sábado, 16 de março de 2019

GUERREIROS E MORTOS


Quando soube que Marielle Franco havia sido assassinada, eu tinha acabado de chegar de Anapu, a cidade que recebeu o sangue de Dorothy Stang. Quatro tiros tinham arrebentado a cabeça bonita de Marielle e também aquele sorriso que fazia com que mesmo eu, que nunca a conheci, tivesse vontade de rir com ela. Ainda hoje tenho quando vejo a sua fotografia. E rio com Marielle. E então lembro o horror da destruição literal do seu sorriso. E então eu não choro. Eu escrevo.

Quando a notícia chegou eu ainda estava na Amazônia, mas me preparava para pegar um avião para São Paulo. Eu carregava no meu corpo o horror de ter constatado que a violência contra os pequenos agricultores no Pará era, naquele momento, pior do que em 2005, ano do assassinato de Dorothy. Havia então, em Anapu, uma trilha vermelho-sangue de 16 execuções de trabalhadores rurais ocorridos desde 2015, pessoas que não tinham cidadania americana para chamar a atenção da imprensa.

Em Anapu, eu tinha escutado padre Amaro Lopes afirmar que sabia que estavam armando para ele, que inventariam algo para interromper sua luta. Ele era considerado o sucessor de Dorothy Stang na proteção dos direitos dos trabalhadores rurais e da floresta amazônica na região. Para mim era claro que as reais sucessoras de Dorothy eram as freiras que dividiam a casa com ela e que seguiam seu trabalho sem escorregar em vaidades pessoais. O trabalho de Amaro Lopes, porém, era importante o suficiente para ser interrompido pela violência. Duas semanas mais tarde, como o padre havia previsto, ele foi preso numa operação cinematográfica pela polícia do Pará, e acusado de quase tudo. O objetivo era assassinar a sua reputação e neutralizá-lo. Foi alcançado.

Quando soube da morte de Marielle, era este o mapa de mortes ao redor de mim, apenas no pequeno círculo que era eu. Essas mortes, ainda que não diretamente, estavam conectadas. Elas expressavam um novo momento do país, um em que a vida valia ainda menos, e a justiça era ainda mais ausente, quando não conivente.
(...)

Eliane Brum,El País, 14/03/2019, 18:44 hs

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