quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

TRAIR É CRIAR

Usando Elias Canneti do livro “Massa e Poder" (1960), é possível identificar a “doença” do poder: a paranóia. Há sempre, de fato, na medida e no miolo das correlações de forças, uma circulação de desconfiança a priori, um incentivo ao medo, um convite à fobia, uma expectativa angustiante, uma melancolia disfarçada, um pânico frente à desordem, enfim, a grande suspeita contida numa peça sem autoria e, daí, sem sujeito. Quem é o poder? A paranóia não é individual, e sim coletiva, mesmo que surja em alguém isolado. Há regimes significantes eternizados como suplícios dos dominados. Veja o caso dos Estados e das Igrejas. Esta parece ser a regra que a história timbrou, ou finge que. Pode ser o rei, o presidente, o papa, o príncipe, o chefe de estado, o prefeito, o governador, figuras de autoridade, os poderosos... O que importa é que eles se inserem em modos de subjetivação como verdades dadas e contabilizadas, a depender dos rumos da política. Qualquer um pode ser qualquer um, todos são todos, desde que o poder funcione como maquinaria produtora de um gosto por viver e que se nutra de linhas institucionais endurecidas. Desconfia-se de tudo e de todos e vice-versa; instala-se o clima necessário a dizer e sentir “eu posso tudo”. “Aguirre, a Cólera dos Deuses”, o filme de W.Herzog (1972), ilustra bem o liame poder-paranóia como delírio do infinito: a sequência final é emblemática. Assim, é possível, no caso da psiquiatria, detectar todo um sistema de paranóia embutido na CID-10 como lógica persecutória. Isso funciona no território movediço dos afetos de uma clínica verticalizada. A psiquiatria tem poder porque é fraca. Como diz Nietzsche, "é preciso defender os fortes dos fracos".O poder produz, alimenta-se de mil produções subjetivas, delira sem delirar, delira naturalmente. A contrapartida à vivência persecutória seria, pois, a traição à ordem instituída da razão, à ordem instituída do transtorno mental, à ordem instituída do estado, à ordem instituída de todas as ordens. Trata-se de um modo e de um estilo de experimentar a passagem do tempo que não volta: a irreversibilidade em ato.

A.M.

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