terça-feira, 31 de maio de 2022

Como o desmonte dos CAPS se reflete no cotidiano de quem oferta e utiliza o serviço em Conquista

Por Letícia Mendes - 31 de maio de 2022


Servidores da Rede de Atenção Psicossocial do município reivindicam melhorias nas condições de trabalho e infraestrutura das unidades. Em entrevista ao Conquista Repórter, psicóloga destaca a luta da categoria para garantir a manutenção dos atendimentos à população.

Falta de insumos e medicamentos, redução do quadro técnico de funcionários, sobrecarga de serviços e problemas estruturais. Essas são algumas das dificuldades que as equipes dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) vêm enfrentando em Vitória da Conquista.

O progressivo desmonte e sucateamento dos CAPS foi denunciado pelos profissionais que integram a rede (CAPS AD III , CAPS II e CAPS IA) no dia 17 de maio, por meio de um relatório unificado que foi divulgado na imprensa e entregue à prefeita Sheila Lemos, à Secretaria Municipal de Saúde e à Coordenação de Saúde Mental. 

As reivindicações vieram acompanhadas de um ato público no dia 18, na Praça 9 de Novembro, onde trabalhadores, estudantes e representantes de Instituições de Ensino Superior se reuniram em defesa da saúde mental e da reforma psiquiátrica. Não à toa, a data da manifestação coincidiu com o Dia Nacional da Luta Antimanicomial.

Na manhã dessa última segunda-feira, 30, o movimento deu mais um passo na luta pelo atendimento de suas demandas. Em audiência pública realizada na Câmara de Vereadores, representantes dos CAPS voltaram a denunciar e debater os diversos problemas enfrentados pela rede, bem como a necessidade de mobilização permanente em torno do assunto. 

Em entrevista ao Conquista Repórter, Joísa Ramalho, psicóloga e servidora no CAPS II, detalhou os desafios enfrentados pelos profissionais que prestam serviços de atenção à saúde mental no município. Além disso, destacou a importância da luta da categoria para garantir as melhorias necessárias para a manutenção dos atendimentos. Confira:

CR: Esse processo de sucateamento dos CAPS de Vitória da Conquista é algo recente no município? E como exatamente ele se reflete no cotidiano dos servidores e pacientes? 

Joísa Ramalho: As  equipes  da  Rede  CAPS  vêm  enfrentando  dificuldades há  alguns  anos. Elas foram  se intensificando  nos  últimos  meses,  chegando  realmente  a  uma situação  de  sucateamento, no momento  atual.  Os  principais  problemas  estão  relacionados  aos  prejuízos  nas  condições  de trabalho,  expressiva  defasagem  do  quadro  técnico, recorrente  falta  de  material,  insumos  e medicamentos  e  precariedades  estruturais. Entre  as questões mais  graves,  destaca-se,  por exemplo,  a  situação  do  CAPS  II,  que  sofreu  uma  redução  de 12  técnicos,  entre  médico, psicólogas,  enfermeira,  educadora  física, nutricionista,  instrutora  de  artes  etc.,  inversamente proporcional ao  aumento de  cerca  de  70%  na  demanda  de  atendimento,  nos últimos  anos. A atual proporção média é de 150 pacientes por técnico de referência, cujo trabalho é voltado para monitoramento  do  usuário,  seu  projeto  terapêutico  individual,  contato  com  a  família  e avaliação  das  metas  traçadas  no  projeto. 

O  serviço  não  dispõe  da  atuação  de  enfermeiro(a) desde  30 de abril de 2022,  o  que  implicou  na suspensão  da  atuação  da  equipe  de  técnicos  em enfermagem, uma vez que a Lei nº 7.498/86 assim determina para situações de ausência de enfermeiro. A  atuação  vinha  sendo  mantida  via  contrato  emergencial  da  covid-19,  com  prazo  final estabelecido,  o  que  demonstra  a  ingerência  da  administração  pública,  que  não  expressou planejamento  prévio  para  sua  substituição,  resultando  em  desassistência.  Um  dos  médicos psiquiatras,  responsável  pelo  atendimento  de  cerca  de  600  pacientes,  se  desvinculou  em 25 de fevereiro de 2022,  em  razão  das  deficiências  aqui  expressas,  já  se  somando  95  dias  sem  a  devida reposição profissional. 

