sábado, 3 de outubro de 2015

LEMBRANÇAS DE UM FEITICEIRO

(...) Num devir-animal, estamos sempre lidando com uma matilha, um bando, uma população, um povoamento, em suma, com uma multiplicidade. Nós, feiticeiros, sabemos disso desde sempre. Pode acontecer que outras instâncias, aliás muito diferentes entre si, tenham uma outra consideração do animal: pode-se reter ou extrair do animal certas características, espécies e gêneros, formas e funções, etc. A sociedade e o Estado precisam das características animais para classificar os homens; a história natural e a ciência precisam de características para classificar os próprios animais. O serialismo e o estruturalismo ora graduam características segundo suas semelhanças, ora as ordenam segundo suas diferenças. As características animais podem ser míticas ou científicas. Mas não nos interessamos pelas características; interessamo-nos pelos modos de expansão, de propagação, de ocupação, de contágio, de povoamento. Eu sou legião. Fascinação do homem dos lobos diante dos vários lobos que olham para ele. O que seria um lobo sozinho? e uma baleia, um piolho, um rato, uma mosca? Belzebu é o diabo, mas o diabo como senhor das moscas. O lobo não é primeiro uma característica ou um certo número de características; ele comporta uma proliferação, sendo, pois, uma lobiferação. O piolho é uma piolhiferação..., etc. O que é um grito, independentemente da população que ele chama ou que ele convoca como testemunha? Virgínia Woolf não se deixa viver como um macaco ou um peixe, mas como uma penca de macacos, um cardume de peixes, segundo uma relação de devir variável com as pessoas das quais ela se aproxima. Não queremos dizer que certos animais vivem em matilhas; não queremos entrar em ridículas classificações evolucionistas à Ia Lorentz, onde haveria matilhas inferiores e sociedades superiores. Dizemos que todo animal é antes um bando, uma matilha. Que ele tem seus modos de matilha, mais do que características, mesmo que caiba fazer distinções no interior desses modos. É esse o ponto em que o homem tem a ver com o animal. Não nos tornamos animal sem um fascínio pela matilha, pela multiplicidade. Fascínio do fora? Ou a multiplicidade que nos fascina já está em relação com uma multiplicidade que habita dentro de nós?
(...)
G. Deleuze e F. Guattari in Mil Platôs - vol 4

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