quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

QUEM SOFRE?


Problematizando  tais sofrimentos teríamos:  que  afetos[2] compõem o    sofrimento do  psicótico? Qual a “natureza”  de  tal sofrimento? A família  (e  a sociedade)  sofrem   pelo paciente  ou sofrem  por  si mesmas?   O    psicótico  vive  sob    um estigma. Ou seja, sendo ele  próprio    um  estigma,     carrega   sobre   si a  instituição   da   doença mental[3]  e  o que  lhe é  imanente:  a  vontade   de   controlar.  Assim, a   psiquiatria   é atravessada por um  objetivo  maior e inconfessável:  controlar,  extinguindo, se possível,  o  sintoma  dos  que  são diagnosticados  como  doentes. Numa  sociedade  de controle como  a  do  século  XXI,[4]  este ato  se  inscreve  em modos  de subjetivação apassivados.  O  sofrimento  psíquico do  paciente  torna-se   tributário de  um  modelo de pensar  que  representa a  subjetividade como  um eu  agônico e/ou  estranho  aos  padrões  sociais. Apesar  da  pergunta  “o que  você  sente?” ser  obrigatória na  propedêutica  médica, o interesse maior   é detectar    os  sintomas  produtivos( delírios e alucinações) e o que  eles  implicam  como dano   às  condutas  sociais. Incomodam?  Pelo menos, no caso  das  psicoses,  isso é  buscado  pela  psiquiatria,  já  que o   sofrimento   só  é  levado  em conta  como dado  objetivo.  O paciente  sofre de  que? Ele  sofre porque  está  doente. Esta é   uma  afirmação redundante  e ao mesmo tempo  insuficiente  para se  chegar ao   universo  de sentido psicótico. Na  verdade  o  paciente sofre  de  si mesmo, do que  lhe  foi  feito, inclusive  por  ele mesmo. Mas não  é  um   sofrimento do  eu ou da  consciência  dita  alienada. Não  é um sofrimento  racionalizável  ou humano.  É um afeto  triste  que  vem  do mundo e   corrói  em maior ou menor  proporção suas  produções de  desejo.  Trata-se do corpo. Os  afetos  que  compõem  o seu  sofrimento   são afetos  do corpo, são  o  próprio corpo em processos de  anti-produção. Quando dissemos  “ do mundo”, significa    que a  origem da  doença está  na  sensação de  si que  ele  experimenta, ao tempo em que  o mundo  lhe  devora,   mesmo    que  esse  mundo  seja, por  exemplo, um circuito  sináptico  no interior  do seu  crâneo. O mundo  é  o paciente  e vice  versa. Essa  é a  base  conceitual para se  pensar  o  sofrimento  como  “sofrimento  do  mundo”     ao modo  poético de  dizer .  O  paciente  recolhe   do mundo   afetos   tristes que o  destroem  por  dentro. O eu,  um  artefato psíquico útil para  a comunicação,   é  atingido. Ele  não  mais  coordena  ações   práticas  ou  o faz com dificuldade. Assim, surge   a  pergunta  clínica:  um  apragmatismo social   se  revela  com que   afetos? O que  sente   aquele que  rompeu  com os  códigos  sociais  vigentes? Sente-se  doente? (...)


Antonio Moura



[2] Os  afetos  são a  expressão e a materialidade do desejo no  nível  do encontro entre  os  corpos. Referem-se ao aumento ou a   diminuição da potência  de  existir  do paciente. Cf  Deleuze, G.,Espinosa – Filosofia  prática, S. Paulo, Escuta, 2002, p. 55 a  58 e  73  a  79, principalmente.

[3] Referimo-nos à  instituição  da  doença  mental  no sentido  que  lhe  dá  a  Análise  Institucional: forma  social  abstrata  ou  forma  de relação social que se operacionaliza em organizações  e/ou dispositivos.


[4] Cf  Deleuze, G., Post-scriptum  sobre as sociedades de  controle in Conversações, Rio, Ed. 34,1992, p.219.

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