ÉDIPO ESPIRITUALIZADO
(...) De um objeto transcendente cada vez mais espiritualizado a
um campo de forças cada vez mais imanente, cada vez mais interiorizado:
é esta a evolução da dívida infinita, através do catolicismo,
e depois através da Reforma protestante. A extrema espiritualização
do Estado despótico e a extrema interiorização do campo
capitalista definem a má consciência. Esta não é o contrário do
cinismo; ela é, nas pessoas privadas, o correlato do cinismo das
pessoas sociais. Todos os procedimentos cínicos da má consciência,
tal como Nietzsche, Lawrence e Miller os analisaram para definir
o homem europeu da civilização — o reino das imagens e da hipnose,
o torpor que elas propagam —, o ódio contra a vida, contra
tudo o que é livre, que passa e que flui; a universal efusão do instinto de morte. Édipo, finalmente, instinto de morte —, a depressão, a culpabilidade utilizada como meio
de contágio, o beijo do vampiro: você não tem vergonha de ser
feliz? siga o meu exemplo, não o largarei até que você também me
diga “é minha culpa”, ó ignóbil contágio dos depressivos, a neurose
como única doença, que consiste em tornar doentes os outros
—, a estrutura permissiva: que eu possa enganar, roubar, degolar,
matar! mas em nome da ordem social, e que papai-mamãe se orgulhem
de mim —, a dupla direção dada ao ressentimento, volta
contra si mesmo e projeção contra o outro: o pai morreu, a culpa
é minha, quem é que o matou? a culpa é sua, foi o judeu, o árabe,
o chinês, todos os recursos do racismo e da segregação —, o abjeto
desejo de ser amado, o choramingo de não sê-lo o bastante, de
não ser “compreendido”, ao mesmo tempo em que há redução da
sexualidade ao “pequeno segredo sujo”, toda esta psicologia do
padre —, todos estes procedimentos encontram em Édipo
sua terra nutritiva e seu alimento. E todos estes procedimentos
servem à psicanálise e nela se desenvolvem: aparecendo ela como
novo avatar do “ideal ascético”. Cabe dizer mais uma vez que não
é a psicanálise que inventa Édipo: ela somente lhe dá uma derradeira
territorialidade, o divã, como uma última lei, o analista
déspota e receptor de dinheiro.
(...)
Gilles Deleuze e Félix Guattari in O anti-édipo
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