sexta-feira, 31 de maio de 2013

VIRGINIANAS

"...Mas como ser feliz num mundo que rebenta de miséria? Em cada cartaz de cada esquina o que se estampa é a morte;ou, pior, a tirania;a brutalidade; a tortura; a derrocada da civilização;o fim da liberdade. Nós aqui, pensou, apenas nos abrigamos debaixo de uma folha, uma folha que será destruída. E Eleanor pretende que o mundo melhorou, só porque duas pessoas, dentre todos os milhões, são "felizes". Tinha os olhos postados no chão fixamente. Estava vazio agora, salvo por um fiapo de musselina rasgado de alguma saia. Por que observo assim as menores coisas?- pensou. Mudou de posição. Por que tenho de pensar? Quisera não pensar. Quisera ter cortinas na mente, como as dos vagões- leitos de estrada de ferro, cortinas que baixam interceptam a luz; as cortinas azuis que a gente puxa nas viagens noturnas. Quisera ter o falcão da mente encapuzado, deixar de pensar, pois pensar é um tormento, e apenas vogar, vogar à deriva e sonhar..."

Virginia Woolf

SALTIMBANCOS


A INDÚSTRIA DA TRISTEZA

(...) As depressões são bem mais do que “transtornos do humor”, tanto referidas ao  quadro clínico quanto à origem (etiologia). A não consideração da vivência do paciente é uma das raízes do problema. Mas não só. Há que registrar, entre outros fatores,o interesse da indústria farmacêutica  nos quadros  nosológicos tidos  como de “alteração  do humor”, já que este deve  ser  normalizado com remédios.  
(...)
A.M.

FRANCISCO DE GOYA


quinta-feira, 30 de maio de 2013

O INFERNO AQUI MESMO

"Caí em meu patético período de desligamento. Muitas vezes, diante de seres humanos bons e maus igualmente, meus sentidos simplesmente se desligam, se cansam, eu desisto. Sou educado. Balanço a cabeça. Finjo entender, porque não quero magoar ninguém. Este é o único ponto fraco que tem me levado à maioria das encrencas. Tentando ser bom com os outros, muitas vezes tenho a alma reduzida a uma espécie de pasta espiritual. Deixa pra lá. Meu cérebro se tranca. Eu escuto. Eu respondo. E eles são broncos demais para perceber que não estou mais ali".

Charles Bukowski

DAVID SANBORN - Chicago Song


NOTA DE PESAR

Registro o falecimento do psiquiatra baiano ROBERTO MIGUEL CORREIA DA SILVA ocorrido no último dia 26 de maio. Trata-se de uma grande perda, sobretudo, para os seus pacientes e para seus alunos. Meu mestre, Roberto foi um psiquiatra profundamente comprometido com a ÉTICA e com a CLÍNICA. A psiquiatria ficou  menos inteligente.

A.M.
A PRODUÇÃO DA DOENÇA

A partir do final de maio, estará disponível a quinta e última versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). É de esperar que, a partir de agora, um importante debate a respeito da maneira com que as distinções entre normal e patológico foram modificadas chegue à opinião pública.

Utilizado de maneira cada vez mais extensiva como padrão de reflexão sobre a natureza do sofrimento psíquico, o DSM está longe de ter o fundamento científico e isento que ele gostaria de nos fazer acreditar. Influências de toda ordem entram em cena. Afinal, cada novo transtorno é promessa de novos investimentos bilionários da indústria farmacêutica, assim como garantia do aparecimento certo de verdadeiras epidemias visíveis do dia para a noite graças à divulgação maciça pela imprensa mundial e suas matérias de saúde.

Talvez isso explique ao menos um pouco essa verdadeira tendência de "patologização da vida cotidiana" levada a cabo pelo DSM-5, que elevou o número de patologias mentais a 450 categorias diagnósticas. Elas eram 265 no DSM-3, lançado em 1980, e 182 no DSM-2 (de 1968).

De fato, com modificações como as que diminui o luto patológico de dois meses para 15 dias ou que cria categorias bisonhas como o transtorno disruptivo de desregulação de humor, o vício comportamental (behavioral addiction) ou o transtorno generalizado de ansiedade, dificilmente alguém que passa por conflitos psíquicos e períodos de incerteza entrará em um consultório psiquiátrico sem um diagnóstico e uma receita médica.

Por trás desta estratégia clínica, com sua negação de perspectivas etiológicas, há a tentativa equivocada de transformar toda experiência de sofrimento em uma patologia a ser tratada. Mas uma vida na qual todo sofrimento é sintoma a ser extirpado é uma vida dependente de maneira compulsiva da voz segura do especialista, restrita a um padrão de normalidade que não é outra coisa que a internalização desesperada de uma normatividade disciplinar decidida em laborató- rio. Ou seja, uma vida cada vez mais enfraquecida e incapaz de lidar com conflitos, contradições e reconfigurações necessárias.

Há de se perguntar se tal enfraquecimento não será, ao final, o resultado social destas modificações no campo da saúde mental patrocinadas pelo DSM. Pois uma coisa é certa: há muito o que questionar na eficácia de tais sobrediagnósticos. Basta lembrar como houve, de 2000 a 2009, um aumento de 60% no consumo de antidepressivos nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Nada indica que a taxa de depressão tenha diminuído.

