DESONRA AO MÉRITO
Nada ilustra melhor a cultura da conciliação – melhor seria dizer da cumplicidade – que a tentativa da Câmara dos Deputados de conferir ao juiz Sérgio Moro a medalha do Mérito Legislativo, no exato momento em que a instituição está sob forte crivo judicial.
Sérgio Moro, claro, não aceitou. E não escondeu os motivos: “No presente momento, havendo parlamentares federais denunciados em decorrência da Operação Lava Jato, também não me sentiria confortável em receber o aludido prêmio, o que poderia ser mal interpretado ou gerar constrangimentos desnecessários.”
Desnecessária também a explicação, que só seria imperativa se, inversamente, ele tivesse aceitado. Nesse caso, estaria jogando ao lixo todo o esforço até aqui empreendido para quebrar o ciclo histórico da impunidade, que marca a vida pública no Brasil.
Imaginem a cena: Eduardo Cunha, presidente da Câmara, à frente da sessão solene, colando a medalha ao peito do juiz de uma operação que investiga atos ilícitos de umas cinco dezenas de parlamentares, inclusive dele próprio, Eduardo Cunha.
Os réus condecorando o juiz.
Conciliação, em si, não é ruim. Depende das bases em que se firma. Se o conflito se funda em questões meramente doutrinárias ou ideológicas, há mérito em se buscar um denominador comum, que leve à convivência civilizada.
É essa na realidade a finalidade da política, degrau evolutivo da humanidade, ao criar alternativa pacífica à guerra, única via inicial de solução para as divergências, que adiante reapareciam, ainda mais cruentas, ainda mais insensatas.
Aristóteles considerava a política, nos termos originais em que foi concebida, como a mais elevada criação humana, se observados os seus princípios éticos. Desnecessário dizer que não foram – e não são. Desde Maquiavel, o quadro se agravou; a hipocrisia cedeu lugar ao escracho e a trapaça tornou-se a arma de preservação do poder.
Os conselhos que, entre os séculos 15 e 16, Maquiavel dava ao príncipe – o governante de plantão - prescindiam da moral e buscavam tão somente a eficácia no manejo do poder. Antônio Gramsci, fundador do Partido Comunista italiano, viu, no início do século passado, que o príncipe contemporâneo era o próprio partido – e sofisticou os conselhos. A Era PT levou-os ao paroxismo.
No caso presente, as bases de conciliação são podres, já que o que separa os lados não é um conflito, mas um crime – vários crimes, na verdade. Não há conciliação acima da lei.
O que se buscou, ainda que não tenha sido essa a intenção do deputado que propôs a comenda, Rubens Bueno (PPS-PR), foi constranger o juiz. Um suborno moral. O deputado Bueno não está na Lava Jato e integra um partido que tem estimulado as investigações. Não agiu de má fé.
Mas foi no mínimo ingênuo em supor que a Câmara dos Deputados, fosse, neste momento, instância adequada para esse tipo de homenagem. A mesma Câmara, que acaba de aprovar a repatriação de dinheiro ilícito depositado no exterior, para ser legitimado (isto é, lavado), mediante pagamento de imposto – e que servirá para livrar da cadeia gente já condenada pelo juiz Sérgio Moro -, incide com essa proposta de homenagem em crime (ainda que não previsto no Código Penal) de cara-de-pau.
Embora ninguém possa tirar do Executivo o protagonismo pela diarreia cívica por que passa o país, não há dúvida de que Legislativo e Judiciário contribuem com considerável taxa de toxina moral para o vexame em curso.
Sérgio Moro já deu mostras de que não é bobo – e, ao ser confundido como tal, mostra que a bobeira, sim, se apossou do próprio Congresso, que ainda não percebeu a responsabilidade moral e histórica que lhe pesa neste momento.
O vaivém do impeachment, submetido às mais abjetas negociações políticas, em confronto explícito com a vontade da sociedade, que deveria estar ali representada, é uma mácula que atravessará gerações. Como não quer se livrar da corrupção pela única via disponível – a aplicação da lei -, tenta a Câmara estendê-la a quem se incumbe de fazê-lo, arrostando todos os revezes que daí resultam. Oferecer tal comenda, nessas circunstâncias, configura desonra ao mérito, que o juiz fez muito bem em rejeitar.
Honra e mérito, afinal, não lhe faltam – e o que tem feito até aqui dispensa medalhas, discursos e solenidades.
Ruy Fabiano, do blog do Noblat, 14/11/2015, 01:10 hs
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