MÁQUINA DE GUERRA, CIÊNCIA MENOR, NÔMADE
(...) Um corpo não se reduz a um organismo, assim como o espírito de corpo
tampouco se reduz à alma de um organismo. O espírito não é melhor, mas
ele é volátil, enquanto a alma é gravífica, centro de gravidade. Seria preciso
invocar uma origem militar do corpo e do espírito de corpo? Não é o
"militar" que conta, mas antes uma origem nômade longínqua. Ibn Khaldoun
definia a máquina de guerra nômade por: as famílias ou linhagens, mais o
espírito de corpo. A máquina de guerra entretém com as famílias uma
relação muito diferente daquela do Estado. Nela, em vez de ser célula de
base, a família é um vetor de bando, de modo que uma genealogia passa de
uma família a outra, segundo a capacidade de tal família, em tal momento,
em realizar o máximo de "solidariedade agnática". A celebridade pública da
família não determina o lugar que ocupa num organismo de Estado; ao
contrário, é a potência ou virtude secreta de solidariedade, e a movência
correspondente das genealogias, que determinam a celebridade num corpo
de guerra. Há aí algo que não se reduz nem ao monopólio de um poder
orgânico nem a uma representação local, mas que remete à potência de um
corpo turbilhonar num espaço nômade. Certamente é difícil considerar os
grandes corpos de um Estado moderno como tribos árabes. O que queremos
dizer, na verdade, é que os corpos coletivos sempre têm franjas ou minorias
que reconstituem equivalentes de máquina de guerra, sob formas por vezes
muito inesperadas, em agenciamentos determinados tais como construir
pontes, construir catedrais, ou então emitir juízos, ou compor música,
instaurar uma ciência, uma técnica... Um corpo de capitães faz valer suas
exigências através da organização dos oficiais e do organismo dos oficiais
superiores. Sempre sobrevêm períodos em que o Estado enquanto organismo
se vê em apuros com seus próprios corpos, e em que esses, mesmo
reivindicando privilégios, são forçados, contra sua vontade, a abrir-se para
algo que os transborda, um curto instante revolucionário, um impulso
experimentador. Situação confusa onde cada vez é preciso analisar
tendências e pólos, naturezas de movimentos. De repente, é como se o corpo
dos notários avançasse de árabe ou de índio, e depois se retomasse, se
reorganizasse: uma ópera cômica, da qual não se sabe o que vai resultar
(acontece até de gritarem: "A polícia conosco!").
(...)
G. Deleuze e F. Guattari in Mil Platôs, vol 5
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