Vladimir Safatle
MORRER, VERBO INFINITIVO

" Morrer pertence à vida, assim como nascer. Para andar, primeiro levantamos o pé e, depois, o baixamos ao chão (...) Algum dia saberemos que a morte não pode roubar nada do que nossa alma tiver conquistado, porque suas conquistas se identificam com a própria vida."

Rabindranath Tagore

FÉLIX GUATTARI

O pensador da transversalidade

JOGAR OS DADOS

"Precisamos revolver nossos monstros secretos, nossas feridas clandestinas, nossa insanidade oculta. Não podemos nunca esquecer que os sonhos, a motivação, o desejo de ser livre nos ajudam a superar esses monstros, vencê-los e utilizá-los como servos da nossa inteligência. Não tenha medo da dor, tenha medo de não enfrentá-la, criticá-la, usá-la".

Michel Foucault

E.T. (o filme) - Fuga nas bicicletas


TRAIR A PSIQUIATRIA

(...) Propomos um descentramento radical em relação à medicina psiquiátrica. Desse modo, a  “loucura” torna-se um objeto de pesquisa exatamente porque ela não é um objeto  médico, não faz parte do universo médico.Começamos por defini-la   em meio a  todas as  dificuldades práticas e epistemológicas em torno. Loucura é a experiência do sem-sentido, que se expressa como sentido. 
(...)
A.M.
Do sangue de todos nós

"Mulheres são como maçãs em árvores.
As melhores estão no topo.
Os homens não querem alcançar essas boas, porque eles têm medo de cair e se machucar. Preferem pegar as maçãs podres que ficam no chão,
que não são boas como as do topo,
mas são fáceis de se conseguir.

Assim as maçãs no topo pensam que algo está errado com elas,
quando na verdade, eles estão errados...

Elas têm que esperar um pouco para o homem certo chegar,
aquele que é valente o bastante para escalar até o topo da árvore."

Machado de Assis

VLADIMIR VOLEGOV


quarta-feira, 29 de maio de 2013

O INCONSCIENTE  PRODUZ  REALIDADES

Não negamos que haja uma sexualidade edipiana, uma heterossexualidade e uma homossexualidade edipianas, uma castração edipiana - objetos completos, imagens globais e egos específicos. Negamos que sejam produções do inconsciente. Mais ainda, a castração e a edipianização engendram uma ilusão fundamental que nos faz crer que a produção desejante real é passível das mais altas formações que a integram, submetem-na a leis transcendentes e fazem-na servir a uma espécie de 'descolamento' do campo social em relação á produção do desejo, em nome de que todas as resignações são justificadas por antecipação (...)

G. Deleuze e F. Guattari - do livro O anti-édipo
DSM - 5: O QUE É ISSO?

O Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH), principal financiador de pesquisas na área do país, abandonou oficialmente o DSM-5 (o novo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais), apenas duas semanas antes do seu lançamento.
Segundo comunicado escrito por seu presidente Thomas Inse e publicado no site do Instituto (http://migre.me/eoT9G), o NIMH irá "re-orientar sua pesquisa para longe de categorias do DSM. Daqui para frente iremos apoiar projetos de pesquisa que olhem além das categorias atuais - ou que subdividam as categorias atuais - para que se comece a desenvolver um sistema melhor".
O texto critica a validade do DSM-5 e afirma: "Pacientes com transtornos mentais merecem algo melhor".
Como afirma o blog Mind Hacks, esta atitude do NIMH é potencialmente sísmica e abala fortemente o poder da Associação Psiquiátrica Americana e do DSM-5. 
(...)
Felipe Stephan  

JOÃO DONATO E GILBERTO GIL - A Paz



Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não soube
e digo da palavra: não digo (não posso ainda acreditar na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto.

Ana Cristina Cesar

terça-feira, 28 de maio de 2013

GILLES DELEUZE - "V" de Viagem



O Analfabeto Político

O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.

Bertolt Brecht


A FRAUDE LEGAL NA MEDICINA

(...)  As pesquisas neuro-científicas produziram um cérebro-mente, o que se reflete no uso continuado  de  remédios e associações medicamentosas. É óbvio  que o fármaco atua no sintoma, não mais que no sintoma. Contudo,  isso não significa  obter uma cura ou  sequer uma melhora. A somatória dos sintomas leva o médico à conexão simples sintoma-fármaco. Daí o ato de medicar percorrer um roteiro implícito. Ora, é muito raro  que o paciente apresente apenas um sintoma. Então  valeria a equação “vários sintomas = vários fármacos”? Não faltam  psicofármacos  para  embasá-la, ao contrário. O paciente vai sendo rostificado como um “ser-que-demanda-remédio”,  produzindo a psiquiatria e o psiquiatra num circuito de realimentação continua. A máquina se fecha: uma produção/produto/produção tecnicamente monitorada é o trabalho do psiquiatra   clínico, o qual pode até ser valorizado como ação visando  o bem do paciente. Isso não impede  que se considere o circuito do fármaco  danoso à pesquisa sobre a loucura. 
(...)
A.M.


Que o teu saber não humilhe o teu próximo.
Cuidado, não deixes que a ira te domine.
Se esperas a paz, sorri ao destino que te fere;
não firas ninguém.

