sábado, 25 de julho de 2020

A VIRALIDADE DA AÇÃO POLÍTICA

A atual crise sanitária só tem uma vantagem, ter uma dimensão equivalente à das seguintes crises, aquelas que englobamos sob o nome de ecologia ou mudança climática. Até agora, as medidas tomadas em nome do meio ambiente sempre parecem mínimas —inclusive irrisórias— em comparação com o que está em jogo: uma ciclovia aqui, um carro elétrico ali. Por mais que os cientistas dissessem que deveríamos mudar de rumo “radicalmente” e “de modo duradouro” e reexaminar “todas as nossas condições de vida”, as pessoas assentiam com a cabeça e pensavam em outra coisa.

No entanto, o grande mérito da crise sanitária provocada pela covid-19 é ter conseguido, a toda velocidade e em todo o mundo, uma transformação radical e, infelizmente, duradoura, de nossas condições de vida em uma escala que, devido à magnitude do desastre, das forças mobilizadas e das vítimas, não tem equivalente a não ser se falarmos sobre as duas últimas guerras mundiais. Em meio à dor mais extrema, estamos vendo que a ordem mundial, que nos diziam ser impossível de mudar, tem uma plasticidade espantosa e que, como coletivo, os seres humanos não estão indefesos. Tudo depende, é claro, da sua capacidade de resistir ao retorno à ordem anterior.

E esta é a segunda e fascinante característica do vírus: está conseguindo tudo isso sem ir além do contágio de pessoa a pessoa, um contágio que cada um de nós pode interromper ou, pelo contrário, facilitar. Isso significa que o velho modelo de ação que tanto nos desesperava (como um indivíduo vai lutar sozinho contra um sistema esmagador?), na realidade, não faz sentido: um vírus vindo da China, por si só, e que viaja boca a boca, pode perfeitamente derrubar a ordem estabelecida. Uma lição maravilhosa: não existe sistema capaz de resistir à viralidade da ação política, basta colocá-la em prática com os instrumentos adequados.


Bruno Latour, El País, 24/07/2020, 12:32 hs

Nenhum comentário:

Postar um comentário