sábado, 30 de março de 2019

ADVOCACIA

Fiz tão bem o meu curso de Direito que, no dia seguinte em que me formei, processei a Faculdade, ganhei a causa e recuperei todas as mensalidades que havia pago.



Fred Allen
VAI COMEMORAR?

A Advocacia-Geral da União (AGU) obteve neste sábado (30) decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região suspendendo a determinação da 6ª Vara Federal do Distrito Federal para que a União se abstivesse de promover uma mensagem oficial em alusão ao dia 31 de março de 1964.

Na liminar, a desembargadora de plantão, Maria do Carmo Cardoso, aceitou os argumentos da AGU de que as ações propostas não preenchem os requisitos necessários para concessão de uma medida liminar.

Caso a tutela de urgência fosse mantida, defendeu a AGU, a competência administrativa do Poder Executivo ficaria comprometida, afetando o princípio da separação de funções constitucionais do Estado.
(...)

Elisa Clavery, TV Globo,, Brasília, atualizado há 4 horas

BABY & CAETANO

Luas 

todo pretérito
é sempre
mais que perfeito

nenhum soluço
cabe inteiro
dentro do peito

emanações do 
passado 
despertam luas

lindas e nuas
que só se despem
do outro lado


Carlos Machado
CLÍNICA E TECNOLOGIA DA IMAGEM - III

Numa acepção deleuziana, o acontecimento pode ser definido como um encontro de corpos, humanos e/ou inumanos, no qual e do qual emerge o Sentido. Assim, o sentido nunca é dado, nunca é "um estar lá", mas sim produzido no próprio ato do Encontro. É possível notar que a realidade virtual substituiu a realidade do Encontro (daí, a dos corpos) pela realidade da imagem, profusão de imagens sobre imagens, realidade descarnada, mas Realidade subjetivamente  assimilada como Verdade. Dissemos que a tecnologia da imagem não é um mal em si, mas um signo de poder acelerado a uma velocidade não captada pela Consciência. A velocidade é quem (sujeito) captura a consciência. Um encontro de corpos fica, então, descartado em prol da verdade da imagem, inclusive a imagem de si. Segue-se o empreendimento desejante de um profundo estilhaçamento do eu, beirando a psicose ou nela se instalando. Tempos esquizofrênicos, como previu Guattari. Ora, para uma psiquiatria atravessada por tais fluxos, há duas opções ético-políticas: 1- Encolher-se sob o discurso epistemológico das neurociências, detentor de uma verdade reificada, reificante e erguer o manto acadêmico como anti-autocrítica. 2-Abrir-se, estender-se sobre o campo social em suas formações discursivas caóticas e inventar clínicas à altura do horror dos tempos que correm. Fazer o acontecimento.

A.M.


P.S. - Texto republicado

sexta-feira, 29 de março de 2019

POLÍTICA


SEMPRE NO MEIO

(...)
O que conta em um caminho, o que conta em uma linha é sempre o meio e não o início nem o fim. Sempre se está no meio do caminho, no meio de alguma coisa. O enfadonho nas questões e nas respostas, nas entrevistas, nas conversas, é que se trata, na maioria das vezes, de fazer um balanço: o passado e o presente, o presente e o futuro. Por isso mesmo, é sempre possível dizer a um autor que sua primeira obra já continha tudo, ou, ao contrário, que ele está sempre se renovando ou transformando. De qualquer modo, é o tema do embrião que evolui, seja a partir de uma préformação no germe, seja em função de estruturações sucessivas. Mas o embrião, a evolução, não são boas coisas. O devir não passa por aí. No devir não há passado, nem futuro, e sequer presente; não há história. Trata-se, antes, no devir, de involuir: não é nem regredir, nem progredir. Devir é tornar-se cada vez mais sóbrio, cada vez mais simples, tornar-se cada vez mais deserto e, assim, mais povoado. É isso que é difícil de explicar: a que ponto involuir é, evidentemente, o contrário de evoluir, mas, também, o contrário de regredir, retornar à infância ou a um mundo primitivo. 
(...)

G. Deleuze e Claire Parnet in Diálogos

quinta-feira, 28 de março de 2019

ALEXANDRA LAVASSEUR


PARA QUE OS HOMENS…

Para que os homens não tenham vergonha da beleza das flores,
para que as coisas sejam elas mesmas: formas sensíveis ou profundas
da unidade ou espelhos de nosso esforço
por penetrar o mundo,
com semblante emocionado e passageiro de nossos sonhos,
ou a harmonia de nossa paz na solidão de nosso pensamento,
para que possamos olhar e tocar sem pudor
as flores, sim, todas as flores,
e sejamos iguais a nós mesmos na delicada irmandade,
para que as coisas não sejam mercadorias,
e se abra como uma flor toda a nobreza do homem:
iremos todos ao nosso limite extremo,
nos perderemos na hora do dom com o sorriso
anônimo e certo de uma semente na noite da terra.