Desde então, enfrenta-se desassistência no atendimento especializado, avaliações psiquiátricas, prescrições e emissão de relatórios para benefícios sociais, passe livre e  dispensação  de  medicamentos  de  alto  custo  junto  ao  NRS – Normas Regulamentadoras. No CAPS  IA, a  equipe  atual  é composta  por  apenas oito  profissionais,  responsáveis  pelo  atendimento  de 1.227  usuários. O serviço dispõe de oferta de primeira consulta médica apenas para outubro de 2022 e ausência de  neuropediatra  para  avaliação  das  demandas  de  transtorno  do  neurodesenvolvimento, como  autismo  ou TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. 

O  CAPS AD III  enfrenta  a falta  de  linha  telefônica e internet  desde agosto de 2021. Essa situação ocasionou dificuldade de comunicação entre os profissionais do serviço e os usuários, principalmente no contexto de pandemia, além de impedir a busca ativa dos usuários com condição de vulnerabilidade, incluindo pessoas com risco de autoextermínio e  a  população  da  zona  rural. De  modo  geral, há inadequação  das  estruturas  físicas,  salas  de atendimento  e  procedimentos  inapropriadas  e  insalubres,  comprometendo  a  garantia  de preservação  de  sigilo  e  privacidade  e  do  bem-estar  geral  da  comunidade  e  seus  servidores. 

Faltam insumos básicos, como itens de higiene e expediente. A farmácia dos serviços também vêm enfrentando desabastecimentos de   medicações como   Risperidona,   Clorpromazina, Diazepam, Sertralina e Haldol Decanoato. O Sistema Hórus, utilizado para registro e controle das medicações,  não  pode  ser  utilizado  adequadamente,  por falta  de  computador  adequado  e de baixíssima qualidade da internet.

Joísa Ramalho: “Há inadequação  das  estruturas  físicas,  salas  de atendimento  e  procedimentos  inapropriadas  e  insalubres”. Foto: arquivo pessoal.

CR: Como os Centros estão lidando com a rotina de muitos atendimentos, considerando todos esses problemas e dificuldades?

Joísa Ramalho: Infelizmente, a realidade é de sobrecarga das equipes e impactos na saúde mental dos(as) servidores(as). Estamos cotidianamente atendendo e avaliando a necessidade de cada usuário que busca os serviços, para a construção de estratégias de suporte que possam evitar a desassistência. Estamos acionando outros dispositivos que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), como as Unidades de Saúde, da Atenção Primária, no sentido de atendimento médico clínico, com possibilidade de continuidade das prescrições médicas para os casos estáveis, evitando a interrupção dos tratamentos medicamentosos. Para os casos em que há necessidade de avaliações psiquiátricas e atenção em situações de crise, estamos buscando os encaminhamentos à rede hospitalar, a exemplo do Hospital Crescêncio Silveira ou à assistência ambulatorial, por meio do Ambulatório de Saúde Mental do município. Somamos esforços na produção de um cuidado em rede, mas é importante ressaltar que são dispositivos que também já operam com sobrecarga de demanda e todas essas ações não esgotam a necessidade da garantia de condições efetivas de atendimento, pelo Poder Público municipal.

CR: Qual a importância da luta da categoria para manter o funcionamento da rede?

Joísa Ramalho: São os trabalhadores que estão efetivamente na oferta de cuidado cotidiana com os usuários e seus familiares. Na Saúde Mental atuamos com formação de vínculo, então é muito notório o empenho e comprometimento das equipes para a defesa de serviços de qualidade e para a garantia de direitos ao nosso público. Nesse sentido, maturar essa consciência de identidade de grupo enquanto técnicos de Saúde Mental, compreendendo o sentido maior, que se ampara nos pressupostos da Reforma Psiquiátrica, da Luta Antimanicomial e da própria defesa do SUS, proporciona a construção de caminhos de luta mais consistentes. 

CR: Alguma das reivindicações feitas pelo movimento já foi atendida pela prefeitura?

Joísa Ramalho: Já tivemos notícias de reparos estruturais no CAPS IA, o que é importante, mas ainda representa ação muito pontual diante da gravidade das questões. Nesse sentido, salientamos que entregamos um relatório técnico à Secretaria de Saúde e à Prefeita, no dia 17 de maio e até o momento não recebemos qualquer resposta oficial.

CR: Quais os próximos passos do movimento caso as demandas solicitadas não sejam atendidas?

