PARA ALÉM DOS DUALISMOS
(...) A questão é primeiro a do corpo — o corpo que nos
roubam para fabricar organismos oponíveis. Ora, é à menina, primeiro, que
se rouba esse corpo: páre de se comportar assim, você não é mais uma
menininha, você não é um moleque, etc. É à menina, primeiro, que se rouba
seu devir para impor-lhe uma história, ou uma pré-história. A vez do menino
vem em seguida, mas é lhe mostrando o exemplo da menina, indicando-lhe a
menina como objeto de seu desejo, que fabricamos para ele, por sua vez, um
organismo oposto, uma história dominante. A menina é a primeira vítima,
mas ela deve também servir de exemplo e de cilada. É por isso que,
inversamente, a reconstrução do corpo como Corpo sem órgãos, o
anorganismo do corpo, é inseparável de um devir-mulher ou da produção de
uma mulher molecular. Sem dúvida, a moça torna-se mulher, no sentido
orgânico ou molar. Mas, inversamente, o devir-mulher ou a mulher
molecular são a própria moça. A moça certamente não se define por sua
virgindade, mas por uma relação de movimento e repouso, de velocidade e
lentidão, por uma combinação de átomos, uma emissão de partículas:
hecceidade. Ela não pára de correr num corpo sem órgãos. Ela é linha
abstrata ou linha de fuga. Por isso as moças não pertencem a uma idade, a
um sexo, a uma ordem ou a um reino: elas antes deslizam entre as ordens,
entre os atos, as idades, os sexos; elas produzem n sexos moleculares na
linha de fuga, em relação às máquinas duais que elas atravessam de fora a
fora. A única maneira de sair dos dualismos, estar-entre, passar entre,
intermezzo, é o que Virgínia Woolf viveu com todas suas forças, em toda sua
obra, não parando de devir. A moça é como o bloco de devir que permanece
contemporâneo de cada termo oponível, homem, mulher, criança, adulto.
Não é a moça que se torna mulher, é o devir-mulher que faz a moça
universal; não é a criança que torna-se adulto, é o devir-criança que faz uma
juventude universal. Trost, autor misterioso, fez um retrato de moça ao qual
ele liga o destino da revolução: sua velocidade, seu corpo livremente
maquínico, suas intensidades, sua linha abstrata ou de fuga, sua produção
molecular, sua indiferença à memória, seu caráter não figurativo — "o não
figurativo do desejo".
(...)
G. Deleuze e F. Guattari in Mil Platôs, vol. 4
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