quinta-feira, 7 de setembro de 2017

MIA  COUTO  E  O  MUNDO

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ÉPOCA – O Brasil foi um modelo para os países luso-africanos. Ele continua a ser inspirador?
Couto – O Brasil foi um modelo pela via da mistificação. O Brasil nos enganou. Recordo-me quando os primeiros jogadores de futebol negros brasileiros se impuseram ao mundo. Nós, na África, vimos aquilo como nosso futuro, a realização de um sonho: Pelé, Garrincha. Mas não era claro para todos que aquilo era a parte visível de um mundo extremamente racista. A celebração da alegria do Carnaval, a celebração do corpo negro como paradigma da beleza, foi sempre valorizada por nós. Mas víamos um Brasil que não existia. Isso se mantém até hoje. Porque vemos o Brasil com o orgulho de quem vê um membro de nossa família estar à frente, como uma das potências econômicas mundiais. Mas não percebemos as contradições internas que esse sistema tem. Todos precisamos ter um parente rico.

ÉPOCA – Carnaval, música e futebol são verdadeiros, não?
Couto – Sim. Só que o Brasil não é só isso. A falsificação que criamos em torno do Brasil era uma forma positiva de pensar um modelo do que poderíamos ser. Antes mesmo do Brasil, os países africanos vizinhos que conquistaram a independência nos fascinaram mais. Tanzânia, Zâmbia e Uganda foram motores de nossos sonhos.

ÉPOCA – O senhor continua a atuar na política?
Couto – O empenho é o mesmo. Mas não tenho partido nem milito numa organização. Faço o trabalho cívico, colaboro com as organizações da sociedade civil, com os partidos políticos naquilo que eles fazem de positivo. Tenho uma intervenção pública pelos jornais e conferências. Mantenho a veia jornalística. Sou um homem de esquerda, se é que essa palavra tem algum sentido hoje. Mantenho os princípios que me fizeram aderir ao movimento revolucionário. Não sou marxista, porque o marxismo simplificou a visão de mundo. O marxismo foi adulterado. Não é o caminho.  Sou um homem profundamente crítico em relação a esse sistema que se tornou global.

ÉPOCA – O senhor quer dizer o sistema capitalista?
Couto – Olhe como as coisas mudaram. A gente não sabe mais dar nomes às coisas. Foi intencional. Hoje temos medo de dizer que o sistema em que vivemos é o sistema capitalista. Chamamos isso de globalização etc. Receamos usar palavras que só serviam para um mundo bipolar. Hoje é pecado pronunciar a palavra “capitalismo”. O capitalismo é tão guloso que engoliu seu próprio nome. Ele tem uma capacidade enorme de se travestir.
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Mia Couto, Entrevista a Luis Antônio Giron, Época, 25/04/2014

Um comentário:

  1. E nós brasileiros o que poderíamos dizer?
    "Deu merda!!" e o que é pior: nos deixamos ser enganados.

    Joelma

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