Joísa Ramalho: Nessa segunda-feira, 30 de maio, participamos de uma audiência pública, na Câmara de Vereadores, para discussão da Saúde Mental no município, promovida pela vereadora Viviane Sampaio, presidente da Comissão de Saúde no Legislativo municipal. Além dos trabalhadores, participaram usuários, familiares, Defensoria Pública, OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, Hospital Crescêncio Silveira, Coordenação de Saúde Mental e Conselho de Saúde. Esperávamos um momento para manifestações do Poder Executivo acerca das nossas demandas, mas a única representante da gestão foi a coordenadora de Saúde Mental, que inclusive declarou apoio às reivindicações apresentadas pelas equipes da Rede CAPS, não havendo, contudo, uma resposta efetiva da Secretaria de Saúde ou da Prefeita ao documento encaminhado. Na oportunidade, a coordenadora informou seleção pública, com a destinação de 13 profissionais para a Saúde Mental, quantitativo aquém às nossas necessidades e que se refere apenas a uma das inúmeras questões apresentadas no relatório técnico produzido pelas equipes. Ainda estamos aguardando posicionamento frente à nossa solicitação de pauta para diálogo, negociação e urgente deliberação das demandas apresentadas. Só a partir de então, discutiremos coletivamente os novos posicionamentos. Ressaltamos que nossas reivindicações são justas, legítimas, urgentes e de extremo interesse para a comunidade, sobretudo no atual período pandêmico, em que enfrentamos um significativo aumento dos casos de sofrimento mental.

O QUE É UMA  PSIQUIATRIA MENOR? 3ª parte (final)

Ela se divorciou da psiquiatria maior (neuro-biológica). Não sob tumulto ou oposição tipo "melhor ou pior", mas como linha prática e clínica produzida na relação com o paciente.  Antes de ser técnica, uma aposta ética lhe move ao fazer o Cuidado cuidar.

A psiquiatria menor intervêm no universo oculto ou semi-oculto dos humilhados mudos. Isso inclui os excluídos ao ar livre, os que vegetam, trastes familiares, párias da mente. Cárceres privados são só um exemplo.

A saúde mental é o objeto de pesquisa dessa psiquiatria (talvez inglória) que se deixa afetar por gritos de angústia, fobia e pânico e por delírios, alucinações de fim de mundo, apocalipse e suicídio.

Uma psiquiatria menor funciona, pois, em equipe, em grupo, no coletivo, mesmo quando o psiquiatra está só. Principalmente quando está só.

Ela não busca reconhecimento científico, intelectual, acadêmico, pretígio, poder, money.  Opera no silêncio dos encontros, no risco das terapêuticas criativas e na loucura do mundo.

Não faz política porque em si mesma já é política, inteiramente política, dos pés à cabeça política e por isso mesmo cultiva alma clandestina e corpo guerreiro. Nem mesmo o grande abraço das camisas de força farmacológicas a intimidam.

Quando sente que o  barco vai virar (ou já virou)  sai a nado em direção a outros mares. Sem terra à vista.


A.M.

NELSON RIDDLE & ORCHESTRA - Two Naked City Themes

A EXPERIÊNCIA POÉTICA

"Quem sonda o verso escapa ao ser como certeza, reencontra os deuses ausentes, vive na intimidade dessa ausência, torna-se responsável por  ela, assume-lhe o risco e sustenta-lhe o favor. Quem sonda o verso deve renunciar a todo e qualquer ídolo, tem que romper com tudo, não ter a verdade por horizonte nem o futuro por morada, porquanto não tem direito algum à esperança, deve, pelo contrário, desesperar. Quem sonda o verso morre, reencontra a sua morte como abismo". O texto de Blanchot traz a poesia para o cotidiano. Neste sentido, pode-se questionar: seriam poetas só os que escrevem versos? Não, porque a poesia não remete a uma profissão, a um ofício, a um campo intelectual, acadêmico, coisas da razão esperta, nem mesmo a um estilo de viver. Ao contrário, remete ao abismo insondável do sem-sentido, aquilo que está fora da linguagem, indizível, mas que é dito e adquire sentido como sensação de viver e de não apenas sobreviver. Assim, a experiência mais banal é vivida na rareza de um corpo intensivo que é o próprio desejo como uma gratuidade impessoal. Isso ultrapassa as dimensões estreitas de um eu identitário (quem você é?) e faz da experiência poética a dissolução (ainda que transitória) dos códigos da percepção consciente (os signos significantes).


A.M.

H. BERGSON - O cérebro não produz imagens


 

domingo, 29 de maio de 2022

MÚSICA  SURDA


Como num louco mar, tudo naufraga.

A luz do mundo é como a de um farol

Na névoa. E a vida assim é coisa vaga.


O tempo se desfaz em cinza fria,

E da ampulheta milenar do sol

Escorre em poeira a luz de mais um dia.


Cego, surdo, mortal encantamento.

A luz do mundo é como a de um farol...

Oh, paisagem do imenso esquecimento.


Dante Milano

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Figures in Extinction [1.0] - by Crystal Pite with Simon McBurney (NDT 1...

