terça-feira, 8 de março de 2016

QUEM DELIRA?

(...) Como começa um delírio? É possível que o cinema seja capaz de apreender o movimento da loucura,  precisamente porque ele não é analítico nem regressivo, mas explora um campo global de coexistência. Um filme de Nicholas Ray representa supostamente a formação de um delírio com cortisona: um pai excessivamente cansado, professor de colégio, que faz horas extras numa estação de rádio táxi, é tratado por ter perturbações cardíacas. Ele começa a delirar sobre o sistema de educação em geral, a necessidade de restaurar uma raça pura, a salvação da ordem moral e social, passando depois à religião, à oportunidade de um retorno à Bíblia, Abraão. Mas o que foi que Abraão fez? Ora, o que ele fez foi justamente matar ou pretender matar seu filho, e talvez o único erro de Deus tenha sido deter seu braço. Mas o herói do filme, ele próprio, não tem um filho? Ora, ora. O que o filme mostra tão bem, para vergonha dos psiquiatras, é que todo delírio é, primeiramente, investimento de um campo social, econômico, político, cultural, racial e racista, pedagógico, religioso: o delirante aplica à sua família e ao seu filho um delírio que os excede por todos os lados. Joseph Gabel, ao apresentar um delírio paranoico com forte conteúdo político-erótico e de elevada reforma social, acha possível dizer que um caso como esse é raro, e que, aliás, suas origens não são reconstituíveis.Todavia, é evidente que não há um único delírio que não possua eminentemente esse caráter, e que não seja originalmente econômico, político etc., antes de ser esmagado pelo torniquete psiquiátrico e psicanalítico.
(...)
Gilles Deleuze e Félix Guattari in O anti-édipo

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