Omar Kayyam

MARÍLIA CHARTUNE



VERÍSSIMAS


(..) O casamento foi a maneira que a humanidade encontrou de propagar a espécie sem causar faltório na vizinhança. As tradições matrimoniais se transformaram através dos tempos e variam de cultura para cultura. Em certas sociedades primitivas o tempo gasto nas preliminares do casamento - corte, namoro, noivado, etc...- era abreviado. O macho escolhia uma fêmea, batia com um tacape na sua cabeça e a arrastava para sua caverna. Com o passar do tempo este método foi abandonado , por pressão dos buffets, das lojas de presente e das mulheres, que não admitiam um período pré-conjugal tão curto. O homem precisava aproximar-se dela, cheirar seus cabelos, grunhir no seu ouvido, mordiscar a sua orelha e só então, quando ela estivesse distraída, bater com o tacape na sua cabeça e arrastá-la para a caverna.
(...)

Luís Fernando Veríssimo

segunda-feira, 27 de maio de 2013

AKIRA KUROSAWA - Sonhos - Vincent Van Gogh


PERCEPÇÃO DE ESQUERDA

"No momento, nosso mundo de humanos é baseado no sofrimento e na destruição de milhões de não-humanos. Aperceber-se disso e fazer algo para mudar essa situação por meios pessoais e públicos, requer uma mudança de percepção, equivalente a uma conversão religiosa. Nada poderá jamais ser visto da mesma maneira, pois uma vez reconhecido o terror e a dor de outras espécies, você irá, a menos que resista à conversão, ter consciência das permutações de sofrimento interminável em que se apóia a nossa sociedade."

Arthur Conan Doyle

domingo, 26 de maio de 2013

sábado, 25 de maio de 2013

PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE: MAIS, AINDA


Crianças que fazem muita birra sofrem de um distúrbio psiquiátrico recentemente descoberto, a chamada “desregulação do temperamento com disforia”. Adolescentes que apresentam de forma particular comportamentos extravagantes podem sofrer da “síndrome de risco psicótico”. Homens e mulheres que demonstram muito interesse por sexo, quer dizer, aqueles que têm fantasias, impulsos e comportamentos sexuais acima da temperança recomendada, muito provavelmente padecem do distúrbio psiquiátrico chamado “desordem hipersexual”. 
Essas são algumas das várias novidades que estão sendo propostas pela Associação Americana de Psiquiatria (conhecida internacionalmente como APA), para suceder o DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), em vigor desde 1994.  Há outras novidades que vem chamando a atenção de todos. Por exemplo, a “dependência à internet” e a “dependência a shopping”.  
O que o DSM representa? Não apenas para a saúde pública propriamente dita, mas para a própria construção da subjetividade e intersubjetividade do homem contemporâneo?  A medicalização crescente do nosso cotidiano. 
Apenas para se ter uma ideia da chamada “inflação” dos distúrbios considerados objeto da psiquiatria: há cinquenta anos atrás eram seis as categorias de diagnóstico psiquiátrico, e hoje são mais de trezentas. 
Nas últimas décadas o DSM tem servido como a bíblia para a chamada psiquiatria moderna e para os saberes e práticas subordinadas à sua hegemonia. Os autores de suas sucessivas edições argumentam suas pretensões são: (1) Fornecer uma “linguagem comum” para os clínicos; (2) Servir de “ferramenta” para os pesquisadores; (3) Ser uma “ponte” para a interface clínica/pesquisa; (4) Ser o “livro de referência” em saúde mental para professores e estudantes; (5) Disponibilizar o “código estatístico” para propósitos de pagamento dos serviços prestados e para fins administrativos do sistema de saúde; e, finalmente, (6) orientar “procedimentos forenses”.  
Os impactos provocados por cada edição do DSM são inúmeros. Bem próximo de nós, está aí o exemplo da pesquisa da OMS sobre a saúde mental dos moradores da Metrópole de São Paulo. Segundo os resultados dessa pesquisa, cerca de 1/3 da sua população sofre de algum distúrbio psiquiátrico. A grande imprensa nacional tomou tal pesquisa para alertar à população que a situação do sistema de assistência em saúde mental do país está muito aquém das demandas dos cidadãos, muito em particular o SUS.  E que sendo São Paulo uma megalópole de um país com tendências à urbanização acelerada, o seu exemplo deve ser considerado como alarmante. 
O que escapa à maioria das pessoas que receberam essa notícia pela grande mídia são detalhes de grande importância para a credibilidade da própria pesquisa. Quem financiou essa pesquisa? Além da FAPESP (Fundação de Amparo a Pesquisa de São Paulo), entre outros órgãos públicos, como a própria OMS e a OPAS? Foram grandes conglomerados da indústria farmacêutica: Ortho-McNeil Pharmaceutical, a GlaxoSmithKline, Bristol-Meyers Squibb e Shire. Curiosamente, os autores declaram não haver conflito de interesses. Se isto não é conflito de interesses então é necessário revisar este conceito!
O DSM-V chega sendo objeto de grandes controvérsias. Basta uma consulta na Internet para se tomar conhecimento das contundentes críticas feitas por alguns dos principais autores do DSM-III e DSM-IV.  O que o DSM-V vem reforçar ao DSM-IV? Parece ser a tendência à medicalização dos comportamentos humanos de nossa época, ao transformá-los em patológicos em seus mínimos detalhes. Nos termos que vem se tornando públicos, o DSM-V reforça a tendência a assegurar e a ampliar o mercado da saúde mental: 1) o consumo arbitrário de medicamentos de natureza psicotrópica, sem qualquer cuidado com os seus efeitos sobre a própria saúde de seus consumidores; (2) a expansão de serviços de diagnóstico e de consultas; (3) a medicalização da vida.
Na medida em que o modelo “a-teórico” (como ele mesmo se define) do DSM nos possibilita constatar, principalmente a partir desta sua quinta versão, que seu objetivo real não é lançar luz sobre o conhecimento dos sofrimentos mentais, e sim produzir mais mercado para as intervenções psiquiátricas,  cumpre à sociedade recusar este projeto medicalizante/patologizante. As entidades de saúde, particularmente as médicas, os Conselhos de Saúde e de Direitos Humanos, os órgãos públicos de normalização, regulação, fiscalização (Ministério da Saúde, Ministério Público, Conselhos Profissionais, dentre outros) precisam se posicionar e cobrar a responsabilidade dos autores e multiplicadores de tais iniciativas.