Qual a função da psicoterapia?

Vamos brincar com a ideia de que a psicologia torna as pessoas medíocres; vamos brincar com a ideia de que o mundo está  in extremis,  sofrendo de um distúrbio, quase fatal, que ele está à beira da morte. Então eu diria que o mundo necessita de mais  sentimentos e pensamentos  extremos e originais, para que a crise que ele atravessa seja considerada na mesma intensidade. A compreensão tolerante da psicoterapia dificilmente está apta para a tarefa. Pelo contrário, produz atitudes contrárias ao caos, à marginalidade dos extremos. A terapia como sedação: tranquilizantes, anestésicos que nos acalmam, aliviam o estresse e relaxam, que nos ajudam  a buscar a aceitação, o equilíbrio, o apoio, a empatia. Território neutro. Mediocridade.


James Hilton - do livro Cem anos de psicoterapia... e o mundo está cada vez pior

segunda-feira, 23 de maio de 2022

CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA - 1

A produção capitalística, em tempos atuais, se dá em escala planetária: a devastação da Terra. Por isso Félix Guattari criou o conceito de Capitalismo Mundial Integrado. O CMI significa a produção subjetiva e portanto material, ou o contrário, a produção material e portanto subjetiva. "Só existe o desejo e o social". Neste sentido, infere-se que o sistema capitalístico se afirmou e se afirma em tão amplas proporções por que domina e controla os indivíduos por dentro, produzindo subjetividades robotizadas (modos de pensar, sentir, perceber e agir) que giram em torno do valor-dinheiro como abstração concretizada em bens de consumo. A servidão imunda, consentida e querida: consome-se todo tipo de produto, incluindo sentimentos, valores, religiões, notícias, doenças, conhecimentos, assistencialismos, espiritualidades, etc. Ora, em tal universo, o sentido é produzido sem cessar como o mundo mais desenvolvido, mais avançado já alcançado pelo Homem, o que é atestado pela tecnologia científica. Sob tais condições, torna-se difícil pensar diferente, ou apenas pensar! Porque não há (aparentemente) um fora do capitalismo. O sistema abarcou tudo, tomou tudo, invadiu tudo até as estruturas do inconsciente. Estamos de fato num mundo delirante (Marx destaca o "fetichismo miraculante" da mercadoria no início de "O Capital"). A Crença é para todos, atravessa países, cidades, continentes: uma busca enlouquecida pela felicidade no exercício diário do consumo faz do homem moderno uma engrenagem plástica (só há uma cultura...) da máquina do capital. Como resistir a tal insânia normatizadora,  religião do capital,  verdade revelada?


A.M.

TULIPAS ETERNAS


 

À SECO


não romantize a loucura,

não faça dela a explosão de  desejos

inconfessáveis.


não a use como objeto de teses acadêmicas,

mais-valia de prestígio

ou dinheiro.


tampouco  a renegue.


seja simples.

considere-a como o acaso absoluto

e o caos sensível

do mistério que nos ronda.


A.M.

domingo, 22 de maio de 2022

Rehearsal trailer Fathoms - David Raymond and Tiffany Tregarthen (NDT 2 ...

10 ANOS DE CAPS: RELATOS DO TEMPO - 14

21 DE MAIO DE 2013

Do lado direito de quem entrava no Caps, a área verde se mostrava em contraste com a extensão de um corredor largo cuja geografia era simples. Salas de um lado e do outro erguiam trilhos para um andar reto. Este funcionava silencioso, como se diz, lúcido, pragmático, orientado, e estava bem ali. Fincava no peito ingênuo estacas do limite:  normal/anormal, sanidade/loucura. Isso, claro, era invisível. Notei porque vim depois, e a área verde invadiu (numa visão delirantemente bela) o imaginário da saúde mental. Tal invasão se dava ao custo de viagens clínicas em prontuários sobre a mesa. Intensas e secretas, entre um atendimento e outro, elas eram reais, tão reais como a oficina de arte produzindo uma vida leve e doce. Viajava só e tão só no mesmo lugar de psiquiatra para a equipe. Já era muito. Um consultório no corredor, um corredor como via única para decifrar a loucura daqueles dias. Ou os dias daquela loucura serviam para deslocar o foco da análise? Qual o lugar do novo? Manicômios nunca mais? Difícil responder na medida em que as correntes forçadas do pensar marcavam os passos da razão política vinda de fora. E que se dobravam sobre o serviço na busca da publicidade dos méritos privados. Nessa época, a traição à psiquiatria se fez arte de viver numa linha de fuga impossível. Médico, use o disfarce.

A.M.

