domingo, 30 de setembro de 2018

Matar o patrão? Mais difícil é matar o escravo dentro de nós.


Mia Couto 

Xeque-mate

Quando menos se espera, já são horas.
A dama de espadas perde o gume
e o pássaro pousado vai embora. 

Quando menos se espera, o que se anuncia
não é a sorte grande, a estrela Aldebarã
ou a sagração da primavera.
São tempos de abutre
e o coração, músculo bélico, fraqueja. 

De repente, já é sábado,
há uns assuntos desagradáveis para resolver
e, sobre a pele confusa da alma,
uma densa crosta de óxido e desalento.

Quando menos se espera, o rei está em xeque,
e é dezembro.
Há uma complicação de trânsito
na avenida
uma artéria que não dá passagem.
Quando menos se espera, já é tarde.


Carlos Machado.

LOUI JOVER


É ISSO AÍ

A questão essencial à respeito da psiquiatria atual é simples: em geral, o psiquiatra não escuta o paciente. Por que isso ocorre? 1- o método positivista da ciência busca sintomas e relações de causa-efeito; 2-a psiquiatria está acoplada aos interesses da indústria farmacêutica internacional; 3-o atendimento psiquiátrico é tributário das necessidades da sociedade: medicar para não agitar; 4-o psiquiatra é produzido( sem o saber) como uma peça subjetiva do agenciamento-lucro do capitalismo; 5-a desvitalização atual da sociedade civil (pelo menos no Brasil) é correlata a existência do psiquiatra como homem de negócios: a loucura enrica.

A. M.


Obs. : texto revisado e republicado
A diferença entre uma democracia e uma ditadura consiste em que numa democracia se pode votar antes de obedecer às ordens.
(...)

Charles Bukowski

sábado, 29 de setembro de 2018

DEPOIS DE LÚCIA - direção de Michel Franco, México, 2013

Talvez os poetas estejam certos. Talvez o amor seja a única resposta.

Woody Allen

Izaías e Seus Chorões | Pedacinho do Céu (Waldir Azevedo) | Instrumental...

SOBRE O SUICÍDIO

A abordagem da questão "por que alguém se mata?" deve ser transdisciplinar. Não o sendo, a pesquisa cai num reducionismo estéril. É o caso da psiquiatria biológica. Ela atrela o suicídio a existência dos transtornos mentais; diz-se "ele, o suicida, sofria de algum transtorno". Ora, é possível que sim, mas o transtorno mental não explica nada. Ele é que deve ser explicado. Explicado por vetores sociais, econômicos, midiáticos, políticos, morais, culturais, religiosos, etc, que incidem na produção de subjetividades suicidas. A tarefa de pensar o suicídio é complexa na própria natureza da pesquisa, ou seja, na metodologia utilizada. Aquele que se matou óbviamente não estará presente numa pesquisa qualitativa. A sub-notificação dos casos novos (por motivos diversos) leva a uma imprecisão quantitativa dos dados. Além disso, o trabalho de prevenção e/ou tratamento está marcado pela implicação do tema com a condição humana de todos nós; afirmação ou destruição da vida? Assim, o tema suicídio está presente em todo pensamento sobre o viver. Discuti-lo é problematizar como vivemos e o que fazemos da vida como realidade coletiva.

A.M.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

A tua ausência
a encher-se de dunas.

Aquele bater de vidraças
na orla da praia.

O silêncio a insistir
a recusar-se ao rumor.

E a vida a fluir,
lá fora.


Eduardo Pitta

Natiruts - Quero Ser Feliz Também (Ao Vivo)

LIVRE DO OUTRO

O sonho de modernidade alimentou nossa autoestima política por quase três décadas. A violência cotidiana recebeu da Constituição de 1988 um lustro democrático, esse verniz de legitimidade que permitiu a rivais políticos, pelo menos, jogar um jogo segundo regras. Só não esperávamos que, ao completar 30 anos, esse projeto fizesse despertar com tanta força um velho adversário: o Movimento Brasil Livre do Outro — MBLO. Rejuvenescido, voltou a proclamar sua estranha ideia de libertação: se não vier por obediência aos libertadores, que venha a fórceps. Com vitória ou derrota eleitoral, o MBLO veio para ficar e barbarizar.

Os libertadores querem nos libertar de quem, afinal? Diante do espelho, há o Brasil que quer ser livre de si mesmo: da corrupção e dos corruptos; dos fatos, da ciência e do valor verdade. E há o Brasil que almeja ser livre do outro: o outro socioeconômico, o outro político e o outro identitário. Melhor dito: livre de mulheres livres, inspiradas pelo feminismo; livre de negros desobedientes, que se fazem de vítimas só porque são mais encarcerados e mortos; livre dos índios indolentes, que ocupam terras de mais e trabalham de menos; livre de sexualidades fora da cartilha, por receio de se identificar com elas; livre da arte degenerada, em nome de um país onde toda nudez será castigada; livre de desajustados e periféricos que pedem um lugar ao centro ou mesmo o fim da periferia.
(...)

Conrado Hubner Mendes, Época, acessado em 28/09/2018



Na vida, o importante é fracassar.

Nelson Rodrigues

PETRAS LUKOSIUS


Líquido

Teu beijo é tanto 
é tamanho 
que nele me dispo, 
me banho, 
me adoço. 
Deixo no pescoço 
uma gota ativa 
pra te manter molhado 
enquanto posso. 
Essa umidade me conserva viva.