Juan Ortiz
PARA UMA  ANÁLISE DA MEDICINA

É possível uma análise da medicina seguindo duas linhas conceituais ( entre outras). A primeira é a linha institucional. Refere-se à inserção política da medicina na sociedade a que pertence. Como a sociedade, no caso brasileiro, é capitalista, a medicina funciona como forma social conectada ao processo de produção de mercadorias. Os atendimentos médicos, os serviços, as consultas, as técnicas, os exames, etc, tudo é mercadoria exposta na vitrine do Mercado. Isso obedece ao método do capitalismo, o capital. Uma das consequências práticas de tal linha de pesquisa é ir contra um certo humanismo natural da medicina, outrora cercado por doce aura de romantismo. Acreditava-se (acredita-se?) que a medicina queria sempre o bem do paciente e que ser médico era uma profissão "linda" (sem ironia).A segunda linha conceitual diz respeito à visão epistemológica. Ela prioriza as relações de causalidade linear, a observação e descrição de objetos sólidos, mensuráveis e visibilizáveis e a compreensão mecanicista de um organismo físico-químico. Os exames de imagem são exemplos atuais e perfeitos.Está aí a enorme produção de conhecimento como efeito e a escassa produção de conhecimento como origem (etiologia) Ora, essas duas linhas (ou eixos) servem tão só como baliza teórico-prática necessária a uma visão crítica. Ao mesmo tempo não descarta os importantes serviços prestados ao paciente, mormente quando lida com procedimentos diagnósticos precisos e preciosos. E mais ainda em ações velozes nas terapêuticas de emergência. Como diria um bioquímico, a Emergência "tira gente da cova". Em suma, esse breve artigo tenta sobretudo por a medicina como um empreendimento social, mesmo que se mostre obra de algum doutor (o médico) ou expresse o indivíduo como único beneficiário (o paciente). Para além de uma relação dual, a medicina é uma relação coletiva, entendendo o coletivo como a multiplicidade do ser humano. Trata-se de uma ética de vida, ética da potência  que precede (ou deveria preceder) as duas linhas referidas. 

A.M.

Nitin Sawhney feat Roxanne Tataei - Distant dreams (Acoustic version)

segunda-feira, 25 de março de 2019

O acaso tem seus sortilégios, a necessidade não. Para que um amor seja inesquecível, é preciso que os acasos se encontrem nele desde o primeiro instante como os pássaros nos ombros de São Francisco.
(...)Milan Kundera

sábado, 23 de março de 2019

O ÓDIO PROSPERA

Por mais nebulosas que sejam as motivações que levaram dois jovens a cometer um massacre com sete mortos na escola Raul Brasil, em Suzano (SP), as investigações policiais apontam que a internet serviu de fonte de informação e inspiração para os assassinos. A rede abriga uma comunidade de jovens que discute, idolatra e comenta ações nefastas como o massacre de Suzano. E não são grupos limitados a espaços da chamada deep web, como é o caso dos Chans, conhecidos celeiros do discurso de ódio . Esses grupos atuam também nas principais redes sociais.
ÉPOCA teve acesso a dois perfis em redes sociais pertencentes a um dos atiradores. Em um deles, o jovem compartilhava a intenção de cometer o massacre havia pelo menos um ano. Em outro, aparece em vídeo se preparando para realizar o crime a cinco dias do atentado e exaltando outros assassinos em série. Desde segunda-feira (18), o número de seguidores desses perfis cresceu exponencialmente. As plataformas Twitter e YouTube, além da Polícia Civil, foram informadas sobre a existência das contas.
(...)

Daniel Salgado e Matheus Fernandes, Época, 22/03/2019, 16:33 hs

LOUI JOVER


sexta-feira, 22 de março de 2019

O SOLITÁRIO

Entrou num bar
e permaneceu
três horas
conversando apenas
com a boca de um copo.

Depois
com as bocas de algumas garrafas.

E aqueles objetos
entendiam tudo perfeitamente
-o que é mais grave.


Luis Sérgio dos Santos
ÉTICA E CLÍNICA

Falamos de um equipamento em saúde mental desprezado pela política "direita", moral, estatal. Em psicopatologia, a clínica da diferença busca atuar em linhas existenciais desprezadas pela razão. Lida com o incurável, o imprestável e com discursos submetidos às formações de poder. Escapa da raia dos esquerdismos espertos. Anda na espreita. Requer um desejo não apoiado na realidade objetiva pois o desejo é a própria realidade objetiva. No universo sedutor-violento do capital aposta num trabalho com pacientes graves e capta o ritmo das canções sem dono. Tudo é impessoal e coletivo. O Caps torna-se, pois, a busca de saídas não cadastradas pela psiquiatria canônica. A ótica da diferença surge na condução prática de cotidianos insólitos. Uma ética precede a técnica. Quem suporta tomar o processo social como processo subjetivo? O tempo não volta. As lutas antimanicomiais vivem no estágio zero da experiência da loucura. Ou nada.

A.M.

ANTONIO CARLOS JOBIM ~ Tereza, my love

Palavras não descrevem os olhos, as bocas, os braços e abraços, nem a alegria até então desconhecida, surgida de um (re) encontro. Pra quem, há dias atrás, refletia tanto as obras do acaso, hoje compreende que realmente, o acaso não passa de um simples nada, e acredita em algo bem maior que isso. Que levará à um próximo reencontro, sem sombra de dúvidas. Mas até lá, todas as músicas cantadas estarão na mente, todos os sorrisos que ainda não acreditavam no que estava acontecendo, todos os olhares que transpareciam toda a magia do momento.
(...)

Caio Fernando Abreu
O homem explora o homem e por vezes é o contrário.

Woody Allen

LULA E TEMER


Nosso tempo

V

Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas  
                                                           [ vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é
                                                     [ tempo de comida,
mais tarde será o de amor.

Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios,
                                           [ forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.

Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
Imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade,
                                                                 [ imaginam.

Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras,
                                [ apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrado sem dor,
confiar-se ao que-bem-me-importa
do sono.

Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo
                                                                   [ com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiúra,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.


Carlso Drummond de Andrade

quinta-feira, 21 de março de 2019

40 ANOS? 

O ex-presidente Michel Temer atua como chefe de uma organização criminosa que atua há 40 anos no Rio de Janeiro, segundo investigação da Lava Jato no Rio de Janeiro.
Temer foi preso em São Paulo na manhã desta quinta-feira (21) por agentes federais do Rio de Janeiro. Na ação, ainda foi preso no Rio de Janeiro o ex-ministro de Minas e Energia Moreira Franco. A PF cumpre mandados contra mais seis pessoas, entre elas empresários.
(...)

TV Globo e G1, Rio, 21/03/2019, há 8 min.

FRANCISCO DE GOYA


quarta-feira, 20 de março de 2019

NOTAS ANTIDEPRESSIVAS

Há pacientes que já chegam com o diagnóstico de depressão. Tal diagnóstico muitas vezes lhes foi cravado por médicos apaixonados pela prescrição do remédio químico. De certo modo, induzem os pacientes a dizerem a priori: "Eu sou a depressão". Esta se torna uma espécie de  identidade factícia que tampona um "vazio" subjetivo de causas, etiologias e linhas existenciais heterogêneas. Tal diagnóstico "autoriza" o uso indiscriminado e violento dos psicofármacos. Além disso, a crença instilada na mente do paciente é a de que o tal remédio irá curá-lo, ainda que a palavra "cura" possa não ser usada. Camuflada, circula implícita mas não menos atuante na produção da "doença" do século, a depressão. É possível saber histórias de terror clínico através dos próprios pacientes quando de relatos anamnésticos. O essencial a reter dessa linha de análise é: 1-Há vários, muitos, múltiplos tipos de depressão que não se coadunam com as categorias semiológicas da CID-10; 2-Sendo assim há depressão com indicação para psicoterapia e/ou farmacoterapia. Isso depende da percepção fina do outro. 3-A depressão grave (antiga endógena, hoje bipolar) tem indicação para farmacoterapia (mas, claro, sem a retórica mercadológica dos estabilizadores do humor) desde que haja suporte psicológico do psiquiatra, o que não significa psicoterapia no sentido usual. Quer dizer que o remédio químico, por melhor e mais "avançado", está inserido no Encontro com o paciente, e não o contrário. 4-Há pessoas não deprimidas diagnosticadas como deprimidas. Talvez, sob a palavra de ordem do psiquiatra biológico em sua cruzada medicamentosa (a intoxicação  cavalar) tornem-se, enfim, deprimidas for ever. 5-A depressão não é uma entidade clínica ou uma essência do ser-doente, mas uma síndrome psíquica produzida em meio a agenciamentos de forças (multiplicidades) que é preciso pesquisar; 6- A depressão pode estar no mundo e não no paciente...

A.M.
Fruteira

Quem se lembrou de pôr sobre a mesa
essas doces evidências
da morte?


Ana Martins Marques

Agenciamentos: Félix Guattari e o Animismo Maquínico (2012)

terça-feira, 19 de março de 2019

ESTE SERIA SEM SUICÍDIO


RIO DE JANEIRO (Reuters) - A policia do Rio de Janeiro apreendeu nesta segunda-feira um adolescente que planejava um atentado a uma escolha pública da cidade nesta, informou a Polícia Civil fluminense.


O adolescente foi detido em uma grande operação em uma favela do centro que contou até com o uso de um helicóptero. O jovem já tinha dito a pessoas próximas e alunos da escola, da qual foi expulso, que planejava o atentado.

O ataque estava planejado para na próxima quarta-feira, um mês antes do aniversário de 20 anos do massacre em uma escola em Columbine, no Estado norte-americano do Colorado, que deixou 15 mortos.

Nas redes sociais, o jovem também já tinha feito menção ao ataque e citou também o ataque da semana passada em Suzano (SP), em que dois jovens mataram 7 pessoas numa escola, da qual eram ex-alunos, e se mataram. Antes, haviam assassinado o dono de uma locadora de veículos da cidade

Em comunicado, a Polícia Civil informou que a apreensão do jovem ocorreu "após conhecimento que ex-aluno de estabelecimento escolar localizado na Praça da Bandeira estava veiculando mensagens sobre um atentado que iria cometer no seu antigo colégio, exibindo fotografia de arma de fogo e detalhes da ação, inclusive a sua rota de fuga, pois não iria se matar como o ocorrido na cidade de Suzano".

O jovem apreendido nesta segunda também frequentava canais subterrâneos da internet frequentados por amantes de armas e fóruns de pessoas que admiram e planejam atentados.

De acordo com a polícia, o computador do jovem foi apreendido e nele foram encontradas referências ao massacre de Columbine.


