Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
terça-feira, 30 de junho de 2015
segunda-feira, 29 de junho de 2015
SEM GRANDEZA
A felicidade real sempre parece bastante sórdida em comparação com as supercompensações do sofrimento. E, por certo, a estabilidade não é, nem de longe, tão espetacular como a instabilidade. E o fato de se estar satisfeito nada tem da fascinação de uma boa luta contra a desgraça, nada do pitoresco de um combate contra a tentação, ou de uma derrota fatal sob os golpes da paixão ou da dúvida. A felicidade nunca é grandiosa.
(...)
Aldous Huxley
domingo, 28 de junho de 2015
O FIO DA GNOSE
Trabalhar em saúde, e mais, em saúde mental, não deveria ser trabalhar para sobreviver (seja no público ou no privado, se bem que no público pagam-nos pelos impostos). Tampouco para enriquecer, amealhar patrimônios à luz do dia. Nada! Levo tudo isso mais a fundo e mais a sério. Nenhum assistencialismo ou cristianismo disfarçado. Me move tão só o trabalho em saúde por não saber o que é saúde , mais ainda por não saber o que é "saúde mental", mais ainda por não saber o que é"mente". É verdade! Ainda de nada sei, não me contaram, sou o mais ingênuo e isso me empurra na direção de um plano existencial sem rumos e papéis fixos: para onde vai quem e o que não sou? Dos tempos da psicanálise e do psicodrama, até hoje ficou o registro do Encontro, para o bem e para o mal, mas sempre e inevitavelmente o Encontro com pessoas, narrativas, seres, coisas, situações, cidades, escolas, grupos, climas, cheiros, visões, etc. Quando percebo que as paredes do consultório são perfuradas pelas balas da moral e da política, busco na hora do Encontro, tecer uma existência menos conforme o senso comum e mais do que nunca buscadora da ética como potência de viver e da estética como beleza de criar. Toda essa percepção amplificada não impede que eu desça às masmorras do meu próprio exílio, e, em seguida rodopie sobre o corpo liso do pensamento, alçando o átimo de um desejo de alegria que se espraia pelos quatro cantos da terra brasílica devastada e humilhada.
A.M.
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
Fernando Pessoa
UMA NOVA IMAGEM DO PENSAMENTO
Todos os homens são capazes de sonhar, supõe-se. Se acaso houver uma exceção, trata-se de um caso patológico, ou pelo menos de uma originalidade. Todos os homens são capazes de amar e de sofrer. Se acaso houver uma exceção, trata-se de um caso patológico, ou pelo menos de uma estranha originalidade. Quanto ao pensamento, não é tão certo, não é tão evidente, que todos os homens sejam capazes de pensar. Se acaso houver aqueles incapazes para o pensamento, não poderemos considerar uma exceção ou mesmo uma originalidade. Do mesmo modo, quase todos os homens são capazes de falar, e daqueles que não o conseguem, sabemos, – temos certeza -, trata-se de uma questão neurológica ou de uma questão histérica. Mas falar e pensar não são sinônimos; não são equivalentes, porque o ato de fala tem a função explícita de materializar as nossas opiniões. E, entre a opinião e o pensamento, a diferença é tão grande quanto o infinito. As opiniões, as nossas opiniões, associam-se às nossas percepções e às nossas afecções, e estas, percepções e afecções, são reguladas pelos nossos interesses e pelos nossos hábitos. Acrescentando-se, de imediato, que o pensamento não expressa hábitos ou interesses; e, até mais do que isto, o pensamento não é manifestação de sentimentos pessoais, de estados vividos; ou seja, nada tem a ver com a personalidade de cada um. O pensamento é como uma potência, uma força, no âmago de cada sujeito, de cada ser humano: mas inteiramente independente das propriedades do sujeito, do eu pessoal. É como se fosse possível dizer que o pensamento é uma terra estranha, um bosque, um pântano, numa geografia que nos constitui. Quando se fala de pensamento, distingue-se – é preciso distingui-lo -, de outras faculdades do sujeito humano, como o sonho, a percepção, o sentimento. O pensamento é impessoal, e, por ser impessoal, independe da vontade do pensador. Isto é: não começamos a pensar a partir da solicitação da nossa vontade; ou melhor, o ato de pensar não implica uma solicitação pessoal; mas implica a presença de forças de fora; forças que não pertencem ao próprio pensamento, forças que não pertencem ao pensador; forças externas, que forçam o pensamento a pensar. Estranha figura esta, que pressupõe alguma coisa que faz o pensamento pensar.
(...)
Claudio Ulpiano, extraído do site "Centro de Estudos Claudio Ulpiano"
Sofre, Juca Mulato, é tua sina, sofre…
Fechar ao mal de amor nossa alma adormecida
é dormir sem sonhar, é viver sem ter vida…
Ter, a um sonho de amor, o coração sujeito
é o mesmo que cravar uma faca no peito.
Esta vida é um punhal com dois gumes fatais:
não amar é sofrer; amar é sofrer mais!
Menotti del Picchia
INTENSIDADES
O verdadeiro estado amoroso supõe um estado de semiloucura correspondente, de obsessão, determinando uma desordem emocional que vai da mais intensa alegria até à mais cruciante dor, que dá entusiasmo e abatimento, que encoraja e entibia; que faz esperar e desesperar, isto tudo, quase a um tempo, sem que a causa mude de qualquer forma.
(...)