Flora Figueiredo

Propaganda eleitoral gratuita - Adnet

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Fim de tarde. Dia banal, terça, quarta-feira. Eu estava me sentindo muito triste. Você pode dizer que isso tem sido freqüente demais, até mesmo um pouco (ou muito) chato. Mas, que se há de fazer, se eu estava mesmo muito triste? Tristeza-garoa, fininha, cortante, persistente, com alguns relâmpagos de catástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? E trabalho, amor, moradia? O que vai acontecer? Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vai acontecer acontecerá. Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deus dará. Essas coisas meio piegas, meio burras, eu vinha pensando naquele dia. Resolvi andar.
(...)

Caio Fernando Abreu

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Natiruts - Pedras Escondidas (Ao Vivo)

Fogo e gelo 

Alguns dizem que o mundo acabará em fogo,
Outros dizem em gelo.
Fico com quem prefere o fogo.
Mas, se tivesse de perecer duas vezes,
Acho que conheço o bastante do ódio
Para saber que a ruína pelo gelo
Também seria ótima
E bastaria.


Robert Frost

terça-feira, 25 de setembro de 2018

O USO DO DIAGNÓSTICO PSIQUIÁTRICO

O diagnóstico psiquiátrico pode ser de dois tipos: 1-Diagnóstico-essência. 2-Diagnóstico-função.No primeiro caso, ele remete a uma suposta "natureza" que formaliza os afetos e as crenças sob um regime identitário: ele é esquizofrênico, ele é psicótico, ele é histérico etc. Tal enunciado articula-se com a forma-psiquiatria (não a especialidade, mas a instituição) que validaexecuta a clínica. Em tempos atuais, seria uma bio-neuro-clínica. No segundo caso, o diagnóstico remete à terapêutica como função clínica voltada à autonomia psicossocial. Implica em considerar o encontro (conexão de afetos) e não o conhecimento (ou reconhecimento) do paciente. Sendo assim, qualquer enunciado é válido desde que processos singulares (subjetividades) quebrem o diagnóstico em favor de novos efeitos de sentido. Se se fala, por exemplo, "transtorno bipolar", é buscada a relação vivida, concreta, corporal, pelo dito portador desse transtorno. Em suma, são duas formas de trabalhar com o diagnóstico. Não desprezá-lo e ao mesmo tempo valorizá-lo como expressão singular da produtividade ou improdutividade social.

A.M.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

A alma de toda a gente tem cercanias.
A minha, não tem.
É um descampado.
Não tem telhado, não tem paredes.
Muitas vezes, nem chão.

E sinto no peito as encostas
de tudo o que sangra e corrói.

(...)

Nara Rúbia Ribeiro

domingo, 23 de setembro de 2018

LOUI JOVER


Dane-se a esperança.


George Carlin
MAU HUMOR

(...)
O jogo da zoeira já foi dominado pela esquerda, que respondia com inúmeros memes às críticas. Talvez a frase "Lula ladrão, roubou meu coração" sintetize essa batalha de mensagens telegráficas: a condenação por corrupção se transforma numa declaração de amor, num jogo de palavras que visa desprezar qualquer conversa séria sobre o tema. Votar era um grande bloco de Carnaval, que espalhava folia em meio à sisudez. Numa outra saída, havia o "humoralismo", com tiradas que soavam como humor, mas exalavam superioridade moral.
Eis que a direita bolsonarista se apropriou dessa estética e imprimiu nela um ritmo industrial. Recebo todos os dias memes e piadas sacaneando todo mundo que se opõe a Bolsonaro, de Marina a Lula. O próprio trocadilho "É melhor Jair se acostumando" tem uma função humorística inegável. Boas ou não, essas piadas cumprem o papel que antes pertencia à TV, por substituir o debate público, entreter e, ao mesmo tempo, entregar ao eleitor um raciocínio pronto, com o qual pode fingir que debate pelo simples ato de encaminhar. Dificilmente haverá caminho melhor que o humor para apresentar um ponto de vista de forma não só catártica quanto memorável -- mesmo que o argumento por baixo dele seja frouxo. Diante do capitão, porém, o discurso da esquerda perdeu completamente o humor.
(...)

Márvio Dos Santos, Época, acessado em 23/09/2018




Marc Cary Focus Trio - King Tut's Strut Live at Bohemian Caverns

sábado, 22 de setembro de 2018

SEDE

Não é a água
que me dá a vida.
É a sede.

Já não podes ser a fonte
que sacia e reabastece
o lago profundo
que sou.

És minha sede.

Sei,
teu peito encerra vasos alados
transbordantes de sonho e de azul.

Mas
é no calor dos teus lábios
que sinto o gosto orvalhado do sol.



Nara Rúbia Ribeiro

RIO: ISSO É ANTIGO


Ninguém pode dizer o que acontece entre a pessoa que você era e a pessoa que você se tornou. Ninguém pode planejar essa parte azul e solitária do inferno. Não existem mapas da mudança. Você simplesmente sai do outro lado. Ou você não sai.
(...)

Stephen King
MICRO-CONTROLES

(...)
Em quê isso concerne o pensamento de Deleuze (com Guattari)? A questão se coloca tanto mais que Deleuze quase nada conheceu da Internet. Ele não conheceu sua amplitude e nem a maneira pela qual nossos modos de existência são afetados, às vezes abalados pela Internet. As únicas grandes antecipações que Deleuze lança, ao retomar e prolongar Foucault e sobretudo Burroughs, é que nossas sociedades deixaram de ser sociedades disciplinares para se tornarem sociedades de controle. Elas já não funcionam por enclausuramento como as sociedades disciplinares (escola, prisão, caserna), mas por controle contínuo quer dizer, por levantamento de informações) e comunicação instantânea num mundo que se tornou o mundo infinitamente modulável da empresa. O espírito de empresa conquista todas as formações sociais, e as máquinas que lhe correspondem já não são as máquinas energéticas da idade disciplinar e industrial, mas as máquinas cibernéticas da idade empresarial do controle.

