sábado, 29 de junho de 2013

CARTA A UM CRÍTICO SEVERO

(...) Mas o que sabe você de mim, uma vez que eu acredito no segredo – quer dizer, na potência do falso – mais do que nos relatos que revelam uma deplorável crença na exatidão e na verdade? Se não me mexo, se não viajo, tenho como todo mundo minhas viagens no mesmo lugar, que não posso medir senão com minhas emoções, e exprimir da maneira mais oblíqua e indireta naquilo que escrevo. E minha relação com as bichas, os alcoólatras ou os drogados, o que isso tem a ver com o assunto, se obtenho em mim efeitos análogos aos deles por outros meios? O que interessa não é saber se me aproveito do que quer que seja, mas se tem gente que faz tal ou qual coisa em seu canto, eu no meu, e se há encontros possíveis, acasos, casos fortuitos, e não alinhamentos, aglutinações, toda essa merda em que se supõe que cada um deva ser a má consciência e o inspetor do outro. Eu não devo nada a vocês, nem vocês a mim. Não há nenhuma razão para que eu frequente seus guetos, já que tenho os meus. O problema nunca consistiu na natureza deste ou daquele grupo exclusivo, mas nas relações transversais em que os efeitos produzidos por tal ou qual coisa (homossexualismo, droga, etc.) sempre podem ser produzidos por outros meios. Contra os que pensam “eu sou isto, eu sou aquilo”, e que pensam assim de maneira psicanalítica (referência à sua infância ou destino), é preciso pensar em termos incertos, improváveis: eu não sei o que sou, tantas buscas ou tentativas necessárias, não-narcísicas, não-edipianas – nenhuma bicha jamais poderá dizer com certeza “eu sou bicha”. O problema não é ser isto ou aquilo no homem, mas antes o de um devir inumano, de um devir universal animal: não tomar-se por um animal, mas desfazer a organização humana do corpo, atravessar tal ou qual zona de intensidade do corpo, cada um descobrindo as suas próprias zonas, e os grupos, as populações, as espécies que o habitam. Porque não teria direito de falar da medicina sem ser médico, já que falo dela como um cão? Por que razão não falar da droga sem ser drogado, se falo dela como um passarinho? E por que eu não inventaria um discurso sobre alguma coisa, ainda que esse discurso seja totalmente irreal e artificial, sem que me peçam meus títulos para tal? A droga às vezes faz delirar, por que eu não haveria de delirar sobre a droga? Para que serve essa sua “realidade”? Raso realismo, o de vocês. E então por que você me lê? O argumento da experiência reservada é um mau argumento reacionário. A frase de O anti-Édipo que eu prefiro é: não, nós nunca vimos esquizofrênicos.
(...)
Gilles Deleuze in Conversações

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