíveis (caso do  paciente crônico).

Vale, então, dizer transtorno mental? A pergunta só se coloca e se sustenta num quadro psicopatológico estabelecido de antemão na CID-10. Aqui o paciente é marcado como “essência” individual, mesmo que isso não conste no catálogo, já que está oculto nas entrelinhas do texto.

Numa clínica da diferença, o transtorno é dito ( “ele é bipolar”) numa visão funcional. Ou seja, qual a função do termo “transtorno” no quadro, por exemplo, de uma psicose grave? Trata-se de controlar/dominar ou cuidar/tratar? Uma posição ética define tudo. A ética precede a técnica.

A.M