Lima Barreto
sábado, 27 de junho de 2015
TEOLOGIA
O deus dos cristãos, Deus da minha infância, não faz amor. Talvez o único deus que nunca fez amor, entre todos os deuses de todas as religiões da história humana. Cada vez que penso nisso, sinto pena dele. E então o perdôo por ter sido meu super-pai castigador, chefe de polícia do universo, e penso afinal que Deus também foi meu amigo naqueles velhos tempos, quando eu acreditava Nele e acreditava que Ele acreditava em mim. Então preparo a orelha, na hora dos rumores mágicos, entre o pôr-do-sol e o nascer e subir da noite, e acho que escuto suas melancólicas confidências.
(...)
Eduardo Galeano
DOBRAS DA POESIA
O corpo-sem-órgãos (CsO) é o corpo do desejo, o ritmo das intensidades fluidas, o processo esquizofrênico do tempo (repetição e diferença) e não a entidade "esquizofrenia". Neste último caso torna-se prática de vida ante um dualismo que fracassa: ser normal ou ser psicótico. Apesar disso, permanece ativo como coleção de linhas existenciais clandestinas (poéticas) e abstratas (sem forma), fluxos nômades, gritos, sensibilidades. São as máquinas do desejo, são o próprio modo de operar do pensamento, aquele que vive no e do caos. Atenção: não confundir pensamento com consciência. A subjetivação ( um crivo no caos) escapa do eu numa dessubjetivação incessante: quem não é louco? Nada está assegurado. Somos todos esquizos. Considere o seu próprio corpo. Ele é invenção de mundos feita de dobras insondáveis. Não o corpo do qual a medicina, papai-mamãe, a religião e a escola gostam. Este é o organismo capturável e manipulável à serviço do senso comum. Falamos de outra coisa, uma política das subjetividades movidas pelo non sense do desejo. E é Regis Bonvicino que diz "um poeta/perguntado/sobre política e políticos/respondeu/ não estou desinteressado/antes/eles é que são/desinteressantes".
A.M.
APROVEITE!
Como uma pessoa pode gostar de ser acordada diariamente pelo despertador às 6h30, pular da cama, se vestir rápido, comer depressa, cagar, mijar, escovar os dentes, pentear o cabelo, lutar contra um imenso engarrafamento para chegar a um lugar onde essencialmente se faz muito dinheiro para outra pessoa e ainda ter que agradecer por essa oportunidade?
(...)
Charles Bukowski
À SOMBRA DO MEDO EM FLOR
Dêem a chefia da portaria ao mais dócil empregado e logo ele se tornará um tirano
Já escrevi em algum lugar que, enquanto não nos revoltarmos contra o conceito de democracia que considera sagrado o direito de uma minoria escravizar o resto, jamais chegaremos à condição de seres humanos. Seremos sempre caricaturas, títeres perdidos na ventania, sempre com cara de desculpe, não era bem isso que eu queria dizer .
Enquanto não se der a revolução da humanidade contra a tirania, enquanto deixarmos que nos humilhem para que possamos continuar vivendo, teremos de suportar algumas imperfeições, certos espinhos colocados em nossos sapatos ainda na infância que não podemos ou não queremos tirar.
Uma dessas imperfeições é a constatação de que, à medida que envelhecemos, vamos nos tornando mais medrosos. Quando deveria acontecer o contrário: à medida que envelhece, o homem deveria tornar-se mais corajoso, porque mais sábio, mais justo, mais conhecedor dos seus deveres e direitos.
Quando eu tinha pouco mais de 20 anos, todos os dentes e era um sujeito bonito, era também dado a papagaiadas. Certa vez, ainda noivo (havia noivados e até virgens naquela época), estava no falecido Bar Castelinho, tomando um chope com minha futura mulher, quando um dos donos de uma revista para a qual eu escrevia sentou-se à nossa mesa e se comportou de forma grosseira.
Gentilmente, mandei que se retirasse, pois já tinha de aturá-lo o dia inteiro e não pretendia fazer isso quando estava namorando. Fui despedido no dia seguinte. Na hora, a sensação foi boa, mas eu era muito jovem para perceber que os rateios estavam contra mim.
Outra imperfeição: ser burro, viver e conhecer o mínimo do seu potencial energético interior e, além disso, ter de suportar a consciência da sua mortalidade. Algumas pessoas percebem isso, mas, como são ignorantes, aceitam o princípio nada otimista de que a vida é um absurdo porque acaba na morte e, como dizia Camus, o homem vive e não é feliz. Essa constatação é tão angustiante que, sem uma garrafa ao alcance da mão, é difícil resistir à tentação de não dar um tiro na têmpora.
Hoje em dia, em pleno século 21, a grande maioria de escravos aceita essa condição fingindo não saber dela, fingindo que a vida é assim mesmo. Uns entram com o pé e os outros com o popô, uns com o pescoço e os outros com a foice. Excetuando os psicopatas que, aparentemente, já nascem tortos, alguns poucos escravos se rebelam e saem fazendo bobagens: roubando, assaltando, matando, estuprando.
Quando isso acontece, todos ficam com cara de tacho, fingindo que não têm nada a ver com o peixe. Em seguida, os políticos pedem responsabilidade criminal aos 16 anos . Logo, pedirão responsabilidade aos 15, 14 e cosi via. Cosi via significa que aumentará o número de crianças assassinadas ao nascer; aceitação literal da loucura religiosa de que o homem já nasce pecador. Claro que essa lei só valerá para crianças pobres.
Sou contra a pena de morte, mas, como a tragédia, mesmo quando coletiva, é sempre individual, o que eu faria se matassem alguém indispensável à minha vida? E se alguém tirasse a vida de uma pessoa e, ao fazer isso, me deixasse aleijado interiormente pelos anos que me restam?
