Como o desmonte dos CAPS se reflete no cotidiano de quem oferta e utiliza o serviço em Conquista
Por Letícia Mendes - 31 de maio de 2022
Servidores da Rede de Atenção Psicossocial do município reivindicam melhorias nas condições de trabalho e infraestrutura das unidades. Em entrevista ao Conquista Repórter, psicóloga destaca a luta da categoria para garantir a manutenção dos atendimentos à população.
Falta de insumos e medicamentos, redução do quadro técnico de funcionários, sobrecarga de serviços e problemas estruturais. Essas são algumas das dificuldades que as equipes dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) vêm enfrentando em Vitória da Conquista.
O progressivo desmonte e sucateamento dos CAPS foi denunciado pelos profissionais que integram a rede (CAPS AD III , CAPS II e CAPS IA) no dia 17 de maio, por meio de um relatório unificado que foi divulgado na imprensa e entregue à prefeita Sheila Lemos, à Secretaria Municipal de Saúde e à Coordenação de Saúde Mental.
As reivindicações vieram acompanhadas de um ato público no dia 18, na Praça 9 de Novembro, onde trabalhadores, estudantes e representantes de Instituições de Ensino Superior se reuniram em defesa da saúde mental e da reforma psiquiátrica. Não à toa, a data da manifestação coincidiu com o Dia Nacional da Luta Antimanicomial.
Na manhã dessa última segunda-feira, 30, o movimento deu mais um passo na luta pelo atendimento de suas demandas. Em audiência pública realizada na Câmara de Vereadores, representantes dos CAPS voltaram a denunciar e debater os diversos problemas enfrentados pela rede, bem como a necessidade de mobilização permanente em torno do assunto.
Em entrevista ao Conquista Repórter, Joísa Ramalho, psicóloga e servidora no CAPS II, detalhou os desafios enfrentados pelos profissionais que prestam serviços de atenção à saúde mental no município. Além disso, destacou a importância da luta da categoria para garantir as melhorias necessárias para a manutenção dos atendimentos. Confira:
CR: Esse processo de sucateamento dos CAPS de Vitória da Conquista é algo recente no município? E como exatamente ele se reflete no cotidiano dos servidores e pacientes?
Joísa Ramalho: As equipes da Rede CAPS vêm enfrentando dificuldades há alguns anos. Elas foram se intensificando nos últimos meses, chegando realmente a uma situação de sucateamento, no momento atual. Os principais problemas estão relacionados aos prejuízos nas condições de trabalho, expressiva defasagem do quadro técnico, recorrente falta de material, insumos e medicamentos e precariedades estruturais. Entre as questões mais graves, destaca-se, por exemplo, a situação do CAPS II, que sofreu uma redução de 12 técnicos, entre médico, psicólogas, enfermeira, educadora física, nutricionista, instrutora de artes etc., inversamente proporcional ao aumento de cerca de 70% na demanda de atendimento, nos últimos anos. A atual proporção média é de 150 pacientes por técnico de referência, cujo trabalho é voltado para monitoramento do usuário, seu projeto terapêutico individual, contato com a família e avaliação das metas traçadas no projeto.
O serviço não dispõe da atuação de enfermeiro(a) desde 30 de abril de 2022, o que implicou na suspensão da atuação da equipe de técnicos em enfermagem, uma vez que a Lei nº 7.498/86 assim determina para situações de ausência de enfermeiro. A atuação vinha sendo mantida via contrato emergencial da covid-19, com prazo final estabelecido, o que demonstra a ingerência da administração pública, que não expressou planejamento prévio para sua substituição, resultando em desassistência. Um dos médicos psiquiatras, responsável pelo atendimento de cerca de 600 pacientes, se desvinculou em 25 de fevereiro de 2022, em razão das deficiências aqui expressas, já se somando 95 dias sem a devida reposição profissional.
Desde então, enfrenta-se desassistência no atendimento especializado, avaliações psiquiátricas, prescrições e emissão de relatórios para benefícios sociais, passe livre e dispensação de medicamentos de alto custo junto ao NRS – Normas Regulamentadoras. No CAPS IA, a equipe atual é composta por apenas oito profissionais, responsáveis pelo atendimento de 1.227 usuários. O serviço dispõe de oferta de primeira consulta médica apenas para outubro de 2022 e ausência de neuropediatra para avaliação das demandas de transtorno do neurodesenvolvimento, como autismo ou TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.
O CAPS AD III enfrenta a falta de linha telefônica e internet desde agosto de 2021. Essa situação ocasionou dificuldade de comunicação entre os profissionais do serviço e os usuários, principalmente no contexto de pandemia, além de impedir a busca ativa dos usuários com condição de vulnerabilidade, incluindo pessoas com risco de autoextermínio e a população da zona rural. De modo geral, há inadequação das estruturas físicas, salas de atendimento e procedimentos inapropriadas e insalubres, comprometendo a garantia de preservação de sigilo e privacidade e do bem-estar geral da comunidade e seus servidores.
