sexta-feira, 16 de setembro de 2016

PRODUZIR REALIDADES

(...) Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só pode sê-lo na realidade, e de realidade. O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre disso, é o resultado das sínteses passivas do desejo como autoprodução do inconsciente. Nada falta ao desejo, não lhe falta o seu objeto. É o sujeito, sobretudo, que falta ao desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há sujeito fixo pela repressão. O desejo e o seu objeto constituem uma só e mesma coisa: a má- quina, enquanto máquina de máquina. O desejo é máquina, o objeto do desejo é também máquina conectada, de modo que o produto é extraído do produzir e algo se destaca do produzir passando ao produto e dando um resto ao sujeito nômade e vagabundo. O ser objetivo do desejo é o Real em si mesmo. Não há forma particular de existência que se poderia denominar realidade psíquica. Como diz Marx, não há falta, o que há é paixão como “ser objeto natural e sensível”. Não é o desejo que se apoia nas necessidades; ao contrário, são as necessidades que derivam do desejo: elas são contraproduzidas no real que o desejo produz. A falta é um contraefeito do desejo, depositada, arrumada, vacuolizada no real natural e social. O desejo está sempre próximo das condições de existência objetiva, une-se a elas, segue-as, não lhes sobrevive, desloca-se com elas, razão pela qual ele é, tão facilmente, desejo de morrer, ao passo que a necessidade dá a medida do distanciamento de um sujeito que perdeu o desejo ao perder a síntese passiva dessas condições. A necessidade como prática do vazio tem unicamente este sentido: ir procurar, capturar, parasitar as sínteses passivas ali onde elas se encontram. Não adianta dizer: não somos ervas, perdemos há muito tempo a síntese clorofílica, é preciso comer... O desejo torna-se então esse medo abjeto da falta. Mas não são precisamente os pobres ou os espoliados que dizem isso. Estes, ao contrário, sabem que estão próximos da erva, e que o desejo só tem “necessidade” de poucas coisas, não dessas coisas que lhes são deixadas, mas das próprias coisas que lhes são incessantemente tiradas, e que não constituem uma falta no coração do sujeito, mas sobretudo a objetividade do homem, o ser objetivo do homem para quem desejar é produzir, produzir na realidade. O real não é impossível; ao contrário, no real tudo é possível, tudo devém possível. Não é o desejo que exprime uma falta molar no sujeito; é a organização molar que destitui o desejo do seu ser objetivo. Os revolucionários, os artistas e os videntes se contentam em ser objetivos, tão somente objetivos: sabem que o desejo abraça a vida com uma potência produtora e a reproduz de uma maneira tanto mais intensa quanto menos necessidade ele tem. Pior para aqueles que acreditam que isso é fácil de dizer, ou que é uma ideia livresca.
(...)
G. Deleuze e F. Guattari in O Anti-édipo

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