Rodrigo Viga Gaier, Extra, 18/03/2019, 21:36 hs

segunda-feira, 18 de março de 2019

MIL DESEJOS

(...) Fazem do deserto a imagem do explorador que tem sede, e, do vazio, a imagem de um solo que se retrai. Imagens mortuárias, que só valem lá onde o plano de consistência, idêntico ao desejo, não pode se instalar e não tem as condições para se construir. Mas sobre o plano de consistência, até mesmo a raridade das partículas e a desaceleração ou o esgotamento do fluxo fazem parte do desejo, e da pura vida do desejo, sem testemunhar de qualquer falta. Como diz Lawrence, a castidade é um fluxo. O plano de consistência é uma coisa estranha? Seria preciso dizer a um só tempo: você já o tem, você não sente um desejo sem que ele já esteja aí, sem que ele se trace ao mesmo tempo que seu desejo – mas. também: você não o tem e você não deseja se não consegue construí-lo, se você não sabe fazê-lo, encontrando seus lugares, seus agenciamentos, suas partículas e seus fluxos. Seria preciso dizer a um só tempo: ele se faz sozinho, mas saiba vê-lo; e você deve fazê-lo, saiba fazê-lo, tomar as boas direções, correndo risco e perigo. Desejo: quem, a não ser os padres, gostaria de chamar isso de "falta"? Nietzsche o chamava Vontade de potência. Podemos chamá-lo de outro modo. Por exemplo, graça. Desejar não é de modo algum uma coisa fácil, mas justamente porque ele dá, em vez de faltar, "virtude que dá". Aqueles que ligam desejo à falta, o grande bando de cantores da castração, testemunhas de um grande ressentimento e de uma interminável má consciência. Será desconhecer a miséria daqueles a quem falta efetivamente alguma coisa?
(...)

Gilles Deleuze e Claire Parnet in Diálogos

GRAHAM GERCKEN


Noite morta

Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos. 

Ninguém passa na estrada.
Nem um bêbado.

No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras.
Sombras de todos os que passaram.
Os que ainda vivem e os que já morreram.

O córrego chora.
A voz da noite...

(Não desta noite, mas de outra maior.)


Manuel Bandeira

domingo, 17 de março de 2019

ISSO NÃO PÁRA

Um jovem de 22 anos foi morto a punhaladas após um homem atacar estudantes em um pensionato na madrugada deste domingo (17) em Maringá, no norte do Paraná. Outros dois rapazes ficaram feridos. O suspeito foi preso, segundo a Polícia Civil.
O crime aconteceu na Zona 7. O autor do ataque morava nos fundos da residência. De acordo com a Polícia Civil, ele entrou na casa por volta das 2h e atacou três rapazes que estavam na cozinha. Dois conseguiram fugir e foram perseguidos na rua pelo suspeito.
(...)

Gesli Franco, G1, RPC Maringá, 17/03/2019, atualizado há duas horas

Pat Metheny and Toots Thielemans - Always And Forever 1992.wmv

UMA ESTRELA DANÇANTE

Deus não é uma ideia inteligente. Não que esteja em discussão a sua existência. A questão é outra. Trata-se essencialmente do exercício de um pensar tosco, capenga, processo subjetivo que estanca na crença-ideia transcendente no Divino (fora da Terra e do Homem). Ao mesmo tempo diz que Deus está aqui entre nós, que nos vigia e nos pune, nos premia, nos absolve, nos salva, etc. É bem verdade que há religiões em que esse elemento de crença não é tão marcado, mas na maioria há de fato um "sair da Terra, um além túmulo". Pior, tornamo-nos sequelados pela concepção antropomórfica de Deus como uma projeção do Homem: imagem e semelhança. Espinosa é uma exceção, o zen budismo também... Acresce a tudo isso a tortura de existirmos sob a forma-Religião (qualquer uma) que, sob o pretexto de "resolver" o enigma da existência, provê aos seus fiéis uma sociabilidade confortadora e salvadora frente ao Horror que a vida encerra, evitando colocar o Júbilo como a sua contrapartida. Em suma, é uma instituição poderosa que atravessa os tempos da humanidade. Distinguimos, por isso, Religião de experiência espiritual, esotérica, mística, cósmica, expansão da consciência ou qualquer outro nome que se queira dar. O essencial a reter é que no fundo dos modos de subjetivação está o pensamento como afeto (desejo) que nos faz pensar "seguindo sempre a linha de fuga do vôo da bruxa". Trata-se de um percurso existencial doloroso e que poucos suportam, ou se suportam é à custa de terríveis sofrimentos da alma. Ora, tais sofrimentos (não necessariamente cristãos) são indispensáveis à construção de uma superfície (o corpo das intensidades livres) de criação, invenção, alegria suspensa no nada (como nas crianças), proliferação de devires, mesmo nos mais ínfimos, imperceptíveis e solitários acontecimentos. Abre-se, assim, uma clareira para a diferença. E então, "é preciso ter caos dentro de si para dar à luz uma estrela dançante", como diria o alemão bigodudo do século XIX.


A.M.
Estranho, sim. As pessoas ficam desconfiadas, ambíguas diante dos apaixonados. Aproximam-se deles, dizem coisas amáveis, mas guardam certa distância, não invadem o casulo imantado que envolve os amantes e que pode explodir como um terreno minado, muita cautela ao pisar nesse terreno. Com sua disciplina indisciplinada, os amantes são seres diferentes e o ser diferente é excluído porque vira desafio, ameaça. Se o amor na sua doação absoluta os faz mais frágeis, ao mesmo tempo os protege como uma armadura. Os apaixonados voltaram ao Jardim do Paraíso, provaram da Árvore do Conhecimento e agora sabem.
(...)

