domingo, 9 de setembro de 2018

"DELIRA-SE O MUNDO"

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Peguem uma coisa, uma simples experiência objetiva como a da música, a música que vocês escutam. Em quê se pode falar de um fascismo potencial na música, se se pode falar de um fascismo potencial? É que a música, me parece, é o processo em estado puro. É por aí que, de todas as artes, essa seria sem dúvida a arte mais adequada, a mais imediatamente adequada. Para apreender sob a pintura um processo da pintura, é preciso muito mais esforço. Quer dizer, apreender os fluxos da pintura é muito mais difícil que apreender imediatamente o fluxo sonoro da música. E, ainda aí, eu diria que, para mim, a música não é uma questão de estrutura, nem de forma, mas de processo. Penso, muito rapidamente, para fazer aproximações, que um dos músicos que mais pensa a música em termos de processo é John Cage. Bem, quero dizer, a música é processo. De certa maneira, ela é amor à vida, fundamentalmente.

Ela é mesmo criação de vida. Ora, será por acaso que, ao mesmo tempo, eu devo dizer o contraditório, que a música nos inspira, em certos momentos, e que não há música que não nos inspire, em certos momentos, um bastante bizarro, um estranho desejo, que é preciso chamar de abolição, um desejo de extinção, um desejo de extinção sonoro, uma morte tranquila? E que na experiência musical mais simples – e aí não há privilégios de uma sobre outra; eu penso que é verdade de toda música. Que é verdade da música pop, que é verdade da música clássica … Que são os dois ao mesmo tempo, e um pego pelo outro, uma criação vital sob forma de linha de fuga ou sob a forma de processo, e implantado lá dentro um risco constante de conversão do processo numa espécie de desejo de abolição, de desejo de morte. E que a música carrega tanto esse desejo de morte quanto deixa de trazer o processo. De modo que, nesse nível, trata-se realmente de uma parte muito incerta, que cada um joga sem saber. Nunca se está certo de que não é sua vez de quebrar, quem pode dizer? E, ainda uma vez, não se quebra sob muito forte agitação visível. Quebra-se, talvez, no momento que, de certo ponto de vista, é o melhor. Não se sabe, não se sabe.

Simplesmente, parece-me que a psiquiatria e a psicanálise não prestam serviço, cada vez que se propõem a esses fenômenos de interpretação que podem ser vistos como interpretações pueris. Isso desonra as pessoas … Acontece que as pessoas ficam contentes. Elas aguentam escutar a isso. É assunto delas, uma vez que funcione. Mas eu penso que é desonroso aceitar escutar – ao menos é preciso muito sofrer para suportá-lo – durante horas e horas tudo isso: “É porque você não está de acordo com seu pai e sua mãe que tudo isso se dá”. “Pois há alguma coisa que se passa da parte de seu pai”. Seja em termos de estrutura, seja em termos de imagem de pessoa. Ainda uma vez, personologia e estrutura, isso me parece tão parecido que, de qualquer maneira, deve-se ter, me parece, a elementar dignidade de adoecer, ou de se tornar louco, à necessidade de muitas outras pressões e muitas outras aventuras que não estas.

Então, nesse sentido, eu respondo, se bem compreendi a questão: a ideia da esquizofrenia como processo implica que esse processo resvale incessantemente na produção de uma espécie de vítima do processo. Pode-se ser, a todo instante, vítima do processo que se carrega em si. E, por processo, ainda uma vez, eu invoco – pois, aí, torna-se uma linguagem comum, que nos pertence a todos – os grandes nomes como Kleist, Rimbaud, etc. Bom, Rimbaud, o que dizer de Rimbaud? O que é esse homem? Ele sai pela Etiópia, ou seja, ele prolonga sua linha de fuga. Mas ele o faz de que maneira? Essa espécie de renegação de todo seu passado: é algo que não é mais suportável para ele. O que isso vai virar? Como vai virar? É sobre esta linha que ocorre um verdadeiro devir, ainda uma vez. Ora, esse devir também pode virar um devir mortífero. Então, se há uma lição, é que não se trata somente de desenredar as linhas que compõem alguém. É tentar, por não importa qual meio, impedir que as linhas se tornem linhas de morte.

Ora, nesse ponto, não há solução milagrosa. Creio apenas que há uma espécie de complacência que é extremamente duvidosa: a complacência ao discurso psicanalítico faz nossa desonra. Há muito tempo que o romancista Lawrence dizia que havia uma espécie de reação amena à psicanálise. Ele dizia: “Mas tudo isso é repugnante”. Lawrence é muito forte, vocês compreendem? Pois não é alguém a quem se possa dizer: “Ah, você está chocado pela sexualidade”? Ele não estava chocado pela sexualidade, ele até mesmo encabeçava uma espécie de descoberta, e uma singular descoberta, da sexualidade. Mas ele tem a impressão de que a psicanálise é repugnante. O que ele quer dizer? De qualquer forma, não é Lawrence que dirá: “Eu protesto contra a ideia de que tudo seja sexual”. Pelo contrário, isso não o incomoda. Ele diz: “Mas, vocês percebem o que eles fazem da sexualidade? Vocês se dão conta”? “Mas é uma vergonha!”, ele diz. A sexualidade? Ela tem relação com o quê? Bom, ele diz a mesma coisa que acabo de dizer sobre o processo. Ele diz: “A sexualidade? É evidente que tem a ver com o sol”. É uma questão de delirar o mundo, e, de modo algum, se faz uma concepção romântica da sexualidade. É assim aquilo que vocês querem, aquilo que se gosta. Por exemplo, o tipo de mulher ou homem que se persegue, aquilo que se espera: vai muito além das pessoas tudo isso.

Delira-se o mundo. Com efeito, dependendo, pode ser tanto um oásis, quanto um deserto, quanto tudo o que vocês quiserem. Em todo caso, a ideia de que tudo isso remonta a Édipo, ou seja, a uma constelação pai–mãe, mesmo que se adicione a Lei, é algo de escandaloso. Isso tudo é desonroso. É evidente que a sexualidade não é isso. Quando o presidente Schreber diz, literalmente: “Eu tenho raios de sol no ânus”. Ele os sente. Ele sente os raios do sol. Ele os sente dessa maneira. Bom, se tentamos remeter essas relações a seu pai, eu penso que corremos o risco de não compreendermos coisa alguma nisso. Nesse momento, o que é toda a sexualidade então? Quando Lawrence protesta contra a psicanálise, ele diz: “Mas eles não querem nada além do sujo segredinho? Um pequeno segredo miserável. Realmente miserável essa história de querer matar seu pai e dormir com sua mãe. É miserável”. Então, pode-se interpretar em termos de estrutura: continua sendo miserável. Vocês se dão conta? Não, mas, jamais, jamais … É uma ideia corrompida essa. Quero dizer, é preciso reagir contra a psicanálise e contra a psiquiatria psicanalisante em nome da sexualidade. Pois é inteiramente outra coisa. Na sexualidade há um verdadeiro processo que, também nesse caso, pode tomar um rumo mortífero. Muito bem, eu queria dizer tudo isso. Então, eu continuo. É por isso que um ano…
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Gilles Deleuze, aula:O Anti-édipo e outras reflexões, Vincennes, 27/05/1980

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