Como não acredito na Justiça e também não acredito que podemos julgar oficialmente os efeitos sem punir as causas, eu simplesmente mataria o assassino. E o faria pessoalmente, com as minhas mãos.
Em seguida, cidadão exemplar que sou, me entregaria ao juiz. Não teria resolvido nada, mas como sou humano em estágio ainda bárbaro, pelo menos isso atenuaria um pouco a minha dor.
Como vejo a coisa hoje? Dêem a chefia da portaria de um edifício ao mais dócil dos empregados e logo ele se tornará um tirano para agradar ao poder imediatamente acima dele.
O poder ama a si mesmo e aos poderosos. É tão implacável na sua injustiça que consegue convencer mais de 100 milhões de brasileiros adultos de que devem escolher entre o algoz da esquerda e o da direita. E nada acontece.
Fausto Wolff, última crônica, 05/09/2008
A TRANSFERÊNCIA
Ao confirmar que transferiu R$ 7,5 milhões do dinheiro roubado da Petrobras para a tesouraria da campanha presidencial de Dilma Rousseff em 2014, o empreiteiro Ricardo Pessoa transformou a presidente da República numa personagem irreconhecível —uma mistura de administradora ingênua com candidata distraída. Na presidência do Conselho de Administração da Petrobras, Dilma não viu a ação dos assaltantes. No palanque eleitoral, usufruiu do produto do roubo.
Consumado o constrangimento, o Planalto montou uma linha de defesa precária. Nesse enredo, a presidente continuará fazendo pose de aliada dos investigadores. Repetirá que a Lava Jato só avança porque os governos do PT criaram as condições. Tomará distância do caixa de sua campanha, mas ecoará o discurso de que o dinheiro da eleição foi 100% legal. E seus auxiliares cuidarão de relaçar que as construtoras enroladas doaram verbas também a candidatos da oposição.
Essa linha de defesa é frágil porque exige que a plateia aceite Dilma como uma cega atoleimada. E supõe que a Procuradoria, o STF o próprio TSE aceitarão passivamente a conversão da Justiça Eleitoral em lavanderia de verbas mal asseadas. Se tudo funcionar como planejado, Dilma chega ao final do mandato como uma presidente de desenho animado.
Às vezes parece faltar-lhe o chão. Mas Dilma continua caminhando no vazio. Se reconhecer que está pisando em nada, despencará. Acha que, simulando que não se deu conta, conseguirá atravessar o abismo. Torce para que ninguém estranhe nada e para que não lhe façam muitas perguntas. Só não pode olhar para baixo.
Blog do Josias de Souza,27/06/2015, 04:034 hs
sexta-feira, 26 de junho de 2015
A VIDA PROFISSIONAL
Os banqueiros da grande bancaria do mundo, que praticam o terrorismo do dinheiro, podem mais que os reis e os marechais e mais que o próprio Papa de Roma. Eles jamais sujam as mãos. Não matam ninguém: se limitam a aplaudir o espetáculo.
Seus funcionários, os tecnocratas internacionais, mandam em nossos países: eles não são presidentes, nem ministros, nem foram eleitos em nenhuma eleição, mas decidem o nível dos salários e do gasto público, os investimentos e desinvestimentos, os preços, os impostos, os lucros, os subsídios, a hora do nascer do sol e a freqüência das chuvas.
Não cuidam, em troca, dos cárceres, nem das câmaras de tormento, nem dos campos de concentração, nem dos centros de extermínio, embora nesses lugares ocorram as inevitáveis conseqüências de seus atos.
Os tecnocratas reivindicam o privilegio da irresponsabilidade:
— Somos neutros — dizem.
Eduardo Galeano
O FUNDO SEM FUNDO
Delator da UTC diz ter dado verba a 18 personagens, entre eles Lula e Dilma 90
A revista Veja veiculou em seu site notícia que traz a relação de 18 personagens a quem o delator Ricardo Pessoa, dono da Construtora UTC, diz ter repassado dinheiro. Coordenador do cartel de empreiteiras que desviou pelo menos R$ 6 bilhões dos cofres da Petrobras, Pessoa detalhou em cinco dias de depoimentos, em Brasília, como borrifou verbas nas caixas registradoras de campanhas políticas e como distribuiu propinas.
Segundo a notícia de Veja, que teve acesso aos termos da delação homologada pelo ministro Teori Zavascki, do STF, Pessoa disse ter usado dinheiro desviado da Petrobras para fazer doações às campanhas presidenciais de Lula (2006) e de Dilma Rousseff (2014). O delator citou o então tesoureiro do comitê de Dilma, Edinho Silva (PT), hoje ministro da Comunicação Social da Presidência.
A relação de supostos beneficiários dos repasses do delator inclui também o ministro Aloizio Mercandate (Casa Civil) o ex-ministro José Dirceu e políticos de oposição: Aloysio Nunes (PSDB-SP) e Julio Delgado (PSB-MG).
(...)
Blog do Josias de Souza,26/06/2015,18:59 hs
ILUSÃO DO EU
Eu sou vários! Há multidões em mim. Na mesa de minha alma sentam-se muitos, e eu sou todos eles. Há um velho, uma criança, um sábio, um tolo. Você nunca saberá com quem está sentado ou quanto tempo permanecerá com cada um de mim. Mas prometo que, se nos sentarmos à mesa, nesse ritual sagrado eu lhe entregarei ao menos um dos tantos que sou, e correrei os riscos de estarmos juntos no mesmo plano. Desde logo, evite ilusões: também tenho um lado mau, ruim, que tento manter preso e que quando se solta me envergonha. Não sou santo, nem exemplo, infelizmente. Entre tantos, um dia me descubro, um dia serei eu mesmo, definitivamente. Como já foi dito: ouse conquistar a ti mesmo.
Nietzsche
quinta-feira, 25 de junho de 2015
COR-RESPONDÊNCIA
Remeta-me
os dedos
em vez de cartas de amor
que nunca escreves
que nunca recebo.
Passeiam em mim estas tardes
que parecem repetir
o amor bem feito
que você tinha mania de fazer comigo.
Não sei amigo
se era seu jeito
ou de propósito
mas era bom
sempre bom
e assanhava as tardes
Refaça o verso
que mantinha sempre tesa
a minha rima
firme
confirme
o ardor dessas jorradas
de versos que nos bolinaram os dois
a dois
Pense em mim
e me visite no correio
de pombos onde a gente se confunde
Repito:
Se meta na minha vida
outra vez meta
Remeta.
Elisa Lucinda
CHEIROS
(...) Fico quieto. Primeiro que paixão deve ser coisa discreta, calada, centrada. Se você começa a espalhar aos sete ventos, crau, dá errado. Isso porque ao contar a gente tem a tendência a, digamos, “embonitar” a coisa, e portanto distanciar-se dela, apaixonando-se mais pelo supor-se apaixonado do que pelo objeto da paixão propriamente dito. Sei que é complicado, mas contar falsifica, é isso que quero dizer — e pensando mais longe, por isso mesmo literatura é sempre fraude. Quanto mais não-dita, melhor a paixão. Melhor, claro, em certo sentido que signifíca também o pior: as mais nobres paixões são também as mais cadelas, como aquelas que enlouqueceram Adele H., levaram Oscar Wilde para a prisão ou fizeram a divina Vera Fischer ser queimada feito Joana d’Arc por não ser uma funcionária pública exemplar.
(...) E se realmente gostarem? Se o toque do outro de repente for bom? Bom, a palavra é essa. Se o outro for bom para você. Se te der vontade de viver. Se o cheiro do suor do outro também for bom. Se todos os cheiros do corpo do outro forem bons. O pé, no fim do dia. A boca, de manhã cedo. Bons, normais, comuns. Coisa de gente. Cheiros íntimos, secretos. Ninguém mais saberia deles se não enfiasse o nariz lá dentro, a língua lá dentro, bem dentro, no fundo das carnes, no meio dos cheiros. E se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de amor? Quando você chega no mais íntimo, No tão íntimo, mas tão íntimo que de repente a palavra nojo não tem mais sentido. Você também tem cheiros. As pessoas têm cheiros, é natural. Os animais cheiram uns aos outros. No rabo. O que é que você queria? Rendas brancas imaculadas? Será que amor não começa quando nojo, higiene ou qualquer outra dessas palavrinhas, desculpe, você vai rir, qualquer uma dessas palavrinhas burguesas e cristãs não tiver mais nenhum sentido? Se tudo isso, se tocar no outro, se não só tolerar e aceitar a merda do outro, mas não dar importância a ela ou até gostar, porque de repente você até pode gostar, sem que isso seja necessariamente uma perversão, se tudo isso for o que chamam de amor. Amor no sentido de intimidade, de conhecimento muito, muito fundo. Da pobreza e também da nobreza do corpo do outro. Do teu próprio corpo que é igual, talvez tragicamente igual. O amor só acontece quando uma pessoa aceita que também é bicho. Se amor for a coragem de ser bicho. Se amor for a coragem da própria merda. E depois, um instante mais tarde, isso nem sequer será coragem nenhuma, porque deixou de ter importância. O que vale é ter conhecido o corpo de outra pessoa tão intimamente como você só conhece o seu próprio corpo. Porque então você se ama também.
(...)
Caio Fernando Abreu
OUVIR DIZER
(...) A linguagem não é a vida, ela dá ordens à vida; a vida
não fala, ela escuta e aguarda. Em toda palavra de ordem, mesmo de um pai
a seu filho, há uma pequena sentença de morte — um Veredito, dizia Kafka.
O difícil é precisar o estatuto e a extensão da palavra de ordem. Não se trata
de uma origem da linguagem, já que a palavra de ordem é apenas uma
função-linguagem, uma função coextensiva à linguagem. Se a linguagem
parece sempre supor a linguagem, se não se pode fixar um ponto de partida
não-lingüístico, é porque a linguagem não é estabelecida entre algo visto (ou
sentido) e algo dito, mas vai sempre de um dizer a um dizer. Não
acreditamos, a esse respeito, que a narrativa consista em comunicar o que se
viu, mas em transmitir o que se ouviu, o que um outro disse. Ouvir dizer.
Nem mesmo basta evocar uma visão deformante vinda da paixão. A
"primeira" linguagem, ou, antes, a primeira determinação que preenche a
linguagem, não é o tropo ou a metáfora, é o discurso indireto. A importância
que se quis dar à metáfora, à metonímia, revela-se desastrosa para o estudo
da linguagem. Metáforas e metonímias são apenas efeitos que só pertencem
à linguagem quando já supõem o discurso indireto. Existem muitas paixões
em uma paixão, e todos os tipos de voz em uma voz, todo um rumor,
glossolalia: isto porque todo discurso é indireto, e a translação própria à
linguagem é a do discurso indireto.
(...)
G. Deleuze e F. Guattari in Mil Platôs, vol.2
quarta-feira, 24 de junho de 2015
SAFENA
Sabe o que é um coração
amar ao máximo de seu sangue?
Bater até o auge de seu baticum?
Não, você não sabe de jeito nenhum.
Agora chega.
Reforma no meu peito!
Pedreiros, pintores, raspadores de mágoas
aproximem-se!
Rolos, rolas, tinta, tijolo
comecem a obra!
Por favor, mestre de Horas
Tempo, meu fiel carpinteiro
comece você primeiro passando verniz nos móveis
e vamos tudo de novo do novo começo.
Iansã, Oxum, Afrodite, Vênus e Nossa Senhora
apertem os cintos
Adeus ao sinto muito do meu jeito
Pitos ventres pernas
aticem as velas
que lá vou de novo na solteirice
exposta ao mar da mulatice
à honra das novas uniões
Vassouras, rodos, águas, flanelas e cercas
Protejam as beiras
lustrem as superfícies
aspirem os tapetes
Vai começar o banquete
de amar de novo
Gatos, heróis, artistas, príncipes e foliões
Façam todos suas inscrições.
Sim. Vestirei vermelho carmim escarlate
O homem que hoje me amar
Encontrará outro lá dentro.
Pois que o mate.
Elisa Lucinda
CETICISMO
Escrevi uma vez que era um cético que só acreditava no que pudesse tocar: não acreditava na Luiza Brunet, por exemplo. Cruzei com a Luiza Brunet num dos camarotes deste carnaval. Ela me cobrou a frase, e disse que eu podia tocá-la para me convencer da sua existência. Toquei-a. Não me convenci. Não pode existir mulher tão bonita e tão simpática ao mesmo tempo. Vou precisar de mais provas.
Luis Fernando Veríssimo
A SALVAÇÃO PELA ESPIRITUALIDADE
O conceito de "espiritualidade" infesta os tempos atuais. Buscando alcançar e desenvolver uma espécie de "lado bom" da natureza humana, e mais, justificá-lo em nome de transcendências desacreditadas e já fracassadas, ele trata do espírito, da alma, do eu, de deus, da consciência, de tudo que Nieztsche já dizia e repetia no século XIX, expondo o espectro mortífero do niilismo contemporâneo. No entanto, é próprio do funcionamento da máquina do capital o uso de antigos conceitos como se fossem novidades. Pode-se chamar isso arcaísmo, estratégia de pensamento que encontra amparo e conexão em linhas existenciais atreladas ao mundo da mercadoria. Mas não estabelecemos uma análise dialética grosseira para dizer que, por exemplo, o espírito não existe, só existe a matéria.Nada disso. O espírito existe sim, ele é prenhe de concretude porque é produzido como qualquer mercadoria em escala industrial.E se lembrarmos que há no planeta Terra 1 bilhão de famintos, esse dado se esfuma numa esperança espiritualista de que um dia isso acabará. As análises da FAO (Organização da Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) o confirmam.
A.M.
terça-feira, 23 de junho de 2015
SANTA ODEBRECHT
É grande a aposta no meio político e até no mercado de que Marcelo Odebrecht acabará fechando acordo de delação premiada com o Ministério Público.
E aí será uma loucura. Ninguém duvida que tanto ele quanto o outro grande empreiteiro com quem acaba de ser preso na operação Lava Jato — o Otávio Azevedo, da Andrade Gutierrez — tenham bombas a soltar para todos os lados. Não só para Lula, Dilma e o PT. Essas empreiteiras têm ligações com todos os partidos, com governantes de todas as matizes. Sempre viveram de obras públicas e por isso, provavelmente sabem os podres de muita gente.
E por que se aposta que eles podem acabar falando?
Porque, ao entrarem na Lava Jato, vão dar margem a todo tipo de pesquisas sobre todo tipo de escândalo e denúncias que já tenham aparecido contra elas.
Por exemplo. Vá ali no Google e digite em inglês: “fundação contribuinte descoberto” (Foundation contributor uncovered).
Você vai encontrar algo como a história acima.
Uma reportagem publicada em 22 de outubro de 1998 pelo “St. Petersburg Times”, segundo a qual uma subsidiária da Odebrecht — a Contractors Odebrecht — foi a fonte de uma doação de US $ 70.000 à agência sem fins lucrativos de Jeb Bush.
Isso mesmo: Jeb Bush, o ex-governador do Estado da Flórida e atual pré-candidato à Presidência da República dos EUA pelo partido Republicano; irmão do ex-presidente dos EUA George W. Bush e filho de outro ex-presidente, o George Bush.
O jornal afirma que se trata de “um dos maiores mistérios que cercam fundação sem fins lucrativos de Jeb Bush”.
A empresa seria o maior doador para a tal Fundação de Jeb Bush, até então. Doou US $ 70.000 em 1995, “U$ 20.000 mais do que ninguém jamais deu e muito acima de $ 5.000 comumente contribuído pelos principais doadores”, afirma o jornal. Que completa:
“A Odebrecht ganhou contratos estaduais e municipais no valor de centenas de milhões de dólares nos últimos anos, de renovação do Aeroporto Internacional de Miami, uma nova arena Miami, pontes em toda a Flórida.”
Ainda segundo o jornal, um funcionário da Odebrecht nos EUA disse que o dinheiro foi dado para um livro escrito por Jeb Bush, quando ele não era oficialmente candidato a qualquer cargo eletivo. Não foi contribuição de campanha, portanto não seria crime.
Não foi. Mas a denúncia tornou-se um problema na segunda campanha de Jeb Bush a governador. A tal fundação passou a ser vista como uma agência sem fins lucrativos que existia unicamente para manter empregadas algumas figuras chaves de sua primeira campanha até que começasse a seguinte.
Enfim, essa coisa de escândalos é assim: vai se levantando o tapete daqui, a poeira dali, o passado… E as encrencas vão se acumulando até que se consiga sair do furacão. Se é que dá para sair.
Blog do Tales Farias,23/06/2015,08:49 hs
TRAIR
Há muitas pessoas que sonham ser traidores. Elas acreditam nisso,
acreditam ser isso. Não passam, no entanto, de pequenos trapaceiros. O
caso patético de Maurice Sachs, na literatura francesa. Que trapaceiro não
se diz: ah, enfim sou um verdadeiro traidor! Mas também que traidor não
se diz à noite: no final das contas, eu era apenas um trapaceiro. É que trair é
difícil, é criar. É preciso perder sua identidade, seu rosto. É preciso
desaparecer, tornar-se desconhecido.
O fim, a finalidade de escrever? Para além ainda de um devir-mulher,
de um devir-negro, animal etc., para além de um devir-minoritário, há o
empreendimento final de devir-imperceptível. Não, um escritor não pode
desejar ser "conhecido", reconhecido. O imperceptível, caráter comum da
maior velocidade e da maior lentidão. Perder o rosto, ultrapassar ou furar o
muro, limá-lo pacientemente, escrever não tem outro fim.
(...)
G. Deleuze e C. Parnet in Diálogos
segunda-feira, 22 de junho de 2015
MISTÉRIO
É obviamente necessário, como o oráculo grego afirmava, conhecermo-nos a nós próprios. É a primeira realização do conhecimento. Mas reconhecer que a alma de um homem é incognoscível é a maior proeza da sabedoria. O derradeiro mistério somos nós próprios. Depois de termos pesado o Sol e medido os passos da Lua e delineado minuciosamente os sete céus, estrela a estrela, restamos ainda nós próprios. Quem poderá calcular a órbita da sua própria alma?
(...)
Oscar Wilde in De Profundis
ERGA OMNES
Os quatro presos temporários da 14ª fase da Operação Lava Jato devem prestar depoimento à Polícia Federal (PF) nesta segunda-feira (22). Os questionamentos tinham sido marcados para sábado (20), um dia depois de serem presos, mas foram adiados para esta segunda. A PF não confirmou o horário em que eles serão ouvidos.
A prisão temporária dos suspeitos de atuar no esquema de corrupção na Petrobras vence nesta terça -feira (23), e pode ser prorrogada por mais cinco dias.
Esta fase da operação, chamada de 'Erga Omnes', tem como alvo as empreiteiras Odebrecht e Andrade Gutierrez e investiga crimes de formação de cartel, fraude a licitações, corrupção, desvio de verbas públicas, lavagem de dinheiro, entre outros. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), as empresas tinham esquema "sofisticado" de corrupção ligada à Petrobras, envolvendo pagamento de propina a diretores da estatal por meio de contas bancárias secretas no exterior.
Os presos que devem prestar depoimento nesta segunda são: Alexandrino de Salles e Christina Maria da Silva Jorge, ligados à Odebrecht, além de Antônio Pedro Campelo de Souza e Flávio Lucio Magalhães, ligados à Andrade Gutierrez.
(...)
do G1, 22/06/2015, 09:18 hs
MEMÓRIAS
Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. (…) A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. (…) Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe; e se sabe, me entende.
(...)
Guimarães Rosa
domingo, 21 de junho de 2015
ATESTADO DE INOCÊNCIA
A nota da Construtora Andrade Gutierrez, em 21/06/2015:
"A Andrade Gutierrez considera as prisões de seus executivos abusivas e sem fundamento objetivo. A ausência de provas na decisão judicial, e nas declarações dos procuradores e policiais, deixa claro que as prisões foram decretadas sem nenhum indício que justifique tal decisão. A empresa reitera que nunca participou de cartel, acordo ou fraude em licitações. Prova disso é que a Andrade Gutierrez, sendo a segunda maior construtora do país, é a 14a colocada entre as empresas contratadas pela Petrobras no período investigado. Seus executivos são inocentes."
A TELEVISÃO
A televisão mostra o que acontece?
Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar.
A televisão, essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona.
(...)
Eduardo Galeano
DISTRAÍDOS
Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.
Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles.
Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.
Como eles admiravam estarem juntos!
Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.
(...)
Clarice Lispector
REFLEXÕES SEM DOR
Quando uma aeromoça manda apertar o cinto, muito bem. Mas quando quem manda é o ministro da Fazenda?
Pensar. Eis um verbo reflexivo.
Um homem está definitivamente velho quando aponta para o próprio sexo e diz: "Isto é um símbolo fálico."
Chato é o sujeito que não pode ver um saco vazio.
Todo dia leio cuidadosamente os avisos fúnebres dos jornais; às vezes a gente tem surpresas agradabilíssimas.
Nunca deixe para amanhã o que pode deixar hoje.
Se a morte é fatal, por que será que todo mundo deixa o enterro pra última hora?
Tem o cérebro de um verdadeiro computador: comete erros inacreditáveis!
É preciso ter coragem. É preciso dar pseudônimo aos bois.
Ah, se a gente pudesse empenhar as bodas de prata!
Televisão — um veículo eletrônico com tração animal.
Fofoca a gente tem que espalhar rápido porque pode ser mentira.
Quando muita gente insiste muito tempo em que você está errado, você deve estar certo.
Tempo é dinheiro. Contratempo é nota promissória.
Eu só não sou o homem mais brilhante do mundo porque ninguém me pergunta as respostas que eu sei.
Essa gente que fala o tempo todo contra a corrupção está apenas cuspindo no prato em que não comeu.
De madrugada, o melhor amigo do homem é o cachorro-quente.
O cara que gosta de arranjar encrenca cada vez tem que andar menos.
O maior teste da dignidade é um trambolhão.
Se eu não soubesse o valor do dinheiro não vivia botando ele fora.
Quem se mata de trabalhar merece mesmo morrer.
Antes de entregar sua declaração de Imposto de Renda verifique bem se você omitiu tudo.
Uma linda mulher de quarenta anos: cara e coroa.
Millôr Fernandes
Quando uma aeromoça manda apertar o cinto, muito bem. Mas quando quem manda é o ministro da Fazenda?
Pensar. Eis um verbo reflexivo.
Um homem está definitivamente velho quando aponta para o próprio sexo e diz: "Isto é um símbolo fálico."
Chato é o sujeito que não pode ver um saco vazio.
Todo dia leio cuidadosamente os avisos fúnebres dos jornais; às vezes a gente tem surpresas agradabilíssimas.
Nunca deixe para amanhã o que pode deixar hoje.
Se a morte é fatal, por que será que todo mundo deixa o enterro pra última hora?
Tem o cérebro de um verdadeiro computador: comete erros inacreditáveis!
É preciso ter coragem. É preciso dar pseudônimo aos bois.
Ah, se a gente pudesse empenhar as bodas de prata!
Televisão — um veículo eletrônico com tração animal.
Fofoca a gente tem que espalhar rápido porque pode ser mentira.
Quando muita gente insiste muito tempo em que você está errado, você deve estar certo.
Tempo é dinheiro. Contratempo é nota promissória.
Eu só não sou o homem mais brilhante do mundo porque ninguém me pergunta as respostas que eu sei.
Essa gente que fala o tempo todo contra a corrupção está apenas cuspindo no prato em que não comeu.
De madrugada, o melhor amigo do homem é o cachorro-quente.
O cara que gosta de arranjar encrenca cada vez tem que andar menos.
O maior teste da dignidade é um trambolhão.
Se eu não soubesse o valor do dinheiro não vivia botando ele fora.
Quem se mata de trabalhar merece mesmo morrer.
Antes de entregar sua declaração de Imposto de Renda verifique bem se você omitiu tudo.
Uma linda mulher de quarenta anos: cara e coroa.
Millôr Fernandes
sábado, 20 de junho de 2015
Drummond
Brasiliensis
brasília, e agora?
com o avião na pista,
quer levantar vôo,
não existe vôo...
quer se afogar no lago
mas o lago secou...
quer falar
com o presidente
mas este viajou...
quer se esconder
no cerrado,
o cerrado acabou...
quer ir pra goiás,
goiás não há mais...
brasília, e agora?
Nicolas Behr
SEM FUNDO
Retido em Brasília por um compromisso na Esplanada, um senador governista ficou impressionado com a tensão exibida pelo ministro que o recebeu nesta sexta-feira (19). Resolvida a demanda paroquial que levara o parlamentar a pedir a audiência, a conversa enveredou por um tema incontornável: as novas prisões da Lava Jato. O ministro utilizou a expressão “Pós-Odebrecht” como sinônimo de deterioração. Como em: “A situação vai de mal a Pós-Odebrecht!”
Os riscos envolvidos na prisão de Marcelo Odebrecht seriam tão grandes que todo o estrago que a Operação Lava Jato já fez no Legislativo, no Executivo e no mercado da construção pesada virou prefácio. A política experimenta um sentimento inédito de vulnerabilidade. A oposição está preocupada. E o governo está em pânico. Quem consegue dormir bem enquanto todos perdem o sono à sua volta provavelmente está mal informado.
Em notícia veiculada em sua última edição, a revista Época relata que o presidente da Odebrecht descontrolou-se quando os policiais federais chegaram em sua casa com um mandado de prisão. Antes de ser levado, Marcelo Odebrecht teria feito três ligações. Numa delas, alcançou um amigo com credenciais para contactar Lula e Dilma Rousseff. “É para resolver essa lambança”, teria mandado dizer. “Ou não haverá República na segunda-feira.”
Os destinatários do recado podem até considerar adequado dialogar com o novo hóspede da carceragem da PF em Curitiba. Mas os únicos interlocutores que o mandachuva da Odebrecht terá nos próximos dias, além dos seus advogados, serão os membros da força-tarefa da Lava Jato. E já está entendido que, para esses personagens, Marcelo Odebrecht precisa de interrogatório, não de diálogo.
Emílio Odebrecht, patriarca da família que controla a maior construtora da América Latina, também teve acessos de raiva nos últimos dias, informa a notícia de Época. Seu pavio diminuía na proporção direta do crescimento dos rumores sobre a perspectiva de detenção do filho. Conforme o relato de amigos, Emílio deu para repetir uma ameaça: “Se prenderem o Marcelo, terão de arrumar mais três celas. Uma para mim, outra para o Lula e outra para a Dilma.”
Ainda não sabe para onde a Lava Jato vai levar o Brasil. Mas a operação já surte efeitos extraordinários. Intima o país à reflexão. O caos já começou ou ainda não chegamos ao fundo do Pós-Odebrecht?, eis a pergunta que o brasileiro faz a si mesmo enquanto caminha para o insondável. Se a família Odebrecht cumprisse as ameaças de romper o silêncio, o país talvez eliminasse a fase do caos, caindo direto no pântano. Que é o melhor lugar para começar uma nação inteiramente nova.
Blog do Josias de Souza, 20/06/2015, 05:44 hs
UFOLOGIA ESPIRITUAL
A Religião pode ser considerada como forma-religião. Nada de templos, igrejas, mesquitas, etc. Isso não evita o fato de que se trata do pensamento religioso-em-ato, o qual não enxergamos, mas sentimos os efeitos, principalmente nos modos de subjetivação atuais. Assim, a forma-religião se imiscui em múltiplas áreas do saber, inclusive na ciência, na educação, na política, na filosofia... O exemplo da ufologia é fértil, pois trata-se de uma "zona de ninguém", portanto, receptiva às construções religiosas "delirantes". Num passado longínquo, viemos dos extraterrestres, somos seus descendentes, e hoje, como a civilização terráquea "não deu certo", eles querem nos consertar através de intervenções genéticas. Estas e muitas outras ideias siderais ouvimos no "evento com contatados"(promovido pela revista Ufo) há alguns dias em Porto Alegre. O fenômeno Ufo, ao invés de funcionar como uma espécie de disparador para o pensamento crítico-criativo (fazer pensar) é abduzido pela forma-religião. E como não bastasse, é também engatado ao círcuito do capital, como um merchandising visual ao alcance de todos.
A.M.
MICRO-ACONTECIMENTOS
Há algumas coisas que não se pode aprender rapidamente, e o tempo, que é só o de que dispomos, cobra um preço alto pela aquisição delas. São as coisas mais simples do mundo, e porque leva a vida inteira de um homem para conhecê-las, a pequena novidade que cada homem extrai da vida custa muito caro e é a única herança que ele poderá deixar.
(...)
Ernest Hemingway
MAIS, AINDA
Se a história do Brasil ensina alguma coisa é que, acima de um certo nível de poder e de renda, ninguém é culpado pelo que fez ou deixou de fazer. Episódios como o impeachment de Collor e as condenações do mensalão seriam meros pontos fora da curva. A reiteração dos escândalos cuidou de restabelecer o respeito à tradição. Nesse contexto, a operação Lava Jato representa um teste.
A prisão dos presidentes da Odebrecht, Marcelo Odebrecht, e da Andrade Gutierrez, Otávio Marques de Azevedo, apenas elevou o grau de complexidade do teste. Até ontem, a dupla era interlocutora de presidentes da República e frequentadora de cerimônias de premiações de empresários do ano. Hoje, ambos serão apresentados aos colchonetes da carceragem da Polícia Federal em Curitiba.
Todo mundo sabe que as empreiteiras têm sido parte do poder de fato no Brasil. Ninguém ignora que a mistura de eleições e dinheiro produziu um meio-ambiente apodrecido.
O que há de diferente agora é que a força-tarefa da Lava Jato diz ter provas que permitem dissecar as relações do dinheiro com o poder como nunca antes na história desse país. São evidências documentais e testemunhais da tácita aliança da promiscuidade empresarial com o amoralismo político. Uma coligação que deu em coisas como a pilhagem da Petrobras.
No Brasil tradicional, os crimes cometidos acima de um certo patamar social são como cachorros que correm atrás dos carros. Eles perseguem quem os cometeu por algum tempo, dão a impressão de que vão estraçalhá-los, mas logo desistem.
A Lava Jato tornou um mais difícil a tarefa de deixar tudo pra lá, de fingir que nada está acontecendo. Mas, como sucedeu com outras investigações, essa operação é apenas mais um teste. Testa-se até onde vai a vontade do Brasil de se tornar um país sério. Ou menos esculhambado.
Blog do Josias,de Souza, 19/06/2015, 17:08 hs
sexta-feira, 19 de junho de 2015
ARTE DE AMAR
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Manuel Bandeira
SEM CORPO
Que a psiquiatria não tem um corpo, isso foi dito com rigor metodológico por Foucault em “O poder psiquiátrico, 1973, 1974".
Significa estabelecer o dado de que ela, rigorosamente falando, não é uma medicina, não é Medicina. Esta, óbvio, tem um corpo, o organismo físico-químico composto por órgãos e sistemas interligados. Ao final do século XIX, a psiquiatria tenta suprir esse buraco prático-conceitual com a instituição do corpo neurológico a partir da alta morbidade da sífilis cerebral na Europa. Já no século XX, dá-se uma cisão psicopatológica interna ao sistema nosológico psiquiátrico, qual seja: patologia mental orgânica = sífilis cerebral; patologia mental não orgânica = histeria. As pesquisas clínicas tornaram-se mais complexas quando Bleuler, em inícios do século XX, sob a influência da psicanálise, inventa o conceito clínico de esquizofrenia (cisão do eu), substituindo, assim, a antiga demência precoce de Kraeplin. Ora, é importante verificar que ainda hoje, a psiquiatria permanece sem um corpo, pois, tanto na histeria quanto na esquizofrenia não há constatação de lesões e/ou disfunções cerebrais correlatas á sintomatologia. O corpo neurológico não atende aos critérios para uma etiologia definida e definitiva do transtorno mental. Na última década do século XX, também chamada década do cérebro, com o avanço dos exames por imagem, o cérebro passa a ser estudado com mais detalhes no seu funcionamento. Tal progresso científico serviu e serve à linha do biopoder (cf. Foucault), aos interesses da indústria farmacêutica internacional, ao mercado do consumo desenfreado de remédios químicos atrelado às prescrições médicas, e produzem o fato de que o corpo da psiquiatria passa a ser o cérebro, já então reificado (coisificado) como agente causal das patologias mentais.
A.M.
PASSAGENS
Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está aí, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada 'impulso vital'. Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te surpreenderás pensando algo assim como 'estou contente outra vez'.
(...)
Caio Fernando Abreu
quinta-feira, 18 de junho de 2015
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