quarta-feira, 7 de outubro de 2015

PATADA PELUDA

(Cena: dois trens da central do brasil carregados de operários acabaram de se engavetar mais uma vez. há pedaços de gente pra todo lado. O 1º homem conversa com o 2º homem, ambos presos nas ferragens).
   
  1º Homem: você está com um ar tão misterioso.
  2º Homem: é que perdi a perna esquerda.
  1º Homem: deus é sábio, restou a direita.
  2º Homem: é, mas ninguém acredita em saci.
  1º Homem: esquece. você gosta de mulher?
  2º Homem: principalmente depois de um scotch duplo.
  1º Homem: (em vários tons de voz) e trutas? e champignons? e roquefort?
  2º Homem: adoro bumbum de neném frito
  1º Homem: é um caso sério a falta de primavera.
  2º Homem: aqui as formigas adoram sangue. veja só como elas sobem pela sua garganta.
  1º Homem: não são formigas. são os verbos incandescentes da primavera inexistente.
  2º Homem: cuma é?
  1º Homem: (esforçando-se para tirar um papel do bolso) puta merda. como poesia é difícil.
  2º Homem: não blasfeme. afinal os relógios são todos repolhos.
  e a distribuição da fome é perfeita.
  1º Homem: escute lá o inatingível cristal de teu silêncio mortal.
  o que restou da sombra em teus cabelos. o futuro do mito
  bebo na morte.
  2º homem: puta que pariu. como dói.
  1º Homem: vou morrer. (morre)
  Anjo esfarrapado: (surgindo em meio a um esporro total)
  vá tomar no cu a morte e a mãe dela. mais um na ratoeira.
  2º Homem: os anjos andam muito duros. no hemisfério sul
  são meio caolhos. até aqui tudo bem.

                 (Pano exageradamente devagar) 


Afonso Henriques Neto

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