Portanto, Deleuze não vê no computador, e nos controles que ele permite estender em proporções inacreditáveis, uma espécie de democratização do conhecimento, nem o feliz retorno ao tranquilo lugar da vila em que todos se reencontram para constituir uma eventual força coletiva de comunicação. Ao contrário, ele vê nisso um forte instrumento de controle, o mais potente que se pode haver hoje. E tem–se também aí um aspecto conhecido que constitui o inverso do que dizíamos há pouco: todo mundo pode saber a todo instante o que faço, qual site consulto, o que compro; pode conhecer meus centros de interesse, meus gostos, minha situação bancária, minha vida conjugal, familiar etc. (Basta ver os sites que favorecem a difusão desse tipo de informações, do tipo Facebook ou Twitter). A hipótese nada tem de paranoica, porque não se trata de vigilância, mas de controle, isto é, de levantamento de informações. Cada um de nós se reduz a um pacote de informações. Pertencer ao seu computador é estar sob controle, não necessariamente policial, mas empresarial, comercial etc., que se exerce sobre as informações que constituem cada modo de existência. E esse controle se exerce ainda mais quando se trata de um computador central, de uma tela de controle (cf. a domótica¹).
(...)

David Lapoujade in Deleuze: política e informação, in Cadernos de Subjetividade, 2010

CAETANO VELOSO - O Que Tinha de Ser

OBSERVATÓRIO DO MEU ANJO DA GUARDA

Meu anjo anda meio cansado.
Sentou-se ao pé do meu leito
E dormiu.

O tempo apiedou-se dele
E parou a contagem das horas.

Estática,
Parei de validar os medos.

Um anjo que dorme
Vale mais que mil anjos de pé:
Meu anjo da guarda não vela
O meu anjo
Sonha por mim.


Nara Rúbia Ribeiro
QUEM É POETA?

A experiência poética não é só a de quem escreve o poema, mas também a de quem o lê. Em tempos de tecnologia industrial avançada e aparentemente vencedora, a poesia ocupa um lugar de criação "menor" e por isso, maior. Maior só o menor, o ínfimo. Não no sentido de uma forma "pequena", mas o "sem forma", como nos espaços infinitesimais do filme O incrível homem que encolheu ( Jack Arnold, 1957). A experiência poética se dá num processo de criação subjetiva (bem entendido, no mundo) onde a violência feita à sintaxe e à semântica afronta o caos no próprio terreno que é o da semiótica. Produzir signos a-significantes talvez seja a função do poeta/leitor como aventureiro dos universos indizíveis. Por isso experimenta o gosto das paixões sem dono. Ler um poema é ligar-se ao poema numa linha de fuga existencial, nem que  por um segundo. Zero para a possibilidade de interpretar ou compreender, ele, o sem-razão e sem-governo, o sem-sentido. O sentido é que é produzido pelo leitor. Assim, a experiência poética é  acessivel a todos. Basta sentir a pulsação das horas no coração da Terra. Isso não é fácil, mas vale a pena. 


A.M.

Água e sal

digo que foi o vento:
inundou meus olhos
de sal

(esse vento do mar
você sabe...)

mas é mentira:
não são lágrimas
de sal
é a pungência do azul


Carlos Machado
INCONTINÊNCIA VERBAL

De passagem por Goiânia (GO), nesta sexta-feira (21), Ciro Gomes abespinhou-se com um suposto militante do rival Jair Bolsonaro. A confusão ocorreu no instante em que Ciro discursava contra a ''cultura do ódio'' num ato político. Ao perceber a presença do que lhe pareceu ser um infiltrado, o candidato do PDT mudou o rumo da prosa.

“O que é isso aí? Uma camiseta?”, indagou Ciro, referindo-se à peça retirada do invasor —uma camiseta com o desenho de mãos e o número do partido de Bolsonaro, 17. Ciro pediu paciência aos seus partidários. Responsabilizou Bolsonaro pelo incidente.

“Olha o que é a cultura de ódio. Um bobinho, que não tem culpa de nada, acabou de criar uma confusão trazendo uma camisa do adversário aqui dentro. Por quê? Porque por ele, fanático como é, que nem o doido que enfiou a faca nele, acha que política deve resolvida assim. Tenham paciência com ele. Tenham paciência com ele. Ele não é culpado de nada. Ele é só vítima desse nazista filho da puta que nós vamos derrotar.”
(...)

Do Blog do Josias de Souza,21/09/2018, 22:40 hs

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Venezuela by Ohad Naharin performed by Batsheva Dance Company, 2017

O PODER DAS MÍDIAS

Ainda que meios de comunicação tradicionais e o tempo de propaganda política sejam fatores poderosos na hora de definir o voto do brasileiro, as mídias sociais têm sido uma crescente fonte de informação para o eleitor, e muito do que gera atenção no meio virtual acaba virando notícia nos meios de comunicação tradicional. Dessa forma, as campanhas têm usado as mídias sociais como importante ferramenta estratégica para chamar a atenção dos eleitores.
Estudos provam que o ambiente virtual teve uma influência grande na eleição de Donald Trump em 2016, e a forma como grupos que o apoiavam usaram as mídias sociais beneficiou o candidato. Grupos de extrema direita, que representavam 11% dos seguidores do então candidato, foram responsáveis por cerca de 60% dos retweets para ele durante o período eleitoral. A tendência se seguiu em outros países – na campanha do Brexit, nas eleições da Alemanha e da França, entre outros. No Brasil, a situação não é diferente. O sucesso do candidato Jair Bolsonaro é, em parte, explicado pelo seu alcance nas mídias sociais e o apoio de grupos que o capitalizam.
(...)

