sábado, 23 de março de 2013



O QUE É BIOPODER? 

"O biopoder, dentro da narrativa do poder em Foucault, pode ser apresentado a partir da comparação com o poder soberano. Dessa maneira, a “velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano” será agora recoberta pela “administração dos corpos [poder disciplinar] e pela gestão calculista da vida [biopoder]” (FOUCAULT, 2007b, p. 152). Nesse cenário, pois, o fato de viver, ou seja, a vida não representará mais esse lugar inacessível e veremos que o biológico passa a ocupar um lugar central na problemática política. Não mais sobre a ameaça de morte veremos o exercício de poder alicerçado, como é o exemplo do poder soberano. Veremos erguer-se o império do biopoder sobre uma instrumentalidade que se encarrega não da morte, mas que se ocupa de conhecer, organizar e controlar a vida.

A análise de Ana Paula Repolês Torres, que toma como ponto de partida o caráter positivo do poder (como produção), em complementação à função negativa (como repressão), sintetiza o itinerário no qual se verifica a articulação entre as características positivas do poder disciplinar (tornar os corpos dóceis e úteis) e do biopoder (como estratégia de governo de uma população). Senão, vejamos:

[...] Foucault passa a considerar o poder como algo positivo, na medida em que o mesmo age sobre indivíduos livres que possuem um poder de transformação, indivíduos que se deixam incitar, seduzir, persuadir, intervindo sobre os corpos de modo a maximizar suas possibilidades, seja por meio da formação do sujeito como individualidade, o que se dá através da sujeição, da formação do homem-máquina pelos mecanismos disciplinares, utilizando-se técnicas de controle detalhado e minucioso que, articuladas a um saber, visam tornar os corpos dóceis e úteis; seja por meio do governo de uma população, da “governamentabilidade”, enfatizando-se aqui a preservação do homem enquanto espécie, ou seja, a ação do governo passa a ser sobre uma pluralidade, entendida esta enquanto massa global, e a intervenção [sic] volta-se para o controle das regularidades, dos nascimentos, das mortes, das epidemias [...]. (TORRES, 2007)

Enquanto o poder disciplinar, como referimos, teve papel fundamental – levando-se em conta o foco sobre o corpo do louco, do delinqüente, da criança aprendiz – para essa tarefa de isolamento e individualização; o biopoder dirigirá seus cuidados aos fenômenos ligados à população, à espécie humana vista como conjunto. O intuito desse cuidado é caracterizado pela pretensão de regulação não mais do gesto que o corpo do indivíduo deve produzir, mas sobre questões como a do nascimento, da mortalidade, a duração (a média do tempo) de vida das populações, enfim: aos fenômenos coletivos mais relevantes para assegurar a existência, a manutenção, a saúde desse corpo social. Isso não significa, contudo, uma substituição ou desativação do poder disciplinar.

O biopoder é uma instrumentalidade que se soma à disciplina, havendo algo como uma sobreposição, uma complementação de táticas. Como nos lembra Machado, a tematização do Estado adquire, a partir de então, uma importância que não existia em Foucault e, por conseguinte, abriu campo para as investigações que se debruçariam sobre práticas de gestão de governo ou aquilo que o filósofo francês denominou “governamentalidade”. Essa análise identificará que a governamentalidade tem como objeto de conhecimento a população, como saber mais relevante a economia e como mecanismo básico de atuação os “dispositivos de segurança”. Em se traçando um novo paralelo com as ciências humanas, levando em conta a forma do biopoder, abre-se espaço para vislumbrar o seguinte:

Se as ciências humanas têm como condição de possibilidade política a disciplina, o momento atual da análise [genealógica de Foucault] parece sugerir que o ‘bio-poder’, a ‘regulação’, os ‘dispositivos de segurança’ estão na origem de ciências sociais como a estatística, a demografia, a economia, a geografia, etc. (MACHADO, 2007, p. XXII-XXIII)

No primeiro volume de História da Sexualidade, bem como em Vigiar e Punir, podemos observar que o desenvolvimento e a proliferação das diversas categorias de anomalias no interior do corpo social – poderíamos pensar na figura do delinqüente aqui – estão relacionadas (e isso é fundamental!) às tecnologias de poder e saber, que delas não só deveriam se ocupar, como, mais importante, eliminar. Em outros termos, podemos dizer que a “expansão da normalização funciona através da criação de anormalidades que ele deve então tratar e reformar. Ao identificar cientificamente as anomalias, as tecnologias do biopoder estão na posição perfeita para supervisioná-las e administrá-las” (DREYFUS e RABINOW, 1995, p. 214). Há um deslocamento onde se emprende o movimento que leva uma questão – permaneçamos no caso do crime e do criminoso – afeta ao campo do discurso político para o campo da linguagem neutra da ciência, alcançando o lugar da problemática técnica e, conseqüentemente, o domínio de intervenção do especialista (DREYFUS e RABINOW, 1995, p. 214).

O biopoder, assim, pode expandir seus domínios sob o slogan da saúde – tornar as pessoas saudáveis –, da proteção, da securitização da vida (a arte de calcular, prever os riscos e os acidentes). De um possível fracasso, importante lembrar, na efetivação desses objetivos de segurança, de proteção da vida, não decorre um destituição de ingerência, um obstáculo ao exercício de controles sobre a população. Tal fracasso poderia sim representar “uma prova da necessidade de reforçar e estender o poder dos especialistas”, de sua intervenção, ou seja, talvez o campo de sua discricionariedade não tenha sido razoável, suficiente à prevenção dos riscos que afligem o corpo social. Em suma: havia “a promessa da normalização e da felicidade através da ciência e da lei. Seu fracasso justificava a necessidade de reforçá-las” (DREYFUS e RABINOW, 1995, p. 215)."
(...)
Tiago Cardoso in A arte de governar na filosofia de Michel Foucault



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