Nova Poética


Vou lançar a teoria do poeta sórdido.

Poeta sórdido:

Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.

Vai um sujeito.

Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:

É a vida.


O poema deve ser como a nódoa no brim:

Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.

Sei que a poesia é também orvalho.

Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfa, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade.


Manuel Bandeira

Ardil 22/ 1970

sexta-feira, 20 de maio de 2022

COVID  E SAÚDE  MENTAL 

A chegada da Covid trouxe mil questões para a saúde mental. São questões práticas, vivenciais, concretas, na medida em que o vírus bate à porta. Não é preciso citar estatísticas mortuárias com que a mídia espalha a informação/comunicação sobre o bicho-coroa. A nossa intenção é simples e direta: traçar linhas afetivas e efetivas para um pensamento que resista não só ao vírus mas à mentira, a infâmia dos poderes dominantes em tempos sem rumo. Pensamento que não é algo abstrato, mas o próprio corpo. Pensamento-corpo. E que resiste à morte disfarçada de vida (vide famélicos aos milhões) no mundo em que vivemos, não só no Brasil. Nesse momento, a Covid é o inimigo público número um, signo de um horror invisível. Temos que nos proteger. No entanto, a obviedade do enunciado esconde questões da saúde mental que sobem à flor da pele, à flor de um tempo sem alma. A Covid não tem alma. Em saúde mental a ausência de alma (não a dos religiosos, mas a alma das coisas, a vida, enfim) fez e faz da psiquiatria o modelo único (bioquímico) dos objetos (pacientes) expostos como coisas e casos. Quanto vale um paciente? Tal modelo autocentrado (narcísico) tem a capacidade de proliferar e contagiar corpos, tornando-os serviçais da razão manicomial, ainda que soltos. A Covid trouxe uma dor nova para velhos problemas.


A.M. , 29/03/2020

Blade Runner - Vangelis

terça-feira, 17 de maio de 2022

18 DE MAIO: O DIA DA LUTA


Outrora, houve uma luta. 

Chamava-se antimanicomial. Queria acabar com os manicômios.

Mas não acontecia isolada. A reforma psiquiátrica e o SUS lhe eram parceiras.

Um combate ativo.

Para além dos horrores da psiquiatria manicomial, a luta não era apenas contra os manicômios (os muros visíveis) mas a favor de uma ética do cuidado, dos afetos e a da autonomia social.

No fundo, era contra os muros invisíveis, manicômios da alma.

Houve uma luta.

Muitas frentes de combate, mil práticas clínicas, cem mil experimentações técnicas. 

Loucura!

A política, arte do impossível, era aplicada na veia. 

Hoje, não.

Resta e reina a burocracia do calendário oficial para cumprir festas onde não há mais festa.

Só a apatia dos risos imotivados.


A.M.

ZDZISLAW BEKSINSKI


 

domingo, 15 de maio de 2022

SAÚDE MENTAL: A ÉTICA DO CUIDADO

O conceito de "saúde mental"  constitui a essência da prática de um Caps. Mesmo que não esteja explícito e/ou não operacionalizado, é o que move (ou deveria mover) o trabalho técnico. Vamos tentar descrevê-lo em dez ítens (poderia ser mil, cem mil...). 1-"Saúde mental" refere-se a um bem estar subjetivo inserido no conjunto das circunstâncias (condições) que chamamos de mundo; "mental" não é "cerebral", ainda que o cérebro seja um órgão, digamos, nobre. 2- O mundo é composto de instituições (família, escola, religião, estado, casamento, etc) e daí a saúde mental é avaliada junto ao funcionamento das instituições presentes em cada caso. É um conceito singular e mutável. 3-A saúde mental inclui a saúde do organismo visível (sistema de órgãos) do qual a medicina se ocupa (rins, fígado, coração e demais). Este organismo é essencial, mas não é o objeto da pesquisa e da clínica em saúde mental. 4- Como a psiquiatria é uma especialidade médica, é importante descolar o conceito de saúde da psiquiatria (bom funcionamento do cérebro e adequação aos códigos sociais) do conceito de saúde mental (produtividade social, laboral e autonomia existencial). Dito de outro modo, separar a "saúde do cérebro" da "saúde da mente". 5- O cérebro, óbvio, é um órgão visível, palpável, mensurável. A mente é invisível, impalpável e não mensurável. Quem disser que já "viu, palpou ou mediu" a mente pode estar sofrendo de algum transtorno. 6- A técnica em saúde mental é regida por princípios éticos que valorizam a potência de viver uma clínica das singularidades em cada caso. Dai o uso do diagnóstico como função terapêutica e não como essência cadastrada (CID-10). 7- A posição antimanicomial é apenas um linha de combate que inspira e compõe algumas práticas em saúde mental. Há práticas que não dizem respeito aos muros do manicômio. São linhas invisíveis que combatem microfascismos. 8 - A saúde mental é uma saúde da alma no sentido de lidar com o sem-forma. Ou seja, trabalhar sem crenças a priori (preconceitos), não saber quem é o paciente. Retirar o conceito de exame e por no lugar o de "Encontro", não só com a pessoa do paciente, mas com tudo que lhe rodeia, o determina e o coage. 9- Saúde mental é um conceito que opera situações essencialmente práticas interferindo numa vida e mais que isso, produzindo uma vida. Daí florescer numa ética do Cuidado em oposição às redes institucionais modernas envelhecidas no "cuidado integral". ( corações manicomiais são apenas um dos exemplos). 10 - Concluindo, promover a saúde mental é promover a auto-saúde mental. A implicação numa clínica psicopatológica aberta às determinações (causas) múltiplas do sofrimento mental é a base para um trabalho (duro) no dia-a-dia de um Caps.


