sexta-feira, 10 de julho de 2020

BUTLER DE NOVO

Julio Cortázar encarna uma tradição de imaginação literária e ativismo político extraordinários. Tenho em mente aquela advertência que Pablo Neruda fez há alguns anos: “Quem não lê Cortázar está condenado”. Cortázar acreditava que devemos estar conscientes da linguagem que usamos ao descrever o mundo, pois está repleta de significados inconscientes, histórias sociais, um legado de luta e submissão. É possível que a linguagem que seja mais clara para nós acabe se revelando a mais opaca e até enganosa quando começamos a nos aprofundar na história de seu uso.

Em uma aula de literatura que deu em 1980 na Universidade da Califórnia, em Berkeley, universidade onde sou professora, Cortázar disse a seus alunos: “A linguagem está aí e é uma grande maravilha e é o que faz de nós seres humanos, mas cuidado! Antes de utilizá-la é preciso ter em conta a possibilidade de que ela nos engane, ou seja, de que estejamos convencidos de que estamos pensando por conta própria e, na realidade, a linguagem está um pouco pensando por nós, usando estereótipos e fórmulas que vêm do fundo do tempo e podem estar completamente podres.”

E, no entanto, Cortázar nunca virou as costas à linguagem, nem à política, nem à esperança. Devemos questionar criticamente a maneira como reproduzimos em nossa linguagem as formas de poder às quais nos opomos e também devemos nos esforçar para usar a linguagem de um modo novo que abra uma possibilidade de esperança para o mundo. Utopia não é uma palavra fácil de usar, mas Cortázar não a rejeitou: Cortázar proclamou, como sabem, que Cuba era uma utopia alcançável. E com isso deu esperança à possibilidade de materializar uma igualdade radical de caráter político neste mundo. Ele não sabia se isso iria acontecer, nem embarcou em previsões, mas estava disposto, no entanto, a proclamar, a mobilizar o ato de falar como uma forma de combater o ceticismo e o niilismo de seu tempo. De fato, como é sabido, como membro do Tribunal Russell II, uniu forças com outros para condenar publicamente os crimes cometidos pelos regimes ditatoriais da América Latina. Ele não era juiz e o Tribunal Russell II não era um tribunal de justiça, mas quando os tribunais não cumprem seu trabalho ou quando a fé na lei vacila, existe ainda a possibilidade de fazer julgamentos públicos contundentes; particularmente quando as pessoas concordam em revisar em público as evidências.

Como escritor, Cortázar conquistou o direito de falar em público e escolheu fazê-lo em nome dos subordinados, dos censurados, dos criminalizados por fazer parte da resistência contra as ditaduras, mas também dos torturados e dos desaparecidos, daqueles cuja morte continua desconhecida e sem o reconhecimento dos governos responsáveis por seu desaparecimento. O Tribunal Russell era uma aliança transnacional composta por pessoas que se arrogaram o direito e o poder de julgar ali onde os tribunais fracassaram ou onde o sistema jurídico demonstrou inclusive ser cúmplice dos crimes.
(...)

Judith Butler, El País, 10/07/2020, 13:32 hs

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