Rafael Schmuziger Goldweig, El País,21/09/2018, 18:19 hs

VICTOR BAUER


Hesita bastante. O inferno
é uma disciplina como qualquer outra.
Dias de vinho e rosas
pagos a peso de flagelo.
O arrebatado comércio dos sentidos?
Na cidade aberta a dementada luz.


Eduardo Pitta, 
RELAÇÕES PERIGOSAS

Jair Bolsonaro mantém com o economista Paulo Guedes um relacionamento que ele próprio chamou de “casamento hétero”. Coisa feita para durar até que a morte os separe. Pois bem. Falando para uma plateia restrita de investidores, o guru econômico do capitão expôs ideias tributárias sonegadas ao eleitor. Mencionou a hipótese de criação de um tributo nos moldes da velha CPMF. A harmonia trincou, porque a coisa vazou.

Certos casamentos são mesmo muito esquisitos. Casam-se pessoas que nem se conhecem: o economista ultraliberal e o capitão nacionalista, neófito nas artimanhas econômicas. Para usar uma terminologia infantil, própria do general Hamilton Mourão, vice de Bolsonaro, não é como a mamãe, que se casou com papai, e a vovó, que se casou com o vovô.

“Chega de impostos é o nosso lema”, escreveu Bolsonaro no Twitter, para desautorizar Paulo Guedes. O economista explicou que, na verdade, não se referia à velha taxação do cheque, mas a um imposto único, que substituiria outros tributos. Seja como o for, ficou entendido que Bolsonaro não estava brincando quando disse que jamais discutiria com o seu futuro ministro da Fazenda. Na verdade, eles nem se falam.

Do Blog do Josias de Souza, 20/09/2018, 20:41 hs

PSIQUIATRIA BIOLÓGICA

a volta do eletrochoque

Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro.

F. Nietzsche
A NECESSIDADE DE CRIAR

Qual é o conteúdo da filosofia? Muito simples: a filosofia é uma disciplina tão criativa, tão inventiva quanto qualquer outra disciplina, e ela consiste em criar ou inventar conceitos. E os conceitos não existem prontos e acabados numa espécie de céu em que aguardariam que uma filosofia os apanhasse. Os conceitos, é preciso fabricá-los. É claro que os conceitos não se fabricam assim, num piscar de olhos. Não nos dizemos, um belo dia: “Ei, vou inventar um conceito!”, assim como um pintor não se diz: “Ei, vou pintar um quadro!”, ou um cineasta: “Ei, vou fazer um filme!”. É preciso que haja uma necessidade, tanto em filosofia quanto nas outras áreas, do contrário não há nada. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Essa necessidade — que é uma coisa bastante complexa, caso ela exista — faz com que um filósofo (aqui pelo menos eu sei do que ele se ocupa) se proponha a inventar, a criar conceitos, e não a ocupar-se em refletir, mesmo sobre o cinema.
(...)

Gilles Deleuze, in O ato de criação, palestra em 1987  
aspectos

as coisas são
como estão?

o cão vê o gato
bem diferente do rato
(questão de defesa e ataque)

aurora e crepúsculo
são noite dia ou mestiços?
(depende do ponto de vista)

o sol é para todos
e a chuva?



Líria Porto

JOÃO BOSCO - Desenho de Giz

Muito do debate de ideias é substituído pela agressão pessoal. Basta diabolizar quem pensa de modo diverso. Existe uma variedade de demônios à disposição: uma cor política, uma cor de alma, uma cor de pele, uma origem social ou religiosa diversa.
(...)

Mia Couto

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

SER DE ESQUERDA SER DE DIREITA

Esquerda e Direita não remetem as essências. Elas são (ou deveriam ser) apenas linhas para um balizamento político. O que mudar? Por que mudar? Como mudar? Para que mudar? Mudar para quem? São questões amplas para problemas concretos. Todos (não só os políticos) falam em mudanças. Ninguém deixa de falar em mudanças, mormente num país com graves problemas sociais como o Brasil. Então, seguindo um pensamento das multiplicidades existenciais, é possível falar em muitas esquerdas e muitas direitas. Tudo vai depender de uma análise das instituições (formas sociais) em jogo. Seja um indivíduo: ele pode ter linhas de esquerda e direita misturadas, entrelaçadas, ao ponto de não ser possível distingui-las. Então, será preciso obter um conceito que abranja um desejo de mudança atravessando modos de subjetivação. Não indagando "quem sou?" (uma identidade) mas em quem me torno à medida que o tempo passa? Ora, se o tempo passa é porque tudo muda, queiramos ou não. Assim, o conceito de "irreversibilidade do tempo" é o que nos serve para pensar a esquerda e a direita para além ou aquém das essências ou formas imutáveis. O cidadão que pensa encarnar em si mesmo a esquerda ou a direita vive da fabricação de um imaginário narcísico e paranóico. Somos simultaneamente esquerda e direita postos sob um solo de incessante mudança, ainda que imperceptível. E para lidar com a vertigem do tempo e a antinomia esquerda~direita que tenta tamponar o devir, só a arte, não a monumental ou a mercantil, mas a arte como invenção de vida, de alegria, mesmo que às custas de demolições e sofrimentos inomináveis: a utopia revolucionária.

A.M. 

MICHAEL FLOHR


Só o inimigo não trai nunca.