A.M.

sábado, 14 de maio de 2022

Reza da manhã de maio


Senhor, dai-me a inocência dos animais

Para que eu possa beber nesta manhã

A harmonia e a força das coisas naturais.


Apagai a máscara vazia e vã

De humanidade,

Apagai a vaidade,

Para que eu me perca e me dissolva

Na perfeição da manhã

E para que o vento me devolva

A parte de mim que vive

À beira dum jardim que só eu tive.


Sophia Amdresen

Rehearsal Claude Pascal - Jiří Kylián (NDT 1 | Sometimes, I wonder)

DEZ  LINHAS  PARA  RECONHECER  UM  FASCISTA

1-O fascista sabe apenas usar um método que é o do fascismo. Este método tem como principal característica um grito: " Viva a morte".

2-Para bem funcionar na prática, o fascismo necessita estar "dentro" das pessoas, dentro de nós. Daí, todo fascismo é um microfascismo

3-Apesar da origem histórica situá-lo na direita, hoje, se ampliarmos nossa visão de mundo, não existe mais fascista de direita ou de esquerda. Existe apenas o fascista e seus cânticos de destruição.

4-O fascista se aproxima do paranóico. No entanto, enquanto o paranóico acaba no manicômio, o fascista vive solto. Às vezes é até um cidadão de bem. Opera ao ar livre, destila um ódio brutal.  Seu delírio é expresso como saudável,  até mesmo salvador do país e quiçá do mundo.

5-O fascista anseia por uma verdade pronta, reta, pura e simplista. Vive de certezas absolutas. Isso o alimenta sem cessar. Sua alma gorda torna-se monstruosa. Sofre de uma espécie de bulimia ideológica.

6-Gosta de raciocinar por dualismos; bem/mal, esquerda/direita, homem/mulher, rico/pobre, louco/normal, negro/branco, bonito/feio. Seu cérebro mente

7-As regras do jogo democrático lhe são quase insuportáveis. No caso brasileiro, o fascista costuma pregar o golpe e a intervenção militar.

8- O diálogo com o fascista é muito difícil. Ele se expressa como pensamento único. Adora um monólogo. O bom senso é um fóssil que cheira mal.  Nazifascistas e estalinistas, velhos amigos, trocam ideias e figurinhas.

9-Os sentimentos fascistas podem conviver sob harmonias bizarras. Hitler amava a sua cadela Blondie.

10-Por fim, mas não menos importante, o fascista costuma atirar para matar em tudo que se move: a vida.


A.M.



quarta-feira, 11 de maio de 2022

A TRAPAÇA UNIVERSITÁRIA

A forma-universidade (e não a organização-universidade) é um conceito da análise institucional que faz pensar a universidade (qualquer uma) como forma de relação social oriunda da Idade Média e "vitoriosa" nos dias atuais. É possível, assim, falar de uma subjetividade acadêmica como produção de sentido. Difícil contestá-la. Sob o respaldo de verdades conceituais prontas (recheadas de princípios) legitima-se a intelectualidade contemplativo-narcísica atual. Apesar disso, ou por causa disso, a realidade dominante é criticada em teses tão brilhantes quanto condenadas ao bolor. É que não se trata do intelecto mas dos afetos. Estes costumam ser aniquilados. Numa operação organizacional urdida em programas de mestrado e doutorado, a forma-universidade escurraça o desejo: devires imperceptíveis, incontroláveis, sensibilidades finas, realidades reais, singularidades múltiplas, intensidades criativas, saberes menores, rebeldias, loucuras não-médicas. A universidade faz da diferença (que é o pensar por si mesmo) uma maldição. Você já discutiu (divergindo) ideias com um acadêmico, um pesquisador, um professor? Melhor não. Trata-se aí de uma representação esperta da realidade social, um teatro moral agenciado pela máquina acadêmica que diz: não afirme nada, não arrisque nada, não sinta, não crie, aceite o que a razão transcendente enfiou no seu corpo desejante. Diga amém ao capitalismo como religião da mercadoria. Apesar disso, algum dia serás doutor em qualquer coisa, tanto faz.

