GOVERNAMENTALIDADE E TERRORISMO DE ESTADO
O domínio da filosofia política é o que tem sido verdadeiramente desafiado a responder a questões difíceis levantadas pela violência política, pelas guerras, pelos campos de concentração, pelos campos de extermínio e pelos assassinatos indiretos causados pela gestão burocrática da economia e da vida das pessoas. As duas guerras mundiais, as continuadas guerras imperialistas, as perseguições políticas em todo o mundo, inclusive na América Latina e no Brasil, as práticas de eliminação de grupos sociais, o descaso no suporte e auxílio a doentes, pobres e necessitados, são alguns exemplos em uma lista extensa de desmandos e excessos de poder.
No mundo contemporâneo, razão científica e tecnológica podem conviver com a irracionalidade política, o que não deixa de ser um fato paradoxal, uma vez que a ciência e a tecnologia trouxeram também benefícios e contribuições positivas para a vida de muitas pessoas. Por este motivo, Michel Foucault procurou analisar as diversas técnicas de poder que foram sucessivamente praticadas no mundo ocidental nos últimos séculos. As técnicas de poder que Foucault analisou resultaram no que o filósofo denominou de “governamentalidade”: um conjunto de técnicas de gestão da população e dos agentes econômicos que resultam em contextos de poder propriamente contemporâneos, não podendo ser confundida com a soberania que preocupa-se, sobretudo, com o controle e manutenção do poder do soberano sobre o povo ou cidadãos.
O poder na modernidade é realizado por várias instituições e muitos conhecimentos e saberes. Foucault tem a percepção de que a explicação do poder somente pelo papel do Estado e de seus departamentos não pode dar conta de todos os campos reais e efetivos nos quais o poder acontece. O poder tem tal alcance e está tão disseminado nos múltiplos lugares da vida social que, em certos casos, pode levar a possíveis abusos e a possíveis patologias do poder que estão conectadas ou sintonizadas com segmentos importantes do mundo social e político, tão extensos, de dimensão capilar e disseminados no mundo social que não se restringem nem poderiam estar limitados ao campo circunscrito da esfera estatal. A prática efetiva do poder, desde o começo do século 20, não se limita ao âmbito do Estado; antes disto, está articulado a uma série de parceiros e instituições que compartilham, em uma gigantesca rede, de todo um domínio de poder e de intervenção social que vai das grandes instituições até os pequenos acontecimentos e relações interpessoais.
Quando o que está em questão são os excessos de poder, não trata-se de uma influência ideológica nem mesmo de um fato histórico particular e localizado, como o nazismo e stalinismo; temos diante de nós, isto sim, uma tecnologia de poder nascida em meados do século 18, e que tem por alvo a regulação da população, que Foucault denomina de biopolítica da espécie humana. Este novo poder funcionaria diferentemente do poder de soberania, que consiste em fazer viver e deixar morrer. Michel Foucault no curso “Em defesa da sociedade”, demonstra sua indignação com o fato de que o Estado moderno tenha passado a eliminar sua própria população, o que contraria seus objetivos e sua razão de ser, pois como um poder que tem por objetivo fazer viver pode deixar morrer? A prática do poder, assim, leva a objetivos que contrariam seus desígnios iniciais.
Para Foucault, o fascismo e o stalinismo utilizaram e alargaram mecanismos já existentes na maioria das outras sociedades. Estes sistemas políticos utilizaram as ideias e os procedimentos de nossa racionalidade política. A racionalidade política, acompanhada dos conhecimentos técnicos e científicos, tem realizado as mais diversas modalidades de crimes e assassinatos em massa, em distintas escalas, em práticas que vão da guerra ao descaso com os não cobertos pela seguridade social, de maneira a que tal articulação se passe nos mais diversos campos de intervenção social, tais como os campos jurídicos, médicos, militares, pouco importa, desde que funcione algum modo de controle, de exclusão, de eliminação.
