sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

QUANDO DELIRAR INCOMODA

Na avaliação clínico-psicopatológica, é possível que o delírio não seja notado. O paciente conversa "normalmente", articula bem a sintaxe, tem um discurso congruente, organizado, mas no entanto, delira sem se fazer notar. Isto ocorre, grosso modo, nos casos de psicoses graves sem desorganização mental, daí sem perda da capacidade de autonomia social ou de gerir os atos da vida civil. Ora, conforme o senso comum das sociedades, o delírio tende a ser notado quando incomoda. Quer dizer: quando o sujeito se torna agressivo em demasia, violento, improdutivo, inadequado aos códigos sociais, incapaz de resolver até mesmo pequenos problemas, aí lhe chega a pecha de inválido. E outros epítetos de cunho moral. Este dado reforça a tese de que "todos podem delirar" desde que não desarrumem os fluxos afetivos dos códigos sociais. Desde que, enfim, não tragam a desordem. Então, fiquem no seu canto. É de notar, contudo , que muitas instituições poderosas (o Estado, entre outras) deliram sim e fazem delirar, delirar, mas no âmbito restrito de um funcionamento subjetivo ótimo. Por exemplo, a calamidade da guerra que atravessa a história humana, é aceita como fato natural. Não há delírio nos motivos que a legitimam. E o que dizer da Religião, do Direito, da Escola? É que na avaliação psicopatológica o delírio muitas vezes está encapsulado pelas crenças que compõem os modos subjetivos de viver, mesmo que tal vida expresse a destruição in concert como hoje no Brasil. Deste modo, o exame psiquiátrico do paciente-indivíduo, é, ao mesmo tempo, um exame da sociedade em que ele se insere. O delírio é social antes de ser individual.

A.M.

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