A.M. 

domingo, 8 de maio de 2022

Rehearsal Figures in Extinction [1.0] - By Crystal Pite with Simon McBur...

SOBRE A DIFERENÇA

Pergunta-se o que é a diferença.  A diferença não é o indivíduo, não é a pessoa, não é algo fixo e estável onde se possa ancorar o corpo e a alma exaustos. Nem tampouco é ver, assuntar, medir, pesar, adjetivar, qualificar. Ela não é do campo do substantivo nem do adjetivo, ou de alguma substância dura, pétrea, imóvel, formatada em ideais do valor de troca. Nada a ver com a troca, pilar e essência do capital em seu cortejo mortuário. Tampouco é o ser-diferente, até porque não há o ser. Não é o estranho-em-nós. Já somos de antemão  e suficientemente estranhos, estranhos a nós e ao mundo. Não há, pois, medidas para identificá-la. Ela é desmedida. Quando há cálculos, dão sempre errado, as contas não fecham, tudo se frustra e se decompõe. Ao inverso, bem mais além e aqui mesmo, há somente corpos, corpos de corpos, corpos no interior de corpos, devires, processos, passagens, relâmpagos, vertigens, intensidades, frêmitos, respirações, ardores, ardências, viagens anômalas no mesmo lugar. Da diferença não se alimenta o narcisismo porque também não existe o narcisismo no seu universo, este sim, verso encantado, encantador e cantador em estradas desertas. A diferença é o bicho. Não tem forma, não é identificável pela percepção de representações exatas ou imagens-clichês. A diferença é o bicho na espreita. Percorre o mundo em linhas finas de sensibilidade e arte. Com delicadeza foge de todos os dualismos, de todos os títulos, de todos os senhores, de todas as pátrias, de todas as pretensões e boas intenções da racionalidade, da consciência e do pensamento da autoridade, mesmo a mais admirável e mansa. Brinca com o poder,  a morte e  o amor. Faz disso a própria natureza do seu percurso invisível e silencioso pelos caminhos desconhecidos do encontro. Composta de multiplicidades ingênuas e  encravada na irreversibilidade do tempo, se tece e se faz inglória e pura. Mas quem a suporta?


A.M.

quinta-feira, 5 de maio de 2022

CADÊ OS YANOMAMI?


Um chamado, um grito de desespero.

Vou ser repetitiva hoje, porque é fundamental ser. Repetitiva, porque semana passada escrevi sobre o relatório da Hutukara Associação Yanomami revelando o panorama ilegal do avanço da destruição garimpeira na terra indígena do país. Mas repetitiva porque a pergunta precisa ecoar nas redações, os jornalistas precisam se incomodar, o governo precisa se sentir responsável.

Uma comunidade desapareceu após sofrer ataques de garimpeiros. As casas do local foram queimadas. E não há respostas sobre o que de fato ocorreu ali.

CADÊ OS YANOMAMI?

CADÊ OS YANOMAMI?

CADÊ OS YANOMAMI?

CADÊ OS YANOMAMI?

CADÊ OS YANOMAMI?

CADÊ OS YANOMAMI?

CADÊ OS YANOMAMI?

E o Brasil permanece calado.

Calado pelo desaparecimento de uma comunidade Yanomami. Calado pelas mortes diárias de jovens negros nas periferias das cidades. Calado pelas mortes das mulheres.

Uma menina de 12 anos foi raptada, sofreu violência sexual e não resistiu aos ferimentos. Sua irmã, de 3 anos, foi jogada no rio e nunca foi encontrada. O caso deveria estampar as capas de todos os jornais, mas não ganha destaque porque são crianças indígenas.

E o governo federal é cúmplice dessa violência. Não podemos aceitar que crimes como esse sigam acontecendo!

"A nossa dor é como se não tivesse importância nesse país, mais de 500 anos sofrendo depois da invasão da nossa terra e que nunca parou. Uma comunidade inteira sumiu (ou teve que sumir), após denunciarem que garimpeiros estupraram até a morte uma criança de 12 anos e jogaram outra criança de 3 anos no rio", publicou a Apib - Articulação dos povos indígenas do Brasil.