Nelson Rodrigues

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Essa sombra que me persegue – sou eu
Quanto mais claro e mais brilhante é o dia
Maior e mais nítida é sua face de breu
Tenho medo de tudo que é espelho


Narlan Matos

VITALÍCIOS


terça-feira, 18 de setembro de 2018

Não entendo o porque das pessoas pensarem sempre no pior e não no mais provável que é pior ainda.

George Carlin

domingo, 16 de setembro de 2018

ATAQUE CIBERNÉTICO

O grupo “Mulheres Unidas contra Bolsonaro” no Facebook, que ganhou ampla repercussão nas últimas duas semanas por ter reunido milhares contra o candidato do PSL, é alvo de uma escalada de ataques cibernéticos, que vão desde a mudança do nome da mobilização, trocado para um de teor a favor militar reformado de ultradireita, à ameaça direta às moderadoras. Na madrugada de domingo, o grupo, que conta com um milhão de participantes e solicitações para participar e convites que alcançam 2 milhões de pessoas, estava fora do ar. "O grupo foi temporariamente removido após detectarmos atividade suspeita. Estamos trabalhando para esclarecer o que aconteceu e restaurar o grupo às administradoras", informou o Facebook. Enquanto isso, a campanha de Jair Bolsonaro no Twitter comemorava a mobilização de mulheres favoráveis a ele.
Desde a sexta-feira já havia sinais da ofensiva contra a mobilização. Neste dia, a administradora M.M. foi a principal afetada, e teve suas contas no Facebook e no WhatsApp invadidas. De acordo com as organizadoras, os ataques começaram por volta das 14h na sexta. Antes disso, moderadoras e administradoras haviam recebido ameaças em suas contas no WhatsApp. Os invasores exigiram que o grupo fosse extinto até às 24h de sexta-feira e tentaram intimidar as responsáveis pelo grupo ameaçando divulgar seus dados pessoais como como CPF, RG, Título de eleitor, nome da mãe, entre outros dados extremamente sensíveis.
(...)

Fernanda Becker, El País, 16/09/2018, 16:37 hs

sábado, 15 de setembro de 2018

Convém não facilitar com os bons, convém não provocar os puros. Há no ser humano, e ainda nos melhores, uma série de ferocidades adormecidas. O importante é não acordá-las.

Nelson Rodrigues
finjo-me esfinge
meia lua meu amor
é tua

a outra metade
guardei-a para o compadre
que me beija a boca
quando chegas tarde
da casa da outra



Líria Porto

ORDEM


O amor é uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer um reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, despertos noite após noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes.
O amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado, mas não pode impedir. Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de alho, que nesse caso não serve para nada. O amor é surdo frente ao Verbo divino e ao esconjuro das bruxas. Não há decreto de governo que possa com ele, nem poção capaz de evitá-lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis beberagens com garantia e tudo. 
(...)

Eduardo Galeano

ROBERTO MENESCAL - Bye Bye Brasil

UMA SÓ VOZ PARA O SER

(...) Com efeito, o essencial na univocidade não é que o Ser se diga num único sentido. É que ele se diga num único sentido de todas as suas diferenças individuantes ou modalidades intrínsecas. O Ser é o mesmo para todas estas modalidades, mas estas modalidades não são as mesmas. Ele é "igual" para todas, mas elas mesmas não são iguais. Ele se diz num só sentido de todas, mas elas mesmas não têm o mesmo sentido. É da essência do ser unívoco reportar-se a diferenças individuantes, mas estas diferenças não têm a mesma essência e não variam a essência do ser  como o branco se reporta a intensidades diversas, mas permanece essencialmente o mesmo branco. Não há duas "vias", como se acreditou no poema de Parmênides, mas uma só "voz" do Ser, que se reporta a todos os seus modos, os mais diversos, os mais variados, os mais diferenciados. O Ser se diz num único sentido de tudo aquilo de que ele se diz, mas aquilo de que ele se diz difere: ele se diz da própria diferença.
(...)

G. Deleuze in Diferença e Repetição 
Situação

to dormindo no lodo
da vala confortável onde dormem
os apaixonados

e lambendo sabão de cachorro
sorrindo, e sentindo cheiro de maçã
onde não tem

chamando os amigos pra almoçar
e deixando a comida esfriar
pra falar de você.



Bruna Beber

IVAN SLAVINSKI


TEMPOS ASSIM

A experiência psicótica (loucura num sentido não-médico) constitui e recheia o momento político brasileiro. Se por um lado há um desmoronamento da Realidade em suas crenças básicas (espécie de vazio de sentido), por outro lado tal vazio é preenchido por certezas subjetivas (psicossociais) absolutas, daí não questionáveis. Simplificando muito para efeito de exposição didática, temos uma esquerda ancorada num messianismo populista e uma direita guiada pelo conservadorismo autoritário. Evitamos aqui o uso do termo "fascismo" em função da ambiguidade semântica que o segue historicamente. Assim, tanto a esquerda quanto a direita poderiam receber o epíteto de fascistas. A odiosidade, o ressentimento, a querelância, a violência, os agenciamentos de conspiração (pseudo-teorias bem montadas), entre outros afetos destrutivos, povoam o imaginário destes segmentos sociais. Fazem dos seus respectivos militantes ou meros simpatizantes, figuras transtornadas não só pela distorção da Realidade, mas, pior, pela criação de uma realidade suplementar, numa palavra, o delírio. Este substituiu o diálogo,o debate de ideias, o encontro, a convivência das diferenças pela escalada da morte como aniquilamento do Outro. A tristeza se abate sobre as massas, sobre as pessoas, mesmo que elas se digam alegres ao consumir ordens implícitas secretadas por agências de comunicação e informação. Difícil não ser pessimista em tempos assim.

