sábado, 9 de março de 2019

RELATOS DA CLÍNICA

2-O advinho

Naquela manhã, fui trabalhar no Caps II com uma preocupação martelando a cabeça. É que certa notícia sobre a minha filha residente em Salvador me produziu angústia.Mas era preciso trabalhar, atender os pacientes que esperavam. Entre eles, havia um com história de cronicidade psicótica, aparência física descuidada, falando pouquíssimo, ou mesmo sem falar. Limitava-se a responder perguntas simples com monossílabos e/ou frases curtas: era evidente uma deterioração afetiva, cognitiva (sintáxica) e existencial. Devido a isso, a entrevista contava com a presença de uma tia dando a maior parte das informações. Em certo momento, essa fala foi interrompida com uma pergunta do paciente: "Doutor, o senhor tem filha?" Colhido pela pergunta inusitada, respondi, não sem certa hesitação, que sim. Ele continuou "Ela estuda?" Disse que sim, mas que já havia concluído a graduação. Ele respondeu com um silêncio num fascies apático, enquanto a tia voltou a falar, complementando as informações. Finda a consulta, o paciente levantou-se da cadeira, me estendeu a mão e disse "Doutor, cuide bem da sua filha". A associação da fala do paciente com os meus pensamentos "secretos" e a imagem da minha filha foi inevitável. Pensei muito sobre o ocorrido. Contei para alguns colegas e amigos. Ouvi opiniões assim: "Ele é um médium", "Foi Deus falando através dele". "Ele é um paranormal" ou "Foi apenas uma coincidência", ou ainda "os psicóticos, em geral, tem uma sensibilidade fina", entre outras comentários. Quanto às minhas elucubrações, extraí uma conclusão simples: Todo paciente merece ser escutado, mesmo que pareça não ter nada a dizer.

A.M.

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