quinta-feira, 1 de dezembro de 2011



A  desnaturalização  do  paciente 
                                                                          Antonio Moura



A  clínica psicopatológica tornou-se a clínica psicofarmacológica. Isso não é um mal em si, mas um fato da cultura médica  que incide sobre o  trabalho com o paciente. Em termos  empíricos, o próprio  paciente torna-se  um produto de forças institucionais; elas  fabricam a clínica e por extensão o paciente.  Tais forças  se explicitam na  psiquiatria,  são  a  psiquiatria [1].  No espaço do atendimento, do exame, do encontro com o paciente, elas   se concretizam  como rostidade  farmacológica.  É  um regime de aparência corporal,  semiótica,   que traça uma  linha terapêutica antes mesmo de começar o tratamento. As psicoses,  por excelência,    são  objeto   desse processo  de  rostificação. A cena extremada,  o paciente  impregnado  por   neurolépticos  (alterações  extra-piramidais)  e outros  signos  menos perceptíveis, compõem a visibilidade do espaço clínico. Assim, fazer  psiquiatria nos dias atuais tem  a opção farmacológica como  palavra de ordem: prescreva mais  e mais  remédios químicos. Isso não  vale apenas   para os que estão científico  e   juridicamente   autorizados a  fazê-lo, mas para todos os  que lidam com a loucura. Nosso foco pode ser a  chamada “equipe técnica” em saúde mental. Todos medicam,  todos estão medicados,   medicalizados   numa  produção subjetiva  inconsciente e incessante. Isso é de uma  tal obviedade que se esconde em cotidianos naturalizados. Uma espécie de ordem  programada se impõe como desejo psiquiátrico  único e  totalizante. Ora, o desejo não é individual, não é uma essência ou um atributo exclusivo  de alguém.  Ao contrário,  é coletivo  e só  se mostra   individual   como  produto de um segmento dominante. A  forma-psiquiatria é  este   segmento dominante no funcionamento da equipe.  Não importa que os psiquiatras se sintam desconfortáveis com o avanço  da luta antimanicomial [2] . Afinal,   a psiquiatria mantém um  status   baseado  na medicina,   o  que   opera   efeitos concretos,   entre eles, o da farmacologização  subjetiva. Há uma fabricação do rosto do paciente que    funciona em oposição ao rosto   normal [3].  Quem o fabrica? O autor    não  é   identificável.   Uma máquina binária sem forma  (médico-paciente)   é  implantada no seio  da clínica.  Até   fins  dos anos 80  (século XX),  apenas o  louco  dito  psicótico era tornado  “rosto”  pelo uso de  fármacos. Hoje essa manobra atinge  a todos, incluindo os não psicóticos   e   até os  normais.  As pesquisas neuro-científicas  produziram um cérebro-mente, o que  se reflete no uso continuado  de  remédios  e   associações medicamentosas. É óbvio  que o  fármaco atua no sintoma, não mais que no sintoma. Contudo,  isso não significa  obter uma cura ou  sequer uma melhora. A somatória dos  sintomas leva o médico à conexão simples sintoma-fármaco. Daí    o ato de medicar percorrer   um roteiro implícito. Ora,  é muito raro  que o paciente apresente apenas um sintoma. Então  valeria   a  equação “vários sintomas = vários fármacos”?    Não faltam  psicofármacos  para  embasá-la, ao contrário. O paciente vai sendo  rostificado  como um “ser-que-demanda-remédio”,  produzindo  a psiquiatria  e  o psiquiatra num circuito de re-alimentação continua.  A máquina se fecha: uma   produção/produto/produção     tecnicamente monitorada é o  trabalho do psiquiatra   clínico,   o qual     pode   até ser (...)   



[1] O  caráter  técnico-científico  da  psiquiatria é  tributário dessas  forças.
[2] Observa-se no  Brasil  atual  uma  oposição  (não  sem  certa animosidade)  entre  psiquiatras  e  “defensores” da  luta  anti-manicomial.
[3] O  rosto  normal  é  o   do  organismo  cognitivo e funcionalmente  correto,  tal  como  busca   a  terapia  cognitivo-comportamental.

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