Lygia Fagundes Telles

sábado, 16 de março de 2019

Jobim, Getz, Bonfá, Moreau, M. Toledo,Mastroianni, Jazz Samba, Antonioni ... A Noite , 1961

O QUE VEM POR AÍ


Sérgio Cabral está disposto a contar fatos graves sobre Aécio Neves. Em especial, sobre supostos esquemas ilegais do tucano para formar sua chapa de 2014, na disputa pela Presidência da República.

O MPF do Rio de Janeiro já foi informado sobre isso.

Em 2014, o PMDB do Rio de Janeiro apoiou oficiosamente Aécio Neves, e incitou o voto Aezão — em Aécio Neves e em Luiz Fernando Pezão.

Cabral disse que ele sabe cada detalhe sobre o que o PSDB e o PMDB fizeram naquele verão.


Guilherme Amado, Época, 16/03/2019, 09:00 hs
Desmembramento de um semicírculo

Certo que nos dedicamos 
a místicas peregrinações. 
Exercitamos a respiração, 
lutamos brigas orientais, 
praticamos uma e sete vezes 
a tradução do poema chileno. 
Mas no fundo sabemos 
que o que importa mesmo 
é roçar a superfície negra 
da pele do peito do anjo 
que está vivo 
que não dorme


Matilde Campillo

DMITRI DANISH


APOCALIPSE NOW

As tecnologias da imagem, veiculadas pelos equipamentos de informação e comunicação (internet, celulares, TVs, etc) produzem formas de sentir, perceber, pensar e agir que chamamos de subjetividade contemporânea. Este fato atualíssimo alterou profundamente a consciência, o eu, a razão, valores, códigos, afetos, enfim, elementos psíquicos que respondiam pelo que outrora se chamava "pessoa". O "mundo interno", então constituído como território existencial de si mesmo, espécie de autonomia individual do ser-no-mundo, se desfez, se desfaz e desmorona a olhos vistos. Simples: considere o aumento da morbidade dos transtornos mentais. A fenomenologia e todas as doutrinas do pensamento calcadas no poder da consciência (inclusive o materialismo histórico) ruiram sob o efeitos da era da Tecnologia, ao que parece irreversível.  Veio para ficar. Nós não somos mais nós mesmos. De toda a parte as notícias e os comunicados chegam como recheio subjetivo para fatos, situações, tragédias, acontecimentos que não nos dizem respeito e ao mesmo tempo nos dizem respeito. O tempo não é mais a temporalidade de uma vivência e sim, ao contrário, a vivência é que está no Tempo Mundial (que importam os fusos horários?) e transfigura em éter o que era tão certo como este corpo-aqui-visível-de-carne. Há uma rachadura nas certezas do eu. As crenças vacilam. O virtual é o real. Não mais existe "o tempo vivido", mas o tempo mundial descarnado, evaporado, codificado, por exemplo, em mensagens do zap, a confluir naquilo que Virilio chama de cataclísma. Uma velocidade estonteante do tempo desconcerta a todos, mesmo quem não o saiba.Trata-se de uma mudança "espiritual" muito mais profunda do que se imagina, já que as comodidades objetivas (o mundo-em-mim-sem-sair-de-casa) escondem e legitimam a vertigem da loucura do cotidiano normal. Não mais é possível a nostalgia de tempos idos (bons tempos!) sob pena de afundarmos numa depressão coletiva. O que fazer? Não se tem a menor idéia! Em suma, as tecnologias da imagem nos fabricam à sua imagem e semelhança qual um deus profano que se expressa e se impõe pela ubiquidade, simultaneidade e pelo desaparecimento do passado e do futuro, portanto, da História. Se há um devir-revolucionário (sempre há!) ele é tragado pelas ondas gigantescas das imagens planetárias. Um novo conservadorismo sóciopolítico emerge; a direita se reveste de ciência triunfante. O axioma do progresso técnico se afirma como religião do capital. A busca de referências de sentido muitas vezes se instala em fascismos políticos ou religiosos. Ou as duas coisas.Todos rezam. 


A.M.


Obs. - texto republicado.

NDT II Jiri kylian 27'52"

garimpo

esta procura tem um nome insanidade
passei da idade de tentar fazer sonetos
eu só consigo descrever cinzas e pretos
acho que o verso não alcança claridade

pelas gavetas prateleiras escondidos
ainda agarro pelo rabo alguns cometas
quero as estrelas não encontro suas tetas
sinto a fissura dos pequenos desvalidos

a minha escrita sempre foi penosa esgrima
desde menina que não tenho paradeiro
eu caço sapo com bodoque o dia inteiro
nesta esperança de catar melhores rimas

vasculho as glebas os grotões e quem diria

bateio o sol chego a pensar que a noite é dia



Líria Porto

RELATOS DA CLÍNICA - 3

Quem é triste?