Fernando Freitas- Diretor da Abrasme e Pesquisador do LAPS/Fiocruz
Paulo Amarante- Presidente da Abrasme, Diretor do Cebes e Pesquisador do LAPS/Fiocruz 

CHICO BUARQUE - Joana Francesa


sexta-feira, 24 de maio de 2013

EXPERIMENTE NO SEU CANTO

"Andava com mania de suicídio e com crises de depressão aguda; não suportava ajuntamentos perto de mim e, acima de tudo, não tolerava entrar em fila comprida pra esperar seja lá o que fosse. E é nisso que toda a sociedade está se transformando: em longas filas à espera de alguma coisa. Tentei me matar com gás e não consegui. Mas tinha outro problema. Levantar da cama. Sempre tive ódio disso. Vivia afirmando: "as duas maiores invenções da humanidade foram a cama e a bomba atômica; não saindo da primeira, a gente se salva, e, soltando a segunda, se acaba com tudo". Acharam que estava louco. Brincadeira de criança, é só disso que essa gente entende: brincadeira de criança - passam da placenta pro túmulo sem nem se abalar com este horror que é a vida.
Sim, eu odiava ter que me levantar da cama de manhã. Significava que a vida ia recomeçar e depois que se passa a noite inteira dormindo cria-se uma espécie de intimidade especial que fica muito mais dificíl de abrir mão. Sempre fui solitário. Você vai me desculpar, creio que não regulo bem da cabeça, mas a verdade é que, se não fosse por uma que outra trepadinha legal, não me faria a mínima diferença se todas as pessoas do mundo morressem. É, eu sei que isso não é uma atitude simpática. Mas ficaria todo refestelado aqui dentro do meu caracol. Afinal de contas, foram essas pessoas que me tornaram infeliz".

Charles Bukowski

BILLY HOLLIDAY - Strange Fruit Rare Live


SOBRE O DSM-5

(...) Há uma novidade mais interessante do que as doenças recém inventadas pela nova “Bíblia”. Seu lançamento vem marcado por uma controvérsia sem precedentes. Se sempre houve uma crítica contundente às edições anteriores, especialmente por parte de psicólogos e psicanalistas, a quinta edição tem sido atacada com mais ferocidade justamente por quem costumava não só defender o manual, como participar de sua elaboração. Alguns nomes reluzentes da psiquiatria americana estão, digamos, saltando do navio. Como não há cordeiros nesse campo, movido em parte pelos bilhões de dólares da indústria farmacêutica, é legítimo perguntar: perceberam que há abusos e estão fazendo uma “mea culpa” sincera antes que seja tarde, ou estão vendo que o navio está adernando e querem salvar o seu nome, ou trata-se de uma disputa interna de poder em que os participantes das edições anteriores foram derrotados por outro grupo, ou tudo isso junto e mais alguma coisa? 
(...)
Eliane Brum - in Acordei doente mental - Revista Época

CONFISSÕES

Em geral quando termino um livro encontro-me numa confusão de sentimentos, um misto de alegria, alívio e vaga tristeza. Relendo a obra
mais tarde, quase sempre penso ‘Não era bem isto o que queria dizer’.
(O escritor diante do espelho)

Erico Verissimo

quinta-feira, 23 de maio de 2013

WILLIAM TURNER



Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. 
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco. 
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos. 
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade

A CORRUPÇÃO NO BRASIL VAI ACABAR...



