QUEM SOFRE?
Problematizando tais sofrimentos teríamos: que afetos[2] compõem o sofrimento do psicótico? Qual a “natureza” de tal sofrimento? A família (e a sociedade) sofrem pelo paciente ou sofrem por si mesmas? O psicótico vive sob um estigma. Ou seja, sendo ele próprio um estigma, carrega sobre si a instituição da doença mental[3] e o que lhe é imanente: a vontade de controlar. Assim, a psiquiatria é atravessada por um objetivo maior e inconfessável: controlar, extinguindo, se possível, o sintoma dos que são diagnosticados como doentes. Numa sociedade de controle como a do século XXI,[4] este ato se inscreve em modos de subjetivação apassivados. O sofrimento psíquico do paciente torna-se tributário de um modelo de pensar que representa a subjetividade como um eu agônico e/ou estranho aos padrões sociais. Apesar da pergunta “o que você sente?” ser obrigatória na propedêutica médica, o interesse maior é detectar os sintomas produtivos( delírios e alucinações) e o que eles implicam como dano às condutas sociais. Incomodam? Pelo menos, no caso das psicoses, isso é buscado pela psiquiatria, já que o sofrimento só é levado em conta como dado objetivo. O paciente sofre de que? Ele sofre porque está doente. Esta é uma afirmação redundante e ao mesmo tempo insuficiente para se chegar ao universo de sentido psicótico. Na verdade o paciente sofre de si mesmo, do que lhe foi feito, inclusive por ele mesmo. Mas não é um sofrimento do eu ou da consciência dita alienada. Não é um sofrimento racionalizável ou humano. É um afeto triste que vem do mundo e corrói em maior ou menor proporção suas produções de desejo. Trata-se do corpo. Os afetos que compõem o seu sofrimento são afetos do corpo, são o próprio corpo em processos de anti-produção. Quando dissemos “ do mundo”, significa que a origem da doença está na sensação de si que ele experimenta, ao tempo em que o mundo lhe devora, mesmo que esse mundo seja, por exemplo, um circuito sináptico no interior do seu crâneo. O mundo é o paciente e vice versa. Essa é a base conceitual para se pensar o sofrimento como “sofrimento do mundo” ao modo poético de dizer . O paciente recolhe do mundo afetos tristes que o destroem por dentro. O eu, um artefato psíquico útil para a comunicação, é atingido. Ele não mais coordena ações práticas ou o faz com dificuldade. Assim, surge a pergunta clínica: um apragmatismo social se revela com que afetos? O que sente aquele que rompeu com os códigos sociais vigentes? Sente-se doente? (...)
Antonio Moura
[2] Os afetos são a expressão e a materialidade do desejo no nível do encontro entre os corpos. Referem-se ao aumento ou a diminuição da potência de existir do paciente. Cf Deleuze, G.,Espinosa – Filosofia prática, S. Paulo, Escuta, 2002, p. 55 a 58 e 73 a 79, principalmente.
[3] Referimo-nos à instituição da doença mental no sentido que lhe dá a Análise Institucional: forma social abstrata ou forma de relação social que se operacionaliza em organizações e/ou dispositivos.
[4] Cf Deleuze, G., Post-scriptum sobre as sociedades de controle in Conversações, Rio, Ed. 34,1992, p.219.
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