Há cerca de 5 anos atendi um jovem no consultório cuja consulta havia sido marcada pela mãe. Ele tinha 23 anos, era estudante de História, família classe média, egresso de uma cidade vizinha para cursar universidade em Vitória da Conquista. À entrevista, como se diz em psiquiatria, mostrava-se calmo, lúcido, orientado no tempo e no espaço. O motivo da consulta era que havia tentado o suicídio. Logo ao início, fez questão de dizer que só havia comparecido pelo pedido da mãe. Ilustra o relato da tentativa, mostrando uma cicatriz num dos pulsos.Perguntei-lhe por que tentou. Faz uma breve análise da situação brasileira e mundial, incluindo aspectos sociopolíticos, econômicos, culturais, filosóficos, etc. Conclui: "Viver para que? Viver por que? Tá tudo muito ruim". Retruquei:" Mas ainda vai tentar?". "Não, doutor, é muito problema, a família fica no pé, dá muita confusão, vou ter que viver nessa merda". Não cheguei a estabelecer qualquer diagnóstico nos padrões da psiquiatria. Pareceria fora de propósito. Era um homem, digamos, "normal". Me coloquei à disposição para um atendimento psicoterápico. Delicadamente recusou, afirmando que me buscaria se precisasse. Passados alguns dias, para dar um retorno à sua mãe (que marcara a consulta) e conclui-la, voltamos a conversar. Analisei a tentativa de suicídio e o contexto psicossocial respectivo. Em certo momento, a genitora interrompeu-me, e se dirigindo ao filho, perguntou: " Meu filho, na verdade nem sei porque você tentou se matar; você que sempre foi um rapaz alegre". Ele respondeu com tranquilidade: "Eu sempre fui alegre, minha mãe; o mundo é que é triste".

A.M.

Philip Glass - String Quartet No. 3 "Mishima" , VI

GUERREIROS E MORTOS


Quando soube que Marielle Franco havia sido assassinada, eu tinha acabado de chegar de Anapu, a cidade que recebeu o sangue de Dorothy Stang. Quatro tiros tinham arrebentado a cabeça bonita de Marielle e também aquele sorriso que fazia com que mesmo eu, que nunca a conheci, tivesse vontade de rir com ela. Ainda hoje tenho quando vejo a sua fotografia. E rio com Marielle. E então lembro o horror da destruição literal do seu sorriso. E então eu não choro. Eu escrevo.

Quando a notícia chegou eu ainda estava na Amazônia, mas me preparava para pegar um avião para São Paulo. Eu carregava no meu corpo o horror de ter constatado que a violência contra os pequenos agricultores no Pará era, naquele momento, pior do que em 2005, ano do assassinato de Dorothy. Havia então, em Anapu, uma trilha vermelho-sangue de 16 execuções de trabalhadores rurais ocorridos desde 2015, pessoas que não tinham cidadania americana para chamar a atenção da imprensa.

Em Anapu, eu tinha escutado padre Amaro Lopes afirmar que sabia que estavam armando para ele, que inventariam algo para interromper sua luta. Ele era considerado o sucessor de Dorothy Stang na proteção dos direitos dos trabalhadores rurais e da floresta amazônica na região. Para mim era claro que as reais sucessoras de Dorothy eram as freiras que dividiam a casa com ela e que seguiam seu trabalho sem escorregar em vaidades pessoais. O trabalho de Amaro Lopes, porém, era importante o suficiente para ser interrompido pela violência. Duas semanas mais tarde, como o padre havia previsto, ele foi preso numa operação cinematográfica pela polícia do Pará, e acusado de quase tudo. O objetivo era assassinar a sua reputação e neutralizá-lo. Foi alcançado.

Quando soube da morte de Marielle, era este o mapa de mortes ao redor de mim, apenas no pequeno círculo que era eu. Essas mortes, ainda que não diretamente, estavam conectadas. Elas expressavam um novo momento do país, um em que a vida valia ainda menos, e a justiça era ainda mais ausente, quando não conivente.
(...)

Eliane Brum,El País, 14/03/2019, 18:44 hs

sexta-feira, 15 de março de 2019

Uma prece pelos rebeldes de coração enjaulados.

Tennensee Williams

O QUE VOCÊ CULTIVA?


O VIRTUAL: A ÚLTIMA FRONTEIRA

A fronteira entre realidade e ficção está se diluindo, mas temos de nos agarrar a ela para delineá-la com a máxima nitidez. Nesta sexta-feira, amanhecemos horrorizados com um massacre transformado em grande espetáculo transmitido por streaming, a matança do menos 49 pessoas na Nova Zelândia, cometida por quatro indivíduos. Um deles, durante mais de 16 minutos, usou o modelo mais popular entre o público jovem, que faz sucesso em plataformas como o YouTube e principalmente o Twitch: o streaming de um gameplay, de uma partida de videogame comentada pelo jogador. Só que aqui, para ele, o gameplay foi matar 49 pessoas.
(...)

Ángel Luis Sucasas, El País, Madri, 15/03/2019, 21:22 hs
A EXPERIÊNCIA POÉTICA

Quem sonda o verso escapa ao ser como certeza, reencontra os deuses ausentes, vive na intimidade dessa ausência, torna-se responsável por  ela, assume-lhe o risco e sustenta-lhe o favor. Quem sonda o verso deve renunciar a todo e qualquer ídolo, tem que romper com tudo, não ter a verdade por horizonte nem o futuro por morada, porquanto não tem direito algum `a esperança, deve, pelo contrário, desesperar. Quem sonda o verso morre, reencontra a sua morte como abismo.
(...)

Maurice Blanchot 

LOUI JOVER


quinta-feira, 14 de março de 2019

ESCOLA E MATANÇAS


- Suzano (São Paulo), em 2019: Um tiroteio em uma escola em Suzano, na região metropolitana de São Paulo, deixou pelo menos dez mortos nesta quarta-feira e o mesmo número de feridos. Os autores, dois jovens, entraram na escola com capuz, atiraram e depois se suicidaram.


- Goiânia (Goiás), em 2017: Dois estudantes morreram e outros quatro ficaram feridos em um tiroteio registrado em uma escola em Goiânia, capital de Goiás. O crime foi cometido por um companheiro das vítimas, de apenas 14 anos, que supostamente sofria bullying.

