sexta-feira, 15 de julho de 2016

ESPÍRITO DE CARNE

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A relação da filosofia com o Estado não vem somente do fato de, desde um passado recente, a maioria dos filósofos serem "professores públicos" (embora esse fato tenha tido, na França e na Alemanha, um sentido bem diferente). A relação vem de mais longe. É que o pensamento toma emprestado sua imagem propriamente filosófica do Estado como bela interioridade substancial ou subjetiva. Ela inventa um Estado propriamente espiritual, como um Estado absoluto, que não é de modo algum um sonho, já que funciona efetivamente no espírito. Daí a importância de noções como as de universalidade, de método, de questão e resposta, de julgamento, de reconhecimento ou de recognição, de idéias justas, sempre ter idéias justas. Daí a importância de temas como os de uma república dos espíritos, de uma inquirição do entendimento, de um tribunal da razão, de um puro "direito" do pensamento, com ministros .da Justiça e funcionários do pensamento puro. A filosofia está penetrada pelo projeto de tornar-se a língua oficial de um puro Estado. O exercício do pensamento se conforma, assim, com os objetivos do Estado real, com significações dominantes como com as exigências da ordem estabelecida. Nietzsche disse tudo sobre esse ponto em Schopenhauer educador. O que é esmagado e denunciado como nocivo é tudo o que pertence a um pensamento sem imagem, o nomadismo, a máquina de guerra, os devires, as núpcias contra natureza, as capturas e os roubos, os entre-dois-reinos, as línguas menores ou as gagueiras na língua etc. Certamente, outras disciplinas que não a filosofia e sua história podem desempenhar esse papel de repressor do pensamento. Pode-se até mesmo dizer, hoje, que a história da filosofia fracassou, e que "o Estado não precisa mais da sanção da filosofia". Amargos concorrentes, porém, já tomaram o lugar. A epistemologia substituiu a história da filosofia. O marxismo braniu um julgamento da história ou até mesmo um tribunal do povo que são, antes de tudo, mais inquietantes que os outros. A psicanálise ocupa-se cada vez mais da função "pensamento", e não é à toa que se casa com a lingüística. São os novos aparelhos de poder no próprio pensamento, e Marx, Freud, Saussure compõem um curioso Repressor de três cabeças, uma língua dominante maior. Interpretar, transformar, enunciar são as novas formas de idéias "justas". 
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G. Deleuze e C. Parnet in Diálogos

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