quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

PARA UMA CLÍNICA CAPSIANA

A princípio, pode-se estabelecer duas dificuldades clínico-organizacionais que condicionam o funcionamento de um Caps no serviço público. Ambas se ligam à realidade fora do Caps. A primeira está acoplada à Rede de Atenção Básica, a segunda ao perfil  clínico-psicopatológico de um paciente indicado para o Caps. Elas estão relacionadas entre si, consumando-se na composição dos usuários e no projeto terapêutico singular (PTS). Ora, se o Caps é uma realidade voltada para fora, é possível torná-lo a própria realidade, o próprio fora. Mas, do que se trata, concretamente, dizer que “ o Caps é o próprio fora”? Significa que o real é o mundo configurando a clínica – o encontro com o paciente- como superfície (multiplicidade) de práticas voltadas ao aumento da potência de viver e agir, portanto à alegria. Citar de antemão tal afeto faz dessa atividade antes de tudo um compromisso ético do técnico com o paciente. Não se trata, pois, de apenas acolhê-lo, mas de fazer produzir linhas de diferenciação existencial, mesmo sob as situações mais adversas. É que a semiótica da loucura conduz à adoção de condutas, digamos, sutilmente repressivas e hostis pelos seguidores do senso comum  e do bom senso como lugares de uma consciência normativa. Assim, o trabalho com o paciente deverá estar para além do paciente e ao mesmo tempo com o paciente como o outro e a nós mesmos postos numa linha de risco não hierárquica em relação à Ordem da saúde mental. Portanto, estamos diante de perigos constitutivos da clínica e do serviço no qual ela se instala e se produz. Alguns desses perigos seriam: 1-dobrar-se à visão biomédica do mundo (a medicalização fetichista) não só usando a CID-10, mas apoiando e incentivando o uso de psicofármacos como escolha terapêutica “essencial”, e daí, indispensável; 2-adotar os princípios da racionalidade capitalística, do eu e da consciência como norteadores e paradigmas da saúde mental; 3- usar as relações de poder inscritas no contato com o paciente como forma única, vazia e engessada da clínica, o que remete ao item um; 4-considerar o paciente de uma perspectiva estritamente individual, excluído-se os fatores sóciopolíticos (não pessoais) que atuam "por dentro" dos modos de subjetivação; 5- por fim, mas não menos importante, “sentir” compaixão pelo paciente, mormente os mais graves e destruídos, edulcorando a prática com a aura de um humanismo salvacionista. São perigos, parece-nos, só ultrapassáveis por práticas desejantes (coletivas) de produção do novo: movimentos órfãos, ateus e anarquistas, o inconsciente-produção em carne-e-osso...

A.M.

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