CADÊ OS YANOMAMI?

CADÊ OS YANOMAMI?

CADÊ OS YANOMAMI?

CADÊ OS YANOMAMI?

CADÊ OS YANOMAMI?

CADÊ OS YANOMAMI?CADÊ OS YANOMAMI?


Mariana Belmont, 5/5/2022

quarta-feira, 4 de maio de 2022

OUTRAS AMPLIDÕES

Se o desejo é recalcado, não é por ser desejo da mãe e da morte do pai; ao contrário, ele só devém isso porque é recalcado e só aparece com essa máscara sob o recalcamento que a modela e nele a coloca. Aliás, pode-se duvidar que o incesto seja um verdadeiro obstáculo à instauração da sociedade, como dizem os partidários de uma concepção de sociedade baseada na troca. Vê-se cada coisa... O verdadeiro perigo não é este. Se o desejo é recalcado é porque toda posição de desejo, por menor que seja, pode pôr em questão a ordem estabelecida de uma sociedade: não que o desejo seja a-social, ao contrário. Mas ele é perturbador; não há posição de máquina desejante que não leve setores sociais inteiros a explodir. Apesar do que pensam certos revolucionários, o desejo é, na sua essência, revolucionário — o desejo, não a festa! — e nenhuma sociedade pode suportar uma posição de desejo verdadeiro sem que suas estruturas de exploração, de sujeição e de hierarquia sejam comprometidas. Se uma sociedade se confunde com essas estruturas (hipótese divertida), então, sim, o desejo a ameaça essencialmente. Portanto, é de importância vital para uma sociedade reprimir o desejo, e mesmo achar algo melhor do que a repressão, para que até a repressão, a hierarquia, a exploração e a sujeição sejam desejadas. É lastimável ter de dizer coisas tão rudimentares: o desejo não ameaça a sociedade por ser desejo de fazer sexo com a mãe, mas por ser revolucionário. E isto não quer dizer que o desejo seja distinto da sexualidade, mas que a sexualidade e o amor não dormem no quarto de Édipo; eles sonham, sobretudo, com outras amplidões e fazem passar estranhos fluxos que não se deixam estocar numa ordem estabelecida. O desejo não “quer” a revolução, ele é revolucionário por si mesmo, e como que involuntariamente, só por querer aquilo que quer.

(...)

G. Deleuze e F. Guattari in O Anti-édipo

ritmo


deixar a previsão de lado e dançar bolero

no carnaval quero é romance


se não pudermos rimar nossos passos

dancemos tango salsa mambo

rock and roll


(o samba fica

para a quarta de cinzas)


Líria Porto

domingo, 1 de maio de 2022

O que é psiquiatria?  parte 2


Uma especialidade diferente essa.

Tudo porque não apenas é especialidade médica, mas instituição.

Do ponto de vista epistemológico, ela está plugada às ciências biológicas e às ciências humanas.  No primeiro caso, o organismo físico-químico. No segundo, a realidade social. Trata a realidade social como organismo físico-químico.  Trocou as bolas.

É uma especialidade ancorada em pilares teóricos de naturezas diferentes. Vive num paradoxo.

Sua condição de ser uma especialidade pode ser ampliada para a de instituição social. É que a pesquisa lida com um universo simbólico no qual a própria especialidade está inserida. 

Tal condição “institucional” normalmente é ignorada pelos psiquiatras e similares. Muito difícil que fosse diferente.

Como instituição ela codifica as pessoas. Daí, estas não precisam ser psiquiatras para pensar, sentir e agir como um. 

Atrelada à visão biomédica do comportamento humano em suas alterações (o chamado transtorno) a psiquiatria estanca numa reflexão teórica rasa, onde não consegue sequer definir com precisão o que é uma psicose.

Em essência, esse é o fundo da  "sua"epistemologia. Um conhecimento atolado na moral.

“Loucura”, conceito não-médico, converte-se ao de “transtorno mental”, termo naturalizado como distúrbio da mente igual à distúrbio do cérebro. A equação conceitual cérebro=mente estabelece, então, a partir da década do cérebro, a última do século XX , fortes razões científicas para um “admirável cérebro novo” que toma o lugar da psicopatologia.

Quanto ao aniquilamento desta última, há testemunhas: os pacientes.

Ai, então, a neurociência se fez impecável. Uma psiquiatria atual, acolhida como ciência do cérebro e surda à fala do sofrimento mental, conquistou o mercado.

No entanto, o cérebro mente.


A.M.