sexta-feira, 8 de setembro de 2017

POR  QUE  ESCREVER?

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O fim, a finalidade de escrever? Para além ainda de um devir-mulher, de um devir-negro, animal etc., para além de um devir-minoritário, há o empreendimento final de devir-imperceptível.Não,um escritor não pode desejar ser "conhecido", reconhecido.O imperceptível, caráter comum da maior velocidade e da maior lentidão. Perder o rosto, ultrapassar ou furar o muro, limá-lo pacientemente, escrever não tem outro fim. O que Fitzgerald chamava de verdadeira ruptura: a linha de fuga, não a viagem nos mares do Sul, mas a aquisição de uma clandestinidade (mesmo se se deve tornar-se animal, tornar-se negro ou mulher). Ser, enfim, desconhecido, como poucas pessoas são, é isso trair. É muito difícil não ser mais conhecido de ninguém, sequer do porteiro, ou no bairro, o cantor sem nome, o ritornelo. No final de Tenra é a noite, o herói se dissipa literalmente, geograficamente. O texto tão bonito de Fitzgerald, The crack up, diz: "Eu me sentia parecido com os homens que via nos trens do subúrbio de Great Neck, quinze anos antes..." Há todo um sistema social que poderia ser chamado de sistema muro branco – buraco negro. Estamos sempre dependurados sobre o muro das significações dominantes, estamos sempre mergulhados no buraco de nossa subjetividade, o buraco negro de nosso Eu que nos é mais caro do que tudo. Muro onde se inscrevem todas as determinações objetivas que nos fixam, nos enquadram, nos identificam e nos fazem reconhecer; buraco onde nos alojamos, com nossa consciência, nossos sentimentos, nossas paixões, nossos segredinhos por demais conhecidos, nossa vontade de torná-los conhecidos. Mesmo se o rosto é um produto desse sistema, é uma produção social: grande rosto com bochechas brancas, com o buraco negro dos olhos. Nossas sociedades têm necessidade de produzir rosto. O Cristo inventou o rosto.
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Gilles Deleuze e Claire Parnet in Diálogos

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