DEVIRES (*)

                                                          
O paciente vive  entristecido pela Grande Máquina. Sua alegria  foi aniquilada  em plena  vigília.  Do nada.   Ninguém assume  a  autoria dos pequenos  crimes.  Eles   são  administrados em nome da  paz  de espírito.  Ora, o   espírito  também caga.  Avise  aos últimos  palhaços  que  a    arte   foi  solapada em nome do ideal dos   homens  de branco.  Ao que  me consta, nada  mudou no sulco das  bocas. Elas falam rachando dentes.    Mastigam   auroras   nati-mortas.   Mas o   Rosto carrega  uma expressão justa, como negar? A  bondade natural dos  humanos.  Ó Lovecraft,  socorrei! Apenas uma   cidade  respirando um  arco-íris, manda por  favor...  Não falo por  mim. Por  mim, ó... Falo pelo que  não sou, falo  por  devires. Escutai   a  canção   do mundo... Você  dança?  O paciente sucumbe à  Ordem.  Por  favor, o senhor pode  me dizer  as  horas? Já vai  tarde o tempo dos  mestres, com todo  o  respeito.   Sonâmbulos da própria  dor,  como  falar  aos  que  não  falam? A  Grande Máquina é uma   pequena dose de benefícios a  curto e  médio   prazo. Ela  se  insinua na febre dos corredores infectos. Um susto, um sus.  Tudo é  contágio. Resistir à  morte,  querida, e fazer dessa vibração algo novo, será  possível? Talvez um devir-amante   imerso  em trepadas millerianas. Bicho,  perdoa  o jeito canino: o que  é necessário  para  viver por  viver?   Pacientes  são pacientes  demais.  Armaduras químicas, lições de casa, manuais de sobrevivência, coisas  simples, eles   são  normais. Eu queria um gosto de  sol  em você, em suas dores mais  intensas e  irremediáveis. Pena  que  a sombra dos quintais do passado  anuncie sessões de  tortura regadas à dinheiro. A entrega  é  às  oito. Todos estarão  lá, até o  chefe da  Facção Sinistra,  aquele  mesmo que  começou a seduzir  a multidão  com  truques de  falar  macio.  Não   tem jeito. Somos  inocentes radicais.

A.M.

(*) 1ª postagem - 23 de maio de 2011
ANIVERSÁRIO

Este blog completa hoje 2 anos de existência
a dizer que o cérebro MENTE
aos leitores e seguidores.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

"ACORDEI DOENTE MENTAL"

A poderosa American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria – APA) lançou neste final de semana a nova edição do que é conhecido como a “Bíblia da Psiquiatria”: o DSM-5. E, de imediato, virei doente mental. Não estou sozinha. Está cada vez mais difícil não se encaixar em uma ou várias doenças do manual. Se uma pesquisa já mostrou que quase metade dos adultos americanos tiveram pelo menos um transtorno psiquiátrico durante a vida, alguns críticos renomados desta quinta edição do manual têm afirmado que agora o número de pessoas com doenças mentais vai se multiplicar. E assim poderemos chegar a um impasse muito, mas muito fascinante, mas também muito perigoso: a psiquiatria conseguiria a façanha de transformar a “normalidade” em “anormalidade”. O “normal” seria ser “anormal”. 
A nova edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) exibe mais de 300 patologias, distribuídas por 947 páginas. Custa US$ 133,08 (com desconto) no anúncio de pré-venda no site da Amazon. Descobri que sou doente mental ao conhecer apenas algumas das novas modalidades, que tem sido apresentadas pela imprensa internacional. Tenho quase todas.
(...)
Eliane Brum in Revista Época, 20/05/2013

DANILO CAYMMI e DANIEL JOBIM O Bem e o Mal


INGLÓRIA


Professores municipais de SP fecham viaduto do Chá e mantêm greve

Professores da rede municipal de São Paulo bloquearam o viaduto do Chá, em frente à Prefeitura, no centro de São Paulo, desde às 14h desta terça-feira (21) e por volta das 17h seguiram em passeata em direção à Câmara dos Vereadores. Os docentes, ligados ao Sinpeem e à Aprofem - dois dos principais sindicatos da categoria -, votaram pela manutenção da greve iniciada dia 3 de maio.
Segundo as entidades sindicais, cerca de 6 mil professores participaram do ato. Enquanto os professores protestavam diante da Prefeitura, as liderenças de representação dos docentes se reuniram com os secretários de Educação e Relações Institucionais. Após duas horas de encontro, não houve acordo entre as partes.
(...)
Davi Laura, Estadão

terça-feira, 21 de maio de 2013


O AMOR E A LOUCURA

No amor tudo é mistério; as suas setas e a sua bolsa, a sua chama e a sua infância eterna.
Mas por que é cego o amor?
Aconteceu que num certo dia o Amor e a Loucura brincavam juntos. Nessa altura o amor ainda não era cego.
Entre eles emergiu um desentendimento qualquer. Solicitou então o Amor que se reunisse o conselho dos deuses, para tratarem desse assunto.
Mas a Loucura, na sua impaciência, deu-lhe uma pancada com tal violência que lhe privou da visão.
Vénus, mãe e mulher, pôs-se a clamar por vingança, aos gritos.
E diante de Júpiter, Némesis - a deusa da vingança - e de todos os juízes do Inferno, Vénus exigiu que aquele crime fosse reparado. O seu filho não podia ficar cego.
Depois de estudar com bastante detalhe o caso, a sentença do supremo tribunal celeste consistiu em condenar a Loucura a servir de guia ao Amor.

