ESPÍRITO DE CARNE
(...)
A relação da filosofia com o Estado não vem somente do fato de, desde um passado
recente, a maioria dos filósofos serem "professores públicos" (embora esse
fato tenha tido, na França e na Alemanha, um sentido bem diferente). A
relação vem de mais longe. É que o pensamento toma emprestado sua
imagem propriamente filosófica do Estado como bela interioridade
substancial ou subjetiva. Ela inventa um Estado propriamente espiritual,
como um Estado absoluto, que não é de modo algum um sonho, já que
funciona efetivamente no espírito. Daí a importância de noções como as de
universalidade, de método, de questão e resposta, de julgamento, de
reconhecimento ou de recognição, de idéias justas, sempre ter idéias justas.
Daí a importância de temas como os de uma república dos espíritos, de
uma inquirição do entendimento, de um tribunal da razão, de um puro
"direito" do pensamento, com ministros .da Justiça e funcionários do
pensamento puro. A filosofia está penetrada pelo projeto de tornar-se a
língua oficial de um puro Estado. O exercício do pensamento se conforma,
assim, com os objetivos do Estado real, com significações dominantes como
com as exigências da ordem estabelecida. Nietzsche disse tudo sobre esse
ponto em Schopenhauer educador. O que é esmagado e denunciado como
nocivo é tudo o que pertence a um pensamento sem imagem, o
nomadismo, a máquina de guerra, os devires, as núpcias contra
natureza, as capturas e os roubos, os entre-dois-reinos, as línguas menores
ou as gagueiras na língua etc. Certamente, outras disciplinas que não a
filosofia e sua história podem desempenhar esse papel de repressor do
pensamento. Pode-se até mesmo dizer, hoje, que a história da filosofia
fracassou, e que "o Estado não precisa mais da sanção da filosofia".
Amargos concorrentes, porém, já tomaram o lugar. A epistemologia
substituiu a história da filosofia. O marxismo braniu um julgamento da
história ou até mesmo um tribunal do povo que são, antes de tudo, mais
inquietantes que os outros. A psicanálise ocupa-se cada vez mais da função
"pensamento", e não é à toa que se casa com a lingüística. São os novos
aparelhos de poder no próprio pensamento, e Marx, Freud, Saussure
compõem um curioso Repressor de três cabeças, uma língua dominante
maior. Interpretar, transformar, enunciar são as novas formas de idéias
"justas".
(...)
G. Deleuze e C. Parnet in Diálogos
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