- Janaúba (Minas Gerais), em 2017 - O vigia noturno da creche Centro Municipal de Educação Infantil Gente Inocente ateou fogo em dezenas de crianças entre quatro e seis anos. Oito delas morreram e duas dezenas tiveram de ser socorridas. Uma professora e ao autor do atentado também morreram.

- Realengo (Rio de Janeiro), em 2011: Doze estudantes de uma escola em Realengo, um humilde bairro nos arredores do Rio de Janeiro, morreram depois que um homem abriu fogo. O agressor, identificado como Wellington Menezes Oliveira, de 24 anos, era um ex-aluno da escola e cometeu suicídio após o massacre.

- São Caetano do Sul (São Paulo), em 2011: Um estudante de dez anos de idade atirou em uma professora e depois se suicidou em uma escola pública em São Caetano do Sul, na região metropolitana de São Paulo.

- Taiúva (São Paulo), em 2003: Um estudante brasileiro deu um tiro na própria cabeça após balear nove pessoas na escola secundária em que estudava na cidade de Taiúva, 370 quilômetros a noroeste de São Paulo. Um dos feridos morreu, enquanto outro ficou paraplégico.
(...)

El País, 13/03/2019, 17:50 hs

terça-feira, 12 de março de 2019

Quando eu era pequeno, meus pais descobriram que eu tinha tendências masoquistas. Aí me passaram a me bater todo dia, para ver se eu parava com aquilo.

Woody Allen

domingo, 10 de março de 2019

SÓ  PARA  LOUCOS

A linguagem poética constitui um território de significações que escapa às coordenadas da razão. Um sentido a se produzir. Desse modo, a busca de singularidades existenciais é facilitada pela aventura de se ler um poema e implicar-se a ele. O que isso quer dizer? Quer dizer formar e firmar conexões afetivas com um ou muitos pedaços do poema ou do poema como um todo, mesmo sabendo que não há todo. Não há todo porque as multiplicidades heterogêneas do texto nunca fecham um sistema ou tamponam um devir. O processo do desejo é irreversível. Ou seja, sem volta. A poesia é isso: multiplicidades do leitor se ligando a multiplicidades do poema na busca de... uma diferença. Ler um poema não é como ler um ensaio de sociologia, por exemplo, mas sim escutar os versos como se escuta uma música ou se sente no corpo as vibrações das cores de um quadro de Emil Nolde, ou no mesmo corpo e ao mesmo tempo o ritmo de um improviso de jazz. Poesia não foi e não é feita para interpretar porque ela já é uma interpretação ou mil, cem mil interpretações da realidade. Quando se está apaixonado (isso deveria ser sempre) a poesia cobre e recobre as superfícies do mundo numa película fina de delicadeza, suavizando os pedregulhos das estradas mais longínquas e inóspitas. Tal como em "Asas do Desejo" (Wim Wenders, 1987), o Anjo amante do tempo está transfigurado por avistar a trapezista no seu camarim, não por ele ser um anjo, mas por haver entrado enfim, num devir-humano, devir-mundo, devir-risco, devir-perigo, devir-paixão. Para sempre.

A.M.


Obs.: texto revisado e republicado.

DJAVAN - Meu bem Querer

sábado, 9 de março de 2019

Nunca fui elegante. Minhas camisas eram todas desbotadas, encolhidas, surradas, e já tinham cinco ou seis anos. Minhas calças, a mesma coisa. Detestava as grandes lojas, detestava os vendedores, eles se faziam de superiores, pareciam conhecer o sentido da vida, tinham uma segurança que me faltava. Meus sapatos eram sempre velhos e estropiados, e eu detestava lojas de sapatos também. Nunca comprava nada de novo, a menos que as minhas coisas já estivessem completamente inutilizadas - automóveis inclusive. Não era questão de economia; é que eu não era nem tolerava ser um comprador na dependência dos vendedores, aqueles caras tão altivos e superiores. Além disso, eu perdia tempo, um tempo em que eu podia muito bem estar de papo pro ar, bebendo.
(...)

Charles Bukowski
A RÚSSIA HÉTERO

Vladimir Putin quer que a Rússia se torne um grande armário. E muito escuro. O presidente, que se posicionou como o grande defensor dos valores cristãos tradicionais frente a um Ocidente sem Deus nem moral, provavelmente desejaria que na Rússia não existissem gays, lésbicas, bissexuais ou transexuais. É o que revela o seu roteiro para um país em que a lei estabelece que as relações entre pessoas do mesmo sexo são “inferiores” às heterossexuais. Assim, como se fosse uma patologia contagiosa, procura escondê-las dos menores de idade. E graças à chamada lei de propaganda homossexual, que proíbe “a promoção de relações não tradicionais”, eles estão conseguindo. A norma, que estabelece multas e sanções administrativas e se tornou um modelo para países como Argélia, Indonésia e Lituânia, completará cinco anos e baniu do espaço público qualquer sinal suspeito de “criar uma imagem distorcida da equivalência” dessas relações, como diz o decreto. Isso significa que os personagens LGTBI+ se tornaram invisíveis em livros, filmes, peças de teatro e inclusive nas campanhas publicitárias destinadas ao grande público.
(...)