Jean de La Fontaine

MARÍLIA CHARTUNE



ENCONTRO

"Deu a mão a Olívia para a ajudar a erguer-se. Ao contacto daquela epiderme quente, teve um estremecimento agradável. E quando, lado a lado, desceram as escadas devagar, ele sentiu como nunca que estava perto de um ser humano, de alguém que era, que existia, de maneira profunda, integral, que não constituía apenas uma soma de vaidades, de atitudes, de desejos de parecer".

Érico Veríssimo

segunda-feira, 20 de maio de 2013


SEM-CONSCIÊNCIA

(...)  Extraindo consequências do pensamento de Bergson, a consciência não apenas é uma  tela, mas também uma tela opaca e frágil. Ajuda a sustentar os comportamentos padronizados do cotidiano, a recitar identidades, a estabelecer pautas mínimas de comunicação  interpessoal,  mas, nos termos de uma  pensamento da imanência,  não responde  pelo devir,nem pela  questão da  luz,  da matéria e do movimento. Limita-se a nos proteger do caos, instilando opiniões para um  equilíbrio mental acerca da realidade do mundo, mas esconde linhas de vida indizíveis e/ou  que buscam se expressar. Enfim, é uma espécie de entrave operacional e conceitual a uma clínica   dos processos de singularização (do Encontro), onde e quando a produtividade do desejo segue  caminhos  imprevisíveis.
(...)
A.M.

domingo, 19 de maio de 2013

FRANK SINATRA (em estúdio) com THE QUINCY JONES BIG BAND - Mack The Knife



Quando ouvi o astrônomo erudito

Quando ouvi o astrônomo erudito,
Quando as provas, os números foram enfileirados diante de mim,
Quando me foram mostrados os mapas e diagramas a somar, dividir e medir,
Quando, sentado, ouvia o astrônomo muito aplaudido, na sala de conferências,
Senti-me logo inexplicavelmente cansado e enfermo,
Até que me levantei e saí, parecendo sem rumo
No ar úmido e místico da noite, e repetidas vezes
Olhei em perfeito silêncio para as estrelas.

Walt Whitman

CAIR FORA

"Se algo insiste em não estar bom pra você, não insista mais. Pegue seu boné e “on the road”. Sempre haverá outras pessoas, outros lugares, outros trabalhos, outras paixões que parecerão pra vida toda, outros projetos… Melhores, piores ou simplesmente diferentes daqueles aos quais você se acostumou".

Jorge Luís Borges

JORGE BEN & MANO BROWN - Umbabarauma



SOBRE DROGAS

"Nada me irrita mais do que a demonização das drogas. Ultimamente, todos  sabidos e ignorantes dizem o que podem e não sabem sobre o crack.  Já vi isto com a maconha e ácido (LSD).  Já li sobre balas distribuídas em portas de escolas, capazes de enlouquecer crianças e adolescentes. Nada disto era verdade. Agora, atribui-se ao crack as mazelas de pobres e menos pobres quando, na verdade, dever-se-ia evidenciar o enfraquecimento de nossos laços sociais e de nossos compromissos, oriundos da reflexão ética e tornados moris, isto é, moral, conduta, orientação a seguir.
Demonizar para esconder nossa incapacidade de enfrentamento da realidade, demonizar para ganhar o apoio fácil de quem prefere não saber para fazer de conta que resolve, pelo sintoma, em lugar de cuidar das causas. As drogas, mesmo o crack, são produtos químicos sem alma: não falam, não pensam e não simbolizam. Isto é coisa de humanos. Drogas, isto não me interessa. Meu interesse é pelos humanos e suas vicissitudes. Por isso, nada me irrita mais do que a demonização enganosa".

Antonio Nery Filho - maio/2010 -do blog Drogas: isso lhe interessa?

A DOENÇA CHAMADA "HOMEM"

"Se naquele instante - refletiu Eugênio - caísse na Terra um habitante de Marte, havia de ficar embasbacado ao verificar que num dia tão maravilhosamente belo e macio, de sol tão dourado, os homens em sua maioria estavam metidos em escritórios, oficinas, fábricas... E se perguntasse a qualquer um deles: 'Homem, por que trabalhas com tanta fúria durante todas as horas de sol?' - ouviria esta resposta singular: 'Para ganhar a vida'. E no entanto a vida ali estava a se oferecer toda, numa gratuidade milagrosa. Os homens viviam tão ofuscados por desejos ambiciosos que nem sequer davam por ela. Nem com todas as conquistas da inteligência tinham descoberto um meio de trabalhar menos e viver mais. Agitavam-se na Terra e não se conheciam uns aos outros, não se amavam como deviam. A competição os transformava em inimigos. E havia muitos séculos, tinham crucificado um profeta que se esforçava por lhes mostrar que eles eram irmãos, apenas e sempre irmãos."

Erico Verissimo

QORPO SANTO

teatro-poesia para loucos


Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
[...]
Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo

Mario de Sá Carneiro

DESEJAR...


