PRODUZIR REALIDADES
(...) Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor,
ele só pode sê-lo na realidade, e de realidade. O desejo é esse conjunto
de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os
fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produção.
O real decorre disso, é o resultado das sínteses passivas do desejo
como autoprodução do inconsciente. Nada falta ao desejo, não lhe
falta o seu objeto. É o sujeito, sobretudo, que falta ao desejo, ou
é ao desejo que falta sujeito fixo; só há sujeito fixo pela repressão.
O desejo e o seu objeto constituem uma só e mesma coisa: a má-
quina, enquanto máquina de máquina. O desejo é máquina, o objeto
do desejo é também máquina conectada, de modo que o produto
é extraído do produzir e algo se destaca do produzir passando
ao produto e dando um resto ao sujeito nômade e vagabundo.
O ser objetivo do desejo é o Real em si mesmo. Não há forma particular de existência que se poderia denominar realidade psíquica. Como diz Marx, não há falta, o que há é paixão como “ser
objeto natural e sensível”. Não é o desejo que se apoia nas necessidades;
ao contrário, são as necessidades que derivam do desejo:
elas são contraproduzidas no real que o desejo produz. A falta é
um contraefeito do desejo, depositada, arrumada, vacuolizada no
real natural e social. O desejo está sempre próximo das condições
de existência objetiva, une-se a elas, segue-as, não lhes sobrevive,
desloca-se com elas, razão pela qual ele é, tão facilmente, desejo
de morrer, ao passo que a necessidade dá a medida do distanciamento
de um sujeito que perdeu o desejo ao perder a síntese passiva
dessas condições. A necessidade como prática do vazio tem
unicamente este sentido: ir procurar, capturar, parasitar as sínteses
passivas ali onde elas se encontram. Não adianta dizer: não somos
ervas, perdemos há muito tempo a síntese clorofílica, é preciso
comer... O desejo torna-se então esse medo abjeto da falta. Mas
não são precisamente os pobres ou os espoliados que dizem
isso. Estes, ao contrário, sabem que estão próximos da erva, e que
o desejo só tem “necessidade” de poucas coisas, não dessas coisas
que lhes são deixadas, mas das próprias coisas que lhes são incessantemente
tiradas, e que não constituem uma falta no coração do
sujeito, mas sobretudo a objetividade do homem, o ser objetivo do
homem para quem desejar é produzir, produzir na realidade. O
real não é impossível; ao contrário, no real tudo é possível, tudo
devém possível. Não é o desejo que exprime uma falta molar no
sujeito; é a organização molar que destitui o desejo do seu ser objetivo.
Os revolucionários, os artistas e os videntes se contentam
em ser objetivos, tão somente objetivos: sabem que o desejo abraça a vida com uma potência produtora e a reproduz de uma maneira
tanto mais intensa quanto menos necessidade ele tem. Pior
para aqueles que acreditam que isso é fácil de dizer, ou que é uma
ideia livresca.
(...)
G. Deleuze e F. Guattari in O Anti-édipo
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