María R. Sahuquillo, El País,09/03/2019, 13:02 hs

IVAN MARCHUK


Xeque-mate

Quando menos se espera, já são horas.
A dama de espadas perde o gume
e o pássaro pousado vai embora. 

Quando menos se espera, o que se anuncia
não é a sorte grande, a estrela Aldebarã
ou a sagração da primavera.
São tempos de abutre
e o coração, músculo bélico, fraqueja. 

De repente, já é sábado,
há uns assuntos desagradáveis para resolver
e, sobre a pele confusa da alma,
uma densa crosta de óxido e desalento.

Quando menos se espera, o rei está em xeque,
e é dezembro.
Há uma complicação de trânsito
na avenida
uma artéria que não dá passagem.
Quando menos se espera, já é tarde.


Carlos Machado

PSIQUIATRIA BIOLÓGICA


RELATOS DA CLÍNICA

2-O advinho

Naquela manhã, fui trabalhar no Caps II com uma preocupação martelando a cabeça. É que certa notícia sobre a minha filha residente em Salvador me produziu angústia.Mas era preciso trabalhar, atender os pacientes que esperavam. Entre eles, havia um com história de cronicidade psicótica, aparência física descuidada, falando pouquíssimo, ou mesmo sem falar. Limitava-se a responder perguntas simples com monossílabos e/ou frases curtas: era evidente uma deterioração afetiva, cognitiva (sintáxica) e existencial. Devido a isso, a entrevista contava com a presença de uma tia dando a maior parte das informações. Em certo momento, essa fala foi interrompida com uma pergunta do paciente: "Doutor, o senhor tem filha?" Colhido pela pergunta inusitada, respondi, não sem certa hesitação, que sim. Ele continuou "Ela estuda?" Disse que sim, mas que já havia concluído a graduação. Ele respondeu com um silêncio num fascies apático, enquanto a tia voltou a falar, complementando as informações. Finda a consulta, o paciente levantou-se da cadeira, me estendeu a mão e disse "Doutor, cuide bem da sua filha". A associação da fala do paciente com os meus pensamentos "secretos" e a imagem da minha filha foi inevitável. Pensei muito sobre o ocorrido. Contei para alguns colegas e amigos. Ouvi opiniões assim: "Ele é um médium", "Foi Deus falando através dele". "Ele é um paranormal" ou "Foi apenas uma coincidência", ou ainda "os psicóticos, em geral, tem uma sensibilidade fina", entre outras comentários. Quanto às minhas elucubrações, extraí uma conclusão simples: Todo paciente merece ser escutado, mesmo que pareça não ter nada a dizer.

A.M.

MILTON NASCIMENTO - Um Gosto de Sol

Ofício

Constróis com empenho
teu artefato de sílabas

Enuncias a noite
alcanças o feminino 
das coisas sem gênero
vagueias no campo branco
do que não se diz.

Relojoeiro, numismata
colecionador de conchas do mar
gastas o olho
e a alma 
nesse ofício minúsculo.

Tua ração é o tempo
o tempo e seu estandarte
de sustos
paisagem sem freios
à janela do trem.

Mas sabes: 
depois de tantos incêndios
luas novas e paixões
o que se aprende é bem pouco.

Bastaria dizer:
os espinheiros florescem
na varanda.


Carlos Machado
Tenho me sentido muito mal vendo minha capacidade de amar sendo destroçada, proibida, impedida.

Caio Fernando Abreu

sexta-feira, 8 de março de 2019

ALEXANDRA LAVASSEUR

Devir-mulher

POR QUE MATAM MULHERES?

Tudo começa lançando ao vento uma pergunta quase sempre evitada, sob o rótulo de “crime machista”: Por que as matam?

Os homicídios classificados como “violência de gênero” abrangem em média 60 mortes de mulheres por ano na Espanha. Desde o caso do sujeito que um belo dia deu um golpe mortal na cabeça de sua mulher e depois a esquartejou para se livrar do cadáver até o do bom pai com o divórcio atravessado na garganta que uma noite, cheio de raiva, entra na casa dos sogros e esfaqueia toda a família. Passa também pelo bandidão da cidade que flerta com drogas, de vez em quando perde a cabeça, entra e sai da prisão e acumula mandados de afastamento que não cumpre — inclusive com o consentimento dela —, até que um dia perde a cabeça de vez e acaba matando-a.

Diante da ideia generalizada — e ensinada nas universidades — de que a violência de gênero implica uma escalada (tensões, agressões verbais, físicas, falsa lua de mel e manipulação emocional...), existe um dado novo e desconcertante: em 45% dos casos os homens que assassinaram seu par não tinham nenhum antecedente violento conhecido; entrariam num amplo grupo que pode ser classificado como de agressores “eventuais”, e, portanto, imprevisíveis.

O rótulo global de “violência de gênero” inclui todos os “homicídios de casal” e se mostra útil para fazer esta contabilidade macabra, mas inútil para detê-la, porque o número mal varia ano após ano. Na Espanha, cerca de 60 assassinatos por ano. Já no Brasil, segundo o Mapa da Violência 2015 sobre Homicídios de Mulheres, ocorrem aproximadamente 5.000 feminicídios por ano, uma taxa de 4,8 para 100.000 mulheres — a quinta maior do mundo e um aumento de 111% com relação a 1980, quando a proporção de feminicídios era de 2,3 para 100.000 mulheres, segundo o estudo.
(...)

Patricia Ortega Dorsz, El País, Madri, 09/07/2017, 14:47 hs