SOBRE AS DEPRESSÕES

(...) Acercar-se do fenômeno depressivo é tentar  definir o humor como  indefinível. Ora, se ele  não se presta a uma definição objetiva, exceto talvez  nos casos graves (psicoses), o acesso só será possível encontrando o paciente no seu mundo. As depressões são o corpo organizado como  totalidade, o corpo-organismo. Este  corpo está  dentro  do crono-tempo.  Isso coloca  os modos de subjetivação como modos de corporalização num meio dado. Então, corpo+tempo=circunstâncias  atuais. O organismo deprimido comporta todo  tipo de sintoma, psíquico ou somático.O delírio (sendo mais comum o “secundário”) pode estar  presente assim como manifestações clínicas como as da histeria conversiva e os antigamente chamados sintomas psicossomáticos. O essencial a reter dessas classificações é que há  uma desvitalização de base  nos processos subjetivos e  que se expressa nos órgãos. Pode ser qualquer um. O sistema  imunológico é atingido.
(...)
A.M.

ANTONIO NEGRI - Entrevista/2008 (trechos)


COMO LUTAR?

(...) Na esteira de Deleuze, um novo léxico se impõe às lutas: constituir mundos, onde não haja uma produção fixável ou mensurável o suficiente para o capitalismo expropriá-la. Isto significa, em primeiro lugar, desviar da perspectiva dualista, do tipo isto ou aquilo, para diversificar pautas de valores e direitos. Assim, a luta por direitos de gênero ou sexuais não deve orientar-se pelo dual homem/mulher, como no feminismo clássico, porém pela afirmação dos “mil sexos”. O movimento GLS vira LGBT e num piscar de olhos LGBTT, mas nem todas as letras do alfabeto poderão contemplar o campo dos possíveis. Do mesmo modo, a classe proletária do marxismo tradicional deve converter-se em “mil diferenças”, cada qual com seu universo de afetos e prioridades. Em vez do trabalho em equipe dos coletivos, trata-se agora da militância em rede, juntos e separados.
Isso não enfraquece a luta global? Não divide os esforços da militância, diante de um inimigo tão portentoso, tão monstruoso quanto o Capital? Justamente. Não. A força do capitalismo contemporâneo está em sua enorme capacidade de modulação. A sua monstruosidade consiste nessa multiplicação de modos de apreensão, de recodificar e reincorporar tudo aquilo que tenta se colocar além dele. Daí que dialético é sempre o capitalismo, para quem nada pode ficar de fora. Pensar e lutar dialeticamente, unificando um grande movimento da história, é já ter perdido a luta. Significa posicionar-se já dentro do mundo do inimigo.
(...)
Bruno Cava

DAVID HARVEY - Sobre a crise atual do capitalismo


sábado, 18 de maio de 2013

À SECO

não romantize a loucura,
não faça dela a explosão de  desejos
inconfessáveis.

não a use como objeto de teses acadêmicas,
mais-valia de prestígio
ou dinheiro.

tampouco  a renegue.

seja simples:
considere-a como  o acaso absoluto
o caos sensível
do mistério que nos ronda.

A.M.

DENIS NOLET



POLÍTICA DOS CORPOS NÃO SÓ ORGÂNICOS

(...) Para Deleuze e Guattari  os termos micropolítica, cartografia, esquizoanálise, estratoanálise, rizomática e pragmática são sinônimos e funcionam como platôs, zonas de intensidade contínua, isto é, linhas ligadas a determinadas dimensões de multiplicidades: linhas de fuga, círculos de convergência, cadeias moleculares, estratos, etc. A micropolítica não pretende devir uma ciência nem conhece a cientificidade ou a ideologia, mas apenas agenciamentos maquínicos de desejo e coletivos de enunciação. A micropolítica, antes de tudo, repousa sobre uma concepção singular do corpo e do desejo. Um corpo não se restringe a um organismo. Da mesma maneira, o espírito de um corpo não se reduz à alma do mesmo. O espírito não é melhor, porém é volátil, enquanto a alma é gravífica, centro de gravidade. Por conseguinte, não se trata do corpo da medicina ou do fitness, mas do corpo no sentido espinosista, nietzscheano. Isto é, por um lado, o corpo apreendido na sua capacidade de afetar e ser afetado, na sua dupla dimensão de atração e repulsão. Por outro lado, trata-se de um corpo entendido como uma relação entre forças ativas e reativas. Qualquer relação de forças é o que define um corpo: químico, biológico, social, político.
(...)
Rafael Estrada Mejia

SONHOS de KUROSAWA - Raposas



Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundíssimamente hipocondríaco, 
Este ambiente me causa repugnância... 
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia 
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas 
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los, 
E há-de deixar-me apenas os cabelos, 
Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto dos Anjos

MARINA e CAETANO - Fullgás



Prova do atraso


Em 1961, os EUA definiram a meta de enviar um homem à lua no prazo de dez anos. Cinquenta e dois anos depois, o governo brasileiro definiu a meta de alfabetizar suas crianças de oito anos até 2022.

Talvez nada demonstre mais o nosso atraso do que a diferença entre essas duas metas. E o governo comemora com fanfarras, ao invés de pedir desculpas pelo atraso do Brasil.

Nesta segunda década do século XXI, os países que desejam estar sintonizados com o futuro têm como metas, entre outras, a conquista do espaço, o entendimento das ciências biológicas, o desenvolvimento de técnicas nas telecomunicações, a implantação de sistemas industriais sintonizados com os avanços técnicos.