A.M.


THELONIUS MONK - Ruby My Dear

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Sabedoria Classe B

Vamos falar dos objetos
para ninguém sair ferido.
Os deuses e as idéias
sempre nos dividiram.
Vamos falar apenas dos objetos.
Deixemos em paz
o novo amor de Rachel,
deixemos em paz
o homossexualismo do patriarca.
Deixemo-nos em paz.


Alberto da Cunha Lima
ARIAS E A ESPERANÇA CRISTÃ

As mulheres brasileiras são a maioria (53%) entre os eleitores nas eleições presidenciais que estão à porta. E são sempre as que mais votam. Querendo, elas podem decidir quem presidirá o país em um dos momentos mais difíceis e perigosos após a ditadura militar. A democracia, que muitos vêem ameaçada pelo ressurgimento de uma extrema direita militarista e violenta, presidida pelo capitão da reserva, Bolsonaro, poderá ser salva graças às mulheres.

Elas começaram a se mexer com força, como indica o movimento "Mulheres Unidas contra Bolsonaro", que já coletou mais de um milhão de assinaturas no Facebook e está conseguindo 10 mil membros por minuto. É uma aposta feminina contra o ressurgimento de uma política que visa resolver os problemas deste convulsionado continente com balas, oferecendo a violência como um talismã para a solução de todos os males.

Sempre apostei em uma solução positiva para este país, mesmo quando tudo parecia ficar política e socialmente sombrio. Quando, meses atrás, soavam como luto os sinos da abstenção nas eleições, alcançando 40% do eleitorado, continuei acreditando que, no final, a sensatez triunfaria, sob pena de colocar o país diante de um abismo com sérias repercussões econômicas e morais que acabam atingindo sempre os mais frágeis. Aqueles que hoje parecem dispostos a não votar ou a anular o voto, já são cada vez em menor número e estão se aproximando das taxas normais das eleições anteriores. O senso de responsabilidade está vencendo.
(...)

Juan Arias, El País, 14/09/2018, 12:59 hs

LA BAMBA - Playing For Change

Só as mulheres sabem o quanto se morre e nasce no momento do parto. Porque não são dois corpos que se separam: é o dilacerar de um único corpo, de um corpo que queria guardar duas vidas. Não é a dor física que, naquele momento mais aflige a mulher. É uma outra dor. É uma parte de si que se desprende, o rasgar de uma estrada que, aos poucos, nos devora os filhos, um por um.

Mia Couto
10 reflequições

I- Todo mundo viaja. Poucos chegam Lá. 

II- As guerras acabam. Mas as ruas nunca ficam prontas. 

III- Tinha um ar soberbo. Totalmente poluído. 

IV- Dizia "Minha cara metade", como quem reclama do preço. 

V- Confesso: sou pior sozinho do que mal acompanhado. 

VI- Repara: quando você aprende uma palavra nova, ela aparece em todos os lugares. 

VII- Solitário dorme sozinho. Rejeitado acorda sozinho. 

VIII- Mostrei-lhe a lua no horizonte, redonda, linda. Mas ela prefere o Faustão. 

IX- Não há pessoa mais chata do que você mesmo. Fuja da solidão. 

X- Fica frio, amigo, não foi o brasileiro o inventor da corrupção. Baseado no mais profundo ensinamento da minha religião, a corrupção começou no Princípio dos Princípios, justamente no Jardim do Éden. Quando os dois proto-Safados, corrompidos pela Serpente, desrespeitaram a Lei do Senhor e comeram o Fruto da Ciência do Bem e do Mal, o desrespeito espantoso ficou conhecido como A Queda. Mas não passou assim pelo Todo (como era conhecido o Todo-Poderoso), que condenou os três culpados por uso indevido de bem público e formação de quadrilha. Logo o Anjo Gabriel, executor das ordens do Supremo, expulsou Adão e Eva do Paraíso, obrigando-os a viver na periferia, a leste do Éden. Mas a Serpente, misteriosamente, nunca foi punida.


Millor Fernandes

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

ALEXIS ZAITSEV


adiamentos

a lua esperava o sol
redonda um talismã
quando ela se despiu
ficou de manhã

o sol lambia a lua
o meio o lado as beiras
lamberia a face oculta
a nuvem veio

só amanhã



Líria Porto.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

DANDO A LUZ


Não lhe disse que gostei, disse-lhe que me senti fascinado. A diferença é grande.

Oscar Wilde
Farra dos Guardanapos de Sérgio Cabral, ainda

Livro lança luz sobre episódio de ostentação em Paris, mas mistérios continuam sem respostas  
Devorei em um dia A Farra dos Guardanapos, do jornalista Sílvio Barsetti. No que se propõe, o livro é excelente. Trata-se da mais aprofundada reportagem já feita sobre a festança em Paris que reuniu o ex-governador Sérgio Cabral, alguns de seus secretários e empresários amigos do poder. Há detalhes saborosos da noite de 14 de setembro de 2009 em que a turma cabralina dançou com guardanapos na cabeça para celebrar uma homenagem dada pelo governo francês a seu líder. O evento marcou o auge de uma administração que caminhava tranquila para uma reeleição no ano seguinte e voos mais altos no futuro (na festa, Cabral era chamado de “Mr. President”, conta Barsetti).

Eis algumas das curiosidades que li: 1) A farra de uma noite custou R$ 1,5 milhão. 2) Cerca de 300 garrafas de vinho e uísque foram consumidas. “Se eu fizesse um exame de sangue ia dar para repor umas três garrafas de Barca Velha e Moet Chandon", divertiu-se o ex-governador no dia seguinte. 3) O menu do jantar: ravióli de lagosta, bacalhau com chanterelles ou atum grelhado com brotos de espinafre. Sobremesa: dame blanche, um gelado de baunilha com calda de chocolate, coberto por amêndoas laminadas. 4) Ao som de “You never can tell”, de Chuck Berry, Fernando Cavendish, Sérgio Côrtes e cia. se exibiram na pista de dança e lembraram a cena clássica de Uma Thurman e John Travolta em Pulp fiction, de Quentin Tarantino.
(...)

Thiago Prado, Época, 10/09/2018


terça-feira, 11 de setembro de 2018

IVANS LINS - Aos Nossos Filhos

A vida é uma ferida?
O coração lateja?
O sangue é uma parede cega?
E se tudo, de repente?

Eduardo Pitta, 
MAIS FOME

Na batalha da humanidade contra a fome, os seres humanos estão perdendo. Em 2017, 821 milhões de pessoas iam dormir todos os dias sem ingerir as calorias mínimas para suas atividades diárias, 15 milhões a mais do que no ano anterior, o que significa um retrocesso a níveis de 2010. Os dados reunidos no relatório A Segurança Alimentar e a Nutrição no Mundo da ONU, publicado nesta terça-feira, confirmam que não é um aumento isolado; ainda que os especialistas resistam em falar de uma mudança de tendência, já são três anos seguidos de aumento.
(...)

Alejandra Agudo, El País, Madri, 11/09/2018, 10:51 hs

MARTA NAEL


segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Amanhecência

Quero ficar só, 
para respirar a estrela. 
Deixar a noite escorrer a mágoa, 
dissolvê-la em enxurrada. 
Não deixar nada a comprimir o peito. 
Quero a madrugada de tal jeito, 
que a alma possa flanar sem pouso certo 
e sugar o primeiro brilho esperto 
de uma gota. 
Beijar a pétala rota 
pelo mau jeito de um espinho, 
degludir devagarinho 
o mel do espasmo nascente. 
Quero o orgasmo 
do pólen, da semente; 
eu quero o sumo. 
Para recompor a vida, 
pra renascer o afeto, 
pra retomar o rumo. 


Flora Figueiredo

PROFISSIONAIS DA VIOLÊNCIA

“Se querem usar a violência, os profissionais da violência somos nós”. A frase é do general Hamilton Mourão, candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro (PSL). Foi dita à revista Crusoé, após o ataque à faca contra o candidato na cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais, em 6 de setembro. É uma frase para se prestar toda atenção.
Os vices com frequência têm chegado à presidência no Brasil. Mas o mais importante é o que a declaração nos conta sobre a chapa que, sem Lula, está em primeiro lugar nas intenções de voto para a disputa presidencial das eleições de outubro. O que significa um candidato a vice-presidente se anunciar como “nós” e como “profissional da violência” num momento de tanta gravidade para o Brasil?
Abalado pela brutalidade do episódio, Mourão poderia ter escolhido pelo menos duas variações que mudariam a intenção: “os profissionais da segurança” ou “os profissionais da proteção”. Palavras como segurança e proteção levariam à ideia de amparo e de defesa —e não à ideia de ataque, de retaliação e de confronto. Mas não. Mourão usou um “nós”— e usou “profissionais da violência”. Ao ser perguntado quem era o “nós”, o general disse que se referia “aos militares e ao uso da força pelo Estado.
(...)

Eliane Brum, El País, 10/09/2018, 19:12 hs

LEMBRETE


domingo, 9 de setembro de 2018

Não é da luz que carecemos. Milenarmente a grande estrela iluminou a Terra e, afinal, nós pouco aprendemos a ver. O mundo necessita ser visto sob outra luz: a luz do luar, essa claridade que cai com respeito e delicadeza. Só o luar revela o lado feminino dos seres. Só a lua revela intimidade da nossa morada terrestre. Necessitamos não do nascer do Sol. Carecemos do nascer da Terra.


Mia Couto

PATRÍCIA MARX & SEU JORGE - Espelhos d'Água

"DELIRA-SE O MUNDO"

(...)
Peguem uma coisa, uma simples experiência objetiva como a da música, a música que vocês escutam. Em quê se pode falar de um fascismo potencial na música, se se pode falar de um fascismo potencial? É que a música, me parece, é o processo em estado puro. É por aí que, de todas as artes, essa seria sem dúvida a arte mais adequada, a mais imediatamente adequada. Para apreender sob a pintura um processo da pintura, é preciso muito mais esforço. Quer dizer, apreender os fluxos da pintura é muito mais difícil que apreender imediatamente o fluxo sonoro da música. E, ainda aí, eu diria que, para mim, a música não é uma questão de estrutura, nem de forma, mas de processo. Penso, muito rapidamente, para fazer aproximações, que um dos músicos que mais pensa a música em termos de processo é John Cage. Bem, quero dizer, a música é processo. De certa maneira, ela é amor à vida, fundamentalmente.

Ela é mesmo criação de vida. Ora, será por acaso que, ao mesmo tempo, eu devo dizer o contraditório, que a música nos inspira, em certos momentos, e que não há música que não nos inspire, em certos momentos, um bastante bizarro, um estranho desejo, que é preciso chamar de abolição, um desejo de extinção, um desejo de extinção sonoro, uma morte tranquila? E que na experiência musical mais simples – e aí não há privilégios de uma sobre outra; eu penso que é verdade de toda música. Que é verdade da música pop, que é verdade da música clássica … Que são os dois ao mesmo tempo, e um pego pelo outro, uma criação vital sob forma de linha de fuga ou sob a forma de processo, e implantado lá dentro um risco constante de conversão do processo numa espécie de desejo de abolição, de desejo de morte. E que a música carrega tanto esse desejo de morte quanto deixa de trazer o processo. De modo que, nesse nível, trata-se realmente de uma parte muito incerta, que cada um joga sem saber. Nunca se está certo de que não é sua vez de quebrar, quem pode dizer? E, ainda uma vez, não se quebra sob muito forte agitação visível. Quebra-se, talvez, no momento que, de certo ponto de vista, é o melhor. Não se sabe, não se sabe.

Simplesmente, parece-me que a psiquiatria e a psicanálise não prestam serviço, cada vez que se propõem a esses fenômenos de interpretação que podem ser vistos como interpretações pueris. Isso desonra as pessoas … Acontece que as pessoas ficam contentes. Elas aguentam escutar a isso. É assunto delas, uma vez que funcione. Mas eu penso que é desonroso aceitar escutar – ao menos é preciso muito sofrer para suportá-lo – durante horas e horas tudo isso: “É porque você não está de acordo com seu pai e sua mãe que tudo isso se dá”. “Pois há alguma coisa que se passa da parte de seu pai”. Seja em termos de estrutura, seja em termos de imagem de pessoa. Ainda uma vez, personologia e estrutura, isso me parece tão parecido que, de qualquer maneira, deve-se ter, me parece, a elementar dignidade de adoecer, ou de se tornar louco, à necessidade de muitas outras pressões e muitas outras aventuras que não estas.

Então, nesse sentido, eu respondo, se bem compreendi a questão: a ideia da esquizofrenia como processo implica que esse processo resvale incessantemente na produção de uma espécie de vítima do processo. Pode-se ser, a todo instante, vítima do processo que se carrega em si. E, por processo, ainda uma vez, eu invoco – pois, aí, torna-se uma linguagem comum, que nos pertence a todos – os grandes nomes como Kleist, Rimbaud, etc. Bom, Rimbaud, o que dizer de Rimbaud? O que é esse homem? Ele sai pela Etiópia, ou seja, ele prolonga sua linha de fuga. Mas ele o faz de que maneira? Essa espécie de renegação de todo seu passado: é algo que não é mais suportável para ele. O que isso vai virar? Como vai virar? É sobre esta linha que ocorre um verdadeiro devir, ainda uma vez. Ora, esse devir também pode virar um devir mortífero. Então, se há uma lição, é que não se trata somente de desenredar as linhas que compõem alguém. É tentar, por não importa qual meio, impedir que as linhas se tornem linhas de morte.

Ora, nesse ponto, não há solução milagrosa. Creio apenas que há uma espécie de complacência que é extremamente duvidosa: a complacência ao discurso psicanalítico faz nossa desonra. Há muito tempo que o romancista Lawrence dizia que havia uma espécie de reação amena à psicanálise. Ele dizia: “Mas tudo isso é repugnante”. Lawrence é muito forte, vocês compreendem? Pois não é alguém a quem se possa dizer: “Ah, você está chocado pela sexualidade”? Ele não estava chocado pela sexualidade, ele até mesmo encabeçava uma espécie de descoberta, e uma singular descoberta, da sexualidade. Mas ele tem a impressão de que a psicanálise é repugnante. O que ele quer dizer? De qualquer forma, não é Lawrence que dirá: “Eu protesto contra a ideia de que tudo seja sexual”. Pelo contrário, isso não o incomoda. Ele diz: “Mas, vocês percebem o que eles fazem da sexualidade? Vocês se dão conta”? “Mas é uma vergonha!”, ele diz. A sexualidade? Ela tem relação com o quê? Bom, ele diz a mesma coisa que acabo de dizer sobre o processo. Ele diz: “A sexualidade? É evidente que tem a ver com o sol”. É uma questão de delirar o mundo, e, de modo algum, se faz uma concepção romântica da sexualidade. É assim aquilo que vocês querem, aquilo que se gosta. Por exemplo, o tipo de mulher ou homem que se persegue, aquilo que se espera: vai muito além das pessoas tudo isso.

Delira-se o mundo. Com efeito, dependendo, pode ser tanto um oásis, quanto um deserto, quanto tudo o que vocês quiserem. Em todo caso, a ideia de que tudo isso remonta a Édipo, ou seja, a uma constelação pai–mãe, mesmo que se adicione a Lei, é algo de escandaloso. Isso tudo é desonroso. É evidente que a sexualidade não é isso. Quando o presidente Schreber diz, literalmente: “Eu tenho raios de sol no ânus”. Ele os sente. Ele sente os raios do sol. Ele os sente dessa maneira. Bom, se tentamos remeter essas relações a seu pai, eu penso que corremos o risco de não compreendermos coisa alguma nisso. Nesse momento, o que é toda a sexualidade então? Quando Lawrence protesta contra a psicanálise, ele diz: “Mas eles não querem nada além do sujo segredinho? Um pequeno segredo miserável. Realmente miserável essa história de querer matar seu pai e dormir com sua mãe. É miserável”. Então, pode-se interpretar em termos de estrutura: continua sendo miserável. Vocês se dão conta? Não, mas, jamais, jamais … É uma ideia corrompida essa. Quero dizer, é preciso reagir contra a psicanálise e contra a psiquiatria psicanalisante em nome da sexualidade. Pois é inteiramente outra coisa. Na sexualidade há um verdadeiro processo que, também nesse caso, pode tomar um rumo mortífero. Muito bem, eu queria dizer tudo isso. Então, eu continuo. É por isso que um ano…
(...)

Gilles Deleuze, aula:O Anti-édipo e outras reflexões, Vincennes, 27/05/1980