LEMBRANÇAS DE UM FEITICEIRO
(...) Num devir-animal, estamos sempre
lidando com uma matilha, um bando, uma população, um povoamento, em
suma, com uma multiplicidade. Nós, feiticeiros, sabemos disso desde
sempre. Pode acontecer que outras instâncias, aliás muito diferentes entre si,
tenham uma outra consideração do animal: pode-se reter ou extrair do
animal certas características, espécies e gêneros, formas e funções, etc. A
sociedade e o Estado precisam das características animais para classificar os
homens; a história natural e a ciência precisam de características para
classificar os próprios animais. O serialismo e o estruturalismo ora graduam
características segundo suas semelhanças, ora as ordenam segundo suas
diferenças. As características animais podem ser míticas ou científicas. Mas
não nos interessamos pelas características; interessamo-nos pelos modos de
expansão, de propagação, de ocupação, de contágio, de povoamento. Eu sou
legião. Fascinação do homem dos lobos diante dos vários lobos que olham
para ele. O que seria um lobo sozinho? e uma baleia, um piolho, um rato,
uma mosca? Belzebu é o diabo, mas o diabo como senhor das moscas. O
lobo não é primeiro uma característica ou um certo número de
características; ele comporta uma proliferação, sendo, pois, uma lobiferação.
O piolho é uma piolhiferação..., etc. O que é um grito, independentemente da
população que ele chama ou que ele convoca como testemunha? Virgínia
Woolf não se deixa viver como um macaco ou um peixe, mas como uma
penca de macacos, um cardume de peixes, segundo uma relação de devir
variável com as pessoas das quais ela se aproxima. Não queremos dizer que
certos animais vivem em matilhas; não queremos entrar em ridículas
classificações evolucionistas à Ia Lorentz, onde haveria matilhas inferiores e
sociedades superiores. Dizemos que todo animal é antes um bando, uma
matilha. Que ele tem seus modos de matilha, mais do que características,
mesmo que caiba fazer distinções no interior desses modos. É esse o ponto
em que o homem tem a ver com o animal. Não nos tornamos animal sem um
fascínio pela matilha, pela multiplicidade. Fascínio do fora? Ou a
multiplicidade que nos fascina já está em relação com uma multiplicidade
que habita dentro de nós?
(...)
G. Deleuze e F. Guattari in Mil Platôs - vol 4
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