Fica impossível imaginar uma sociedade do conhecimento sem centros de pesquisa e um amplo sistema universitário com qualidade. Isto só é possível se a educação de base for de alta qualidade para todos. E isto é impossível sem a alfabetização universal e completa em idades precoces, que garantam não apenas o controle dos códigos alfabéticos, mas também leituração e domínio das bases da matemática.

Na economia do conhecimento, nenhuma sociedade pode deixar de desenvolver o potencial do cérebro de cada um de seus habitantes desde os primeiros anos, desde a alfabetização.

Mas não é isso o que vem acontecendo com o Brasil. Ao não fazer a universalização da educação completa o país tapa poços de conhecimento.

Igualmente atrasado é o caminho usado para enfrentar o problema da deseducação, com o velho truque publicitário: um pacto entre partes incapazes de levar a meta adiante. Imagine os EUA fazendo um pacto entre seus estados para ver qual deles chegaria à lua, ao invés de usar a NASA federal.

Se o Brasil deseja recuperar seu atraso, deve definir metas nacionais ambiciosas: todas as crianças na escola em horário integral, com professores muito bem preparados e dedicados, o que exige elevados salários, em escolas com os mais modernos equipamentos pedagógicos, em todo o território nacional, desde os mais ricos aos mais pobres municípios, atendendo igualmente as crianças mais ricas e as mais pobres.

Isto não se consegue por meio de pactos ilusórios, assinados sem qualquer compromisso real das partes, especialmente entre partes tão desiguais, que levam os pactos a parecer caricaturais.

A única maneira de recuperar os séculos perdidos no passado para dar o salto que o Brasil precisa no futuro é envolver diretamente a União na implantação de um novo sistema educacional para, ao longo de poucos anos, substituir o atual sistema estadual e municipal por um sistema federal.

Isto exige mais do que um pacto ilusório. Exige uma espécie de federalização da responsabilidade e da construção do novo sistema educacional.

O Brasil não dará o salto educacional, e sem este não haverá os outros, sem um governo federal que empolgue o país com a meta de, em 20 ou 30 anos, ter uma educação de qualidade comparável à dos países mais educados do mundo. Isto é possível e é preciso.

Cristovam Buarque

AMY WINEHOUSE - All my lovin



a ferida está com pus
a multidão
com o sus

A.M.

PIRANDELLIANAS

(...) Mas o problema é que você, meu caro, nunca saberá nem eu lhe poderei nunca dizer como se traduz, em mim, aquilo que você me disse. Não falou turco, não. Eu e você usamos a mesma língua, as mesmas palavras. Mas que culpa temos nós de que as palavras, em si, sejam vazias? Vazias, meu caro. Ao dizê-las a mim, você preenche-as com o seu sentido; e eu, ao recebê-las, inevitavelmente preencho-as com o meu sentido. Pensamos que nos entendíamos; de facto, não nos entendemos.
E conto velho também é o fato de o sabermos. Eu não pretendo dizer nada de novo. Apenas volto a perguntar-lhe: 
- Porque continua, então, a proceder como se não o soubesse? Porque continua a falar-me de si se sabe que para ser para mim como é para você mesmo e para eu ser, para si, como sou para mim, seria preciso que eu, dentro de mim, lhe desse a mesma realidade que você dá a si mesmo, e vice-versa, e isso não é possível?
(...)
Luigi Pirandello


"Nosso eu interior não é algo que se encontre. É algo que se cria".

Thomas Szasz

sexta-feira, 17 de maio de 2013


FAZER A DIFERENÇA

(..) O encontro de um terapeuta com o seu  paciente pode começar no “interior” de si mesmo, em meio a múltiplos “eus". Subjetivo e objetivo se tocam e se trocam... Entramos e estaremos a entrar numa terra de ninguém, inumana, cósmica, desconhecida, via sem retorno, mundo  de Lovecraft. Para fazer uma clínica da diferença, é preciso a não-clínica que com ela produza territórios subjetivos concretos. Do contrário, só com a equação clínica=patológico, o tratamento verá  o paciente como coisa, ainda que uma coisa valiosa. O Encontro  busca o lado ativo do infinito, o processo, enfim, das  relações  sociais e coletivas. 
(...)
A.M.

AMANHÃ É O DIA DA LUTA ANTI-MANICOMIAL



O OLHO DO POETA OBSCENO VENDO...

O olho do poeta obsceno vendo 
vê a superfície do mundo redondo
      com seus telhados bêbados 
      e pássaros de pau nos varais 
      e suas fêmeas e machos feitos de barro 
 com pernas em fogo e peitos em botão 
      em camas rolantes 
e suas árvores de mistérios
e seus parques de domingos no parque e 
estátuas sem fala 
e seus Estados Unidos
com suas cidades fantasmas e Ilhas Ellis vazias 
e sua paisagem surrealista de
               pradarias estúpidas 
               supermercados subúrbios 
               cemitérios com calefação 
               e catedrais que protestam 
um mundo à prova de beijo um mundo de 
 tampas de privada e táxis 
 caubóis de butique e virgens de Las Vegas 
 índios sem terra e madames loucas por cinema 
      senadores anti-romanos e conformistas
                                               conformados 
e todos os outros fragmentos desbotados 
do sonho imigrante real demais
   e disperso
      entre esse pessoal que toma banho de sol

Lawrence Ferlinghetti (tradução de P. Leminski)