Vale a pena ressaltar que duas ideias importante apresentadas no curso “Segurança, território, população”, a saber, a governamentalidade e o golpe de Estado não são antagônicos. Na governamentalidade, o mundo democrático, construído a partir da decisão popular e amparado nas leis seria, segundo Foucault, um mundo da gestão dos interesses da população, considerada enquanto categoria abstrata e sem carne e sangue. Tudo seria normal se não entrasse em jogo a ideia de golpe de Estado, ou seja, a ideia de que a governamentalidade traz em si mesma um aspecto absolutamente inusitado, em certas condições excepcionais, pelas quais as regras do jogo político passam a ser ameaçados e são anuladas. É neste ponto limítrofe que se inicia o golpe de Estado, entendido enquanto iniciativa e ação feitos pelo próprio Estado. Neste caso, temos de deixar claro que a noção de golpe de Estado, em Foucault, é sinônimo de Estado de sítio ou Estado de exceção, situação que se desencadeia por dispositivos constitucionais e que é realizado pelo próprio Estado, em caso de ameaça (real ou fictícia) externa ou interna. A noção tradicional de golpe de Estado, por sua vez, seria o objeto da análise do filósofo. Através dele torna-se perfeitamente cabível que façamos a associação entre golpe de Estado e terrorismo de Estado.
Segundo o filósofo francês, que se apóia em um teórico pouco conhecido do século 17, Naudé, o golpe de Estado é uma suspensão das leis e da legalidade que excede o direito comum. O Estado abandona o exercício racional e gestor da vida socioeconômica, de caráter administrativo, para ter um desempenho completamente diferente, pois a razão de Estado pode converter-se em golpe de Estado, e passa a ser violento. Violento é levado a sacrificar, a despedaçar, a fazer o mal, passando a ser injusto e assassino. Tal violência, ademais, é e deve ser teatral, não somente para impactar, mas também para mostrar que sua intervenção deverá ser durável ou irreversível. Finalmente, o Estado, neste processo, leva muito longe o desejo de reparação no golpe de Estado, justificando, em muitos casos, o teatro político, a exibição de poderio policial ou militar. Nesta condição, não existe antinomia, no que concerne ao Estado, entre razão e violência. É possível afirmar, inclusive, que a violência de Estado, nada mais é do que a manifestação impactante de sua própria razão. O golpe de Estado é inerente ao Estado, e a partir dele surge a expressão terrorismo de Estado, que é a manifestação da violência do Estado face à sua população e ao sistema legal.
Em consequência, a oposição entre governamentalidade (gestão) e golpe de Estado (violência) é meramente retórica, e traz a grande lição de que a política, na modernidade, aceita violências como sendo a forma mais pura da razão e da razão de Estado. Na raiz e no cerne da racionalidade política está a violência, a tendência ao genocídio e ao extermínio, fato irrefutável do presente histórico. O Estado e o crime de Estado, o terrorismo de Estado, são manifestações da própria razão de ser do Estado. Eles coabitam na paradoxal interface entre legalidade e violência. Todavia, há que se manter a fé nas lutas de resistência e pelos direitos das populações, pois os crimes perpetrados pelos Estados não podem ser nem duráveis nem constantes. O Estado de exceção, o Estado de sítio é uma possibilidade política e jurídica ocasional, que ocorre às vezes em um determinado país, em certas condições, em um período de tempo. Nunca houve, na história, um Estado de exceção, um terrorismo de Estado que durasse séculos, devido às constantes lutas agonísticas das populações e da sociedade organizada contrárias a um exercício de poder unívoco. Neste sentido, a hipótese de Giorgio Agambem sobre a constância do Estado de exceção na modernidade é muito questionável e não se sustenta, pois desmerece o poder das fortes lutas de resistência e por direitos políticos realizados por grupos humanos, em muitas partes do planeta.
