domingo, 27 de setembro de 2015

SOBRE A ESQUIZOANÁLISE 


Folha de S. Paulo– Por que Deleuze deve se posicionar contra a psicanálise? Trata-se de causas políticas?
David Lapoujade – De início, é preciso lembrar que Deleuze, antes de seu encontro com Guattarri, foi um dos filósofos franceses de sua geração mais próximos da psicanálise. Ele não era somente um comentador de Freud, como Derrida ou Ricoeur, ele utilizava positivamente as distinções e classificações da psicanálise -as de Freud, é claro, mas também as de Melanie Klein, Lacan e seus discípulos -e outras ainda. Tanto ele se inspirava em tudo isso, que ele queria construir uma filosofia “clínica” do inconsciente, muito afastada de toda filosofia da “consciência”. Como ele disse em seguida, foi Guattari que o tirou da psicanálise.

Com efeito, jamais o encontro com Guattari seria fecundo se Deleuze não tivesse se sentido encurralado, em um plano ao mesmo tempo teórico e prático, em relação à sua utilização da psicanálise. Para Deleuze, lutar contra ela era, de início, colocar fim a um primado excessivo acordado ao sentido, era tentar pensar a atividade do inconsciente fora de toda interpretação significante. A ruptura com a psicanálise era inevitável porque se tratava de propor uma psicanálise sem interpretação!

Mas veja como a questão se torna ao mesmo tempo política, porque devemos agora nos perguntarmos: por que se quer, a qualquer preço, que o inconsciente signifique alguma coisa? Mais ainda, por que os psicanalistas querem que ele signifique sempre a mesma coisa: Édipo? A noção de “sentido” ou de significação não é neutra e as operações que ela pressupõe (tradução, interpretação, metáfora etc.), menos ainda.

Interpretar o inconsciente em função do triângulo edípico torna-se uma operação política. E Deleuze e Guattari mostrarão que o privilégio exclusivo que a psicanálise concede ao Édipo é, em outro plano, inseparável do desenvolvimento da economia capitalista. No limite, o que deve nos surpreender não é o fato de Deleuze e Guattari compreenderem a emergência e a institucionalização da psicanálise a partir da formação da economia capitalista, mas é antes o fato de que a psicanálise tenha isolado o inconsciente de toda relação estruturante com o campo social e político, que ela o tenha encerrado na célula familiar, que todo acontecimento político ou social seja compreendido no interior de um simbólico familiarista, que toda luta seja interpretada como uma luta contra o Pai…

Por que os psicanalistas seriam, como diz Deleuze, os “novos padres”?
Isso não se refere a uma analogia comum, frequentemente evocada, entre o padre confessor e o psicanalista terapeuta, entre o confessional e o divã. Na realidade, Deleuze e Guattari retomam aqui a tipologia de Nietzsche. É Nietzsche quem, em textos admiráveis, declara que os padres inventaram a psicologia ao criar a noção de “intenção”, criando assim de um só golpe também as noções de culpabilidade, de má-consciência etc. -toda uma teologia.

Se para Deleuze e Guattari os psicanalistas são os novos padres, é, em primeiro lugar, porque eles introduzem a culpabilidade no desejo: porque o desejo não deseja senão sob a condição do interdito do incesto. Em segundo lugar, é porque eles introduzem a noção de falta na definição do desejo, não uma falta passageira que pode ser satisfeita, mas uma falta constitutiva do próprio desejo, da qual a fantasia é testemunha. A falta e a fantasia são como uma “intenção” que estrutura o desejo, não um pecado original, mas uma estrutura universal.

E, na ideia de que a cura deve conduzir à aceitação da natureza do desejo como falta e castração, existe talvez mais moralismo do que se pode crer. Nietzsche já o dizia: a psicologia não está ao serviço da moral, ela é uma moral. Se, para Deleuze e Guattari, os psicanalistas são os novos padres, é porque eles querem nos impor uma concepção moral do desejo.

A psicanálise exageraria o papel do sexo na vida do sujeito?
Não, não creio. Não é essa a questão. Deleuze e Guattari pensam, como Freud, que tudo é sexual porque, para eles, tudo é desejo, tudo é libidinal. O que eles contestam é que toda sexualidade seja genital, é o rebatimento de toda sexualidade sobre a genitalidade.

Para eles, existe sexo por toda parte, não no sentido de que tudo simbolizaria a sexualidade genital, como para estes psicanalistas amadores que vêem um símbolo fálico assim que olham para um frasco de xampu, mas no sentido de que o desejo deseja, também “sexualmente”, outra coisa que a atividade sexual.

A psicanálise exagera o papel da família, em particular do pai e da mãe, na vida do sujeito?
É uma questão difícil. De saída, deve-se lembrar que, como sempre diziam Deleuze e Guattari, não foi a psicanálise que “inventou” o Édipo. São, de fato, os pacientes que vêm com suas “demandas” edípicas, são eles que são “doentes” de Édipo. São eles que estão presos na família; a família burguesa age ao mesmo tempo como um meio de reclusão e como uma caixa de ressonância do mundo social. Ela filtra tudo: as crises, os dramas, as guerras para se constituir uma interioridade neurótica, fortemente neurótica. Mas existe sempre alguma coisa que vem de fora para abalar mesmo a família mais fechada e nela introduzir um pouco de psicose ou de esquizofrenia: a falência financeira de um tio ou a psicose da avó.

O problema, aos olhos de Deleuze e Guattari, é que no lugar de nos fazer sair da família, a psicanálise nos afunda nela novamente, acompanhando um movimento que já era aquele do capitalismo, a saber, a privatização da família. De fato, com o capitalismo a família é colocada fora do campo social, mas de tal maneira que o campo social se aplica a ela e que os indivíduos se tornam personagens sociais e imagens do capitalismo, os representantes dos imperativos capitalistas: a família como pequena empresa ou poder delegado.

O mínimo que pode se dizer é que a psicanálise não procurou desfazer este movimento, mas o reforçou, o favoreceu, por intermédio justamente da “resolução” do complexo de Édipo.

A esquizoanálise seria capaz de escapar destes problemas? Como ela o faria?
Devem-se sublinhar duas coisas: em primeiro lugar, a esquizoanálise que Deleuze e Guattari propõem não exclui um procedimento terapêutico, uma “análise”. Deleuze e Guattari não são contra a análise ou a terapia, mas eles desejavam modificar seu funcionamento. Em segundo lugar, a esquizoanálise tem o mesmo “objetivo” de uma terapia clássica: acabar com o Édipo. Mas ali onde a psicanálise quer “resolver” o Édipo -o que significa, na maior parte das vezes, que cada um deve se resignar à sua neurose para conquistar uma normalidade assumida-, a esquizoanálise quer proceder de outra forma e nos reconectar com os processos esquizofrênicos próprios ao desejo, o que não quer dizer fazer de nós esquizofrênicos.

O que isso quer dizer? Não retornