OUVIR DIZER
(...) A linguagem não é a vida, ela dá ordens à vida; a vida
não fala, ela escuta e aguarda. Em toda palavra de ordem, mesmo de um pai
a seu filho, há uma pequena sentença de morte — um Veredito, dizia Kafka.
O difícil é precisar o estatuto e a extensão da palavra de ordem. Não se trata
de uma origem da linguagem, já que a palavra de ordem é apenas uma
função-linguagem, uma função coextensiva à linguagem. Se a linguagem
parece sempre supor a linguagem, se não se pode fixar um ponto de partida
não-lingüístico, é porque a linguagem não é estabelecida entre algo visto (ou
sentido) e algo dito, mas vai sempre de um dizer a um dizer. Não
acreditamos, a esse respeito, que a narrativa consista em comunicar o que se
viu, mas em transmitir o que se ouviu, o que um outro disse. Ouvir dizer.
Nem mesmo basta evocar uma visão deformante vinda da paixão. A
"primeira" linguagem, ou, antes, a primeira determinação que preenche a
linguagem, não é o tropo ou a metáfora, é o discurso indireto. A importância
que se quis dar à metáfora, à metonímia, revela-se desastrosa para o estudo
da linguagem. Metáforas e metonímias são apenas efeitos que só pertencem
à linguagem quando já supõem o discurso indireto. Existem muitas paixões
em uma paixão, e todos os tipos de voz em uma voz, todo um rumor,
glossolalia: isto porque todo discurso é indireto, e a translação própria à
linguagem é a do discurso indireto.
(...)
G. Deleuze e F. Guattari in Mil Platôs, vol.2
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