Faltam insumos básicos, como itens de higiene e expediente. A farmácia dos serviços também vêm enfrentando desabastecimentos de medicações como Risperidona, Clorpromazina, Diazepam, Sertralina e Haldol Decanoato. O Sistema Hórus, utilizado para registro e controle das medicações, não pode ser utilizado adequadamente, por falta de computador adequado e de baixíssima qualidade da internet.
Joísa Ramalho: “Há inadequação das estruturas físicas, salas de atendimento e procedimentos inapropriadas e insalubres”. Foto: arquivo pessoal.
CR: Como os Centros estão lidando com a rotina de muitos atendimentos, considerando todos esses problemas e dificuldades?
Joísa Ramalho: Infelizmente, a realidade é de sobrecarga das equipes e impactos na saúde mental dos(as) servidores(as). Estamos cotidianamente atendendo e avaliando a necessidade de cada usuário que busca os serviços, para a construção de estratégias de suporte que possam evitar a desassistência. Estamos acionando outros dispositivos que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), como as Unidades de Saúde, da Atenção Primária, no sentido de atendimento médico clínico, com possibilidade de continuidade das prescrições médicas para os casos estáveis, evitando a interrupção dos tratamentos medicamentosos. Para os casos em que há necessidade de avaliações psiquiátricas e atenção em situações de crise, estamos buscando os encaminhamentos à rede hospitalar, a exemplo do Hospital Crescêncio Silveira ou à assistência ambulatorial, por meio do Ambulatório de Saúde Mental do município. Somamos esforços na produção de um cuidado em rede, mas é importante ressaltar que são dispositivos que também já operam com sobrecarga de demanda e todas essas ações não esgotam a necessidade da garantia de condições efetivas de atendimento, pelo Poder Público municipal.
CR: Qual a importância da luta da categoria para manter o funcionamento da rede?
Joísa Ramalho: São os trabalhadores que estão efetivamente na oferta de cuidado cotidiana com os usuários e seus familiares. Na Saúde Mental atuamos com formação de vínculo, então é muito notório o empenho e comprometimento das equipes para a defesa de serviços de qualidade e para a garantia de direitos ao nosso público. Nesse sentido, maturar essa consciência de identidade de grupo enquanto técnicos de Saúde Mental, compreendendo o sentido maior, que se ampara nos pressupostos da Reforma Psiquiátrica, da Luta Antimanicomial e da própria defesa do SUS, proporciona a construção de caminhos de luta mais consistentes.
CR: Alguma das reivindicações feitas pelo movimento já foi atendida pela prefeitura?
Joísa Ramalho: Já tivemos notícias de reparos estruturais no CAPS IA, o que é importante, mas ainda representa ação muito pontual diante da gravidade das questões. Nesse sentido, salientamos que entregamos um relatório técnico à Secretaria de Saúde e à Prefeita, no dia 17 de maio e até o momento não recebemos qualquer resposta oficial.
CR: Quais os próximos passos do movimento caso as demandas solicitadas não sejam atendidas?
Joísa Ramalho: Nessa segunda-feira, 30 de maio, participamos de uma audiência pública, na Câmara de Vereadores, para discussão da Saúde Mental no município, promovida pela vereadora Viviane Sampaio, presidente da Comissão de Saúde no Legislativo municipal. Além dos trabalhadores, participaram usuários, familiares, Defensoria Pública, OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, Hospital Crescêncio Silveira, Coordenação de Saúde Mental e Conselho de Saúde. Esperávamos um momento para manifestações do Poder Executivo acerca das nossas demandas, mas a única representante da gestão foi a coordenadora de Saúde Mental, que inclusive declarou apoio às reivindicações apresentadas pelas equipes da Rede CAPS, não havendo, contudo, uma resposta efetiva da Secretaria de Saúde ou da Prefeita ao documento encaminhado. Na oportunidade, a coordenadora informou seleção pública, com a destinação de 13 profissionais para a Saúde Mental, quantitativo aquém às nossas necessidades e que se refere apenas a uma das inúmeras questões apresentadas no relatório técnico produzido pelas equipes. Ainda estamos aguardando posicionamento frente à nossa solicitação de pauta para diálogo, negociação e urgente deliberação das demandas apresentadas. Só a partir de então, discutiremos coletivamente os novos posicionamentos. Ressaltamos que nossas reivindicações são justas, legítimas, urgentes e de extremo interesse para a comunidade, sobretudo no atual período pandêmico, em que enfrentamos um significativo aumento dos casos de sofrimento mental.
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