quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

ÉDIPO ESPIRITUALIZADO

(...) De um objeto transcendente cada vez mais espiritualizado a um campo de forças cada vez mais imanente, cada vez mais interiorizado: é esta a evolução da dívida infinita, através do catolicismo, e depois através da Reforma protestante. A extrema espiritualização do Estado despótico e a extrema interiorização do campo capitalista definem a má consciência. Esta não é o contrário do cinismo; ela é, nas pessoas privadas, o correlato do cinismo das pessoas sociais. Todos os procedimentos cínicos da má consciência, tal como Nietzsche, Lawrence e Miller os analisaram para definir o homem europeu da civilização — o reino das imagens e da hipnose, o torpor que elas propagam —, o ódio contra a vida, contra tudo o que é livre, que passa e que flui; a universal efusão do instinto de morte.  Édipo, finalmente, instinto de morte —, a depressão, a culpabilidade utilizada como meio de contágio, o beijo do vampiro: você não tem vergonha de ser feliz? siga o meu exemplo, não o largarei até que você também me diga “é minha culpa”, ó ignóbil contágio dos depressivos, a neurose como única doença, que consiste em tornar doentes os outros —, a estrutura permissiva: que eu possa enganar, roubar, degolar, matar! mas em nome da ordem social, e que papai-mamãe se orgulhem de mim —, a dupla direção dada ao ressentimento, volta contra si mesmo e projeção contra o outro: o pai morreu, a culpa é minha, quem é que o matou? a culpa é sua, foi o judeu, o árabe, o chinês, todos os recursos do racismo e da segregação —, o abjeto desejo de ser amado, o choramingo de não sê-lo o bastante, de não ser “compreendido”, ao mesmo tempo em que há redução da sexualidade ao “pequeno segredo sujo”, toda esta psicologia do padre —, todos estes procedimentos encontram em Édipo sua terra nutritiva e seu alimento. E todos estes procedimentos servem à psicanálise e nela se desenvolvem: aparecendo ela como novo avatar do “ideal ascético”. Cabe dizer mais uma vez que não é a psicanálise que inventa Édipo: ela somente lhe dá uma derradeira territorialidade, o divã, como uma última lei, o analista déspota e receptor de dinheiro.
(...)
Gilles Deleuze e Félix Guattari in O anti-édipo

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