QUEM DELIRA?
(...) Como começa um delírio? É possível que o cinema seja capaz
de apreender o movimento da loucura, precisamente porque
ele não é analítico nem regressivo, mas explora um campo global
de coexistência. Um filme de Nicholas Ray representa supostamente
a formação de um delírio com cortisona: um pai excessivamente
cansado, professor de colégio, que faz horas extras numa
estação de rádio táxi, é tratado por ter perturbações cardíacas. Ele
começa a delirar sobre o sistema de educação em geral, a necessidade
de restaurar uma raça pura, a salvação da ordem moral e
social, passando depois à religião, à oportunidade de um retorno
à Bíblia, Abraão. Mas o que foi que Abraão fez? Ora, o que ele fez
foi justamente matar ou pretender matar seu filho, e talvez o único
erro de Deus tenha sido deter seu braço. Mas o herói do filme, ele
próprio, não tem um filho? Ora, ora. O que o filme mostra tão
bem, para vergonha dos psiquiatras, é que todo delírio é, primeiramente,
investimento de um campo social, econômico, político,
cultural, racial e racista, pedagógico, religioso: o delirante aplica
à sua família e ao seu filho um delírio que os excede por todos os
lados. Joseph Gabel, ao apresentar um delírio paranoico com forte
conteúdo político-erótico e de elevada reforma social, acha possível
dizer que um caso como esse é raro, e que, aliás, suas origens
não são reconstituíveis.Todavia, é evidente que não há um único
delírio que não possua eminentemente esse caráter, e que não seja
originalmente econômico, político etc., antes de ser esmagado pelo
torniquete psiquiátrico e psicanalítico.
(...)Gilles Deleuze e Félix Guattari in O anti-édipo
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