A desnaturalização do paciente
Antonio Moura
A clínica psicopatológica tornou-se a clínica psicofarmacológica. Isso não é um mal em si, mas um fato da cultura médica que incide sobre o trabalho com o paciente. Em termos empíricos, o próprio paciente torna-se um produto de forças institucionais; elas fabricam a clínica e por extensão o paciente. Tais forças se explicitam na psiquiatria, são a psiquiatria [1]. No espaço do atendimento, do exame, do encontro com o paciente, elas se concretizam como rostidade farmacológica. É um regime de aparência corporal, semiótica, que traça uma linha terapêutica antes mesmo de começar o tratamento. As psicoses, por excelência, são objeto desse processo de rostificação. A cena extremada, o paciente impregnado por neurolépticos (alterações extra-piramidais) e outros signos menos perceptíveis, compõem a visibilidade do espaço clínico. Assim, fazer psiquiatria nos dias atuais tem a opção farmacológica como palavra de ordem: prescreva mais e mais remédios químicos. Isso não vale apenas para os que estão científico e juridicamente autorizados a fazê-lo, mas para todos os que lidam com a loucura. Nosso foco pode ser a chamada “equipe técnica” em saúde mental. Todos medicam, todos estão medicados, medicalizados numa produção subjetiva inconsciente e incessante. Isso é de uma tal obviedade que se esconde em cotidianos naturalizados. Uma espécie de ordem programada se impõe como desejo psiquiátrico único e totalizante. Ora, o desejo não é individual, não é uma essência ou um atributo exclusivo de alguém. Ao contrário, é coletivo e só se mostra individual como produto de um segmento dominante. A forma-psiquiatria é este segmento dominante no funcionamento da equipe. Não importa que os psiquiatras se sintam desconfortáveis com o avanço da luta antimanicomial [2] . Afinal, a psiquiatria mantém um status baseado na medicina, o que opera efeitos concretos, entre eles, o da farmacologização subjetiva. Há uma fabricação do rosto do paciente que funciona em oposição ao rosto normal [3]. Quem o fabrica? O autor não é identificável. Uma máquina binária sem forma (médico-paciente) é implantada no seio da clínica. Até fins dos anos 80 (século XX), apenas o louco dito psicótico era tornado “rosto” pelo uso de fármacos. Hoje essa manobra atinge a todos, incluindo os não psicóticos e até os normais. As pesquisas neuro-científicas produziram um cérebro-mente, o que se reflete no uso continuado de remédios e associações medicamentosas. É óbvio que o fármaco atua no sintoma, não mais que no sintoma. Contudo, isso não significa obter uma cura ou sequer uma melhora. A somatória dos sintomas leva o médico à conexão simples sintoma-fármaco. Daí o ato de medicar percorrer um roteiro implícito. Ora, é muito raro que o paciente apresente apenas um sintoma. Então valeria a equação “vários sintomas = vários fármacos”? Não faltam psicofármacos para embasá-la, ao contrário. O paciente vai sendo rostificado como um “ser-que-demanda-remédio”, produzindo a psiquiatria e o psiquiatra num circuito de re-alimentação continua. A máquina se fecha: uma produção/produto/produção tecnicamente monitorada é o trabalho do psiquiatra clínico, o qual pode até ser (...)
[1] O caráter técnico-científico da psiquiatria é tributário dessas forças.
[2] Observa-se no Brasil atual uma oposição (não sem certa animosidade) entre psiquiatras e “defensores” da luta anti-manicomial.
[3] O rosto normal é o do organismo cognitivo e funcionalmente correto, tal como busca a terapia cognitivo-comportamental.
Nenhum comentário:
Postar um comentário