Certamente, o ápice do terrorismo de Estado não está na eliminação dos indesejáveis, de parcelas da população que foram ou podem passar a ser indesejáveis e elimináveis. Um exemplo marcante: em entrevista ao jornalista Ceverino Reato, o general Jorge Videla revelou que em decretos privados, os chefes militares na ditadura Argentina, entre 1976 e 1981, foram liberados para utilizar a sigla D.F. para que alguém fosse eliminado. Tal sigla, na gíria militar argentina, disposicíon final, dizia respeito aos uniformes ou botas que não servem mais. Neste período a sigla foi aplicada, sobretudo, àqueles que foram assassinados por motivos políticos. O próprio Videla afirmou ter escrito a sigla várias vezes em vários documentos e calculou que foram eliminadas perto de nove mil pessoas apenas com tal procedimento.
O maior poder de eliminação, do qual quase ninguém fala e Foucault insiste neste ponto, está no paradoxal caráter suicida do Estado: o poder atômico passa a ser uma espécie de paradoxo difícil de contornar, ou mesmo absolutamente incontornável, é o fato de que, no poder de fabricar e de utilizar a bomba atômica, pôs-se em cena um poder que é o de eliminar a vida, e de se auto-suprimir como poder de manter a vida. Por outro lado, se pensarmos no estoque de bombas de hidrogênio e do potencial de destruição absoluta de toda e qualquer forma de vida da vida no planeta, temos que reconhecer que o limiar do Estado, seu ponto máximo, é seu poder de destruição total, de caráter totalmente suicida. Foucault lembra que o caráter suicida do Estado chega a seu ápice paradoxal na fabricação de vírus incontroláveis e universalmente destruidores.
As decisões burocráticas, por outro lado, podem levar as pessoas a condições de extrema fragilidade e impotência, e a viverem um estado de constante temor. Fazer com que certas pessoas ou grupos sociais passem a não ter mais direito a certos benefícios – ou, o que é mais terrível, a não ter mais direito a um determinado atendimento médico quando eventualmente necessitar –, eis uma situação que pode acontecer. Tal processo intimidador pode levar muitas pessoas a um estado de submissão em nome de uma possível segurança (que por sinal nunca se mostra categórica), dependentes que são dos sistemas de seguridade social. O modo de vida das pessoas passa a ser cerceado e vigiado, pessoas cada vez mais dependentes e assujeitadas são postas e dispostas pelas sutis tecnologias de poder existentes na era do controle e da governamentalidade. As pessoas passam a ser responsabilizadas pelos efeitos médicos e legais da vida que levaram ou ainda levam – se contrárias ao padrão desejável – e podem ser excluídas caso não se adaptem às regras do jogo burocrático e político.
Por outro lado, a imigração e expatriação podem tornar-se um modo terrível de elisão, de desaparição. A percepção de Foucault é sutil, porque não acarreta somente na morte de forma direta, mas também no que poderia ser assassinato indireto, ao fato de expor pessoas à morte política, econômica, cultural. A multidão dos ameaçados pela fome nos países periféricos, os que abandonam suas casas e países às vezes sem poder levar nada, os grandes contingentes populacionais que vão em busca de uma vida melhor (ainda que seja uma vida humilhada), são milhões. A rota de acesso para a entrada nos países “ricos” é difícil, milhares de pessoas morrem à míngua em meios de transportes inapropriados, ou são eliminados por contrabandistas de carga humana. Por outro lado, em terras estrangeiras, muitas vezes sem qualquer amparo legal, uma multidão de pessoas, em busca tão somente de uma vida melhor, vivem excluídas do convívio social e dos direitos formais. Convertem-se em trabalhadores com pouco custo trabalhista. Os exilados são a mão de obra barata do capitalismo, descartáveis e hostilizados. A grande massa da exclusão, constituída pelos estrangeiros, pelos estranhos, pelos apátridas, a muito custo chegam a uma conquista social semelhante às suas aspirações.
Para concluir: se o Estado tem na sua raiz a violência, a resistência ao poder deve visar à eliminação do próprio Estado, os excessos de poder e o terrorismo de Estado. A resistência ao poder, todavia, não é só política: tem por objetivo a preservação da vida.
Guilherme Castelo Branco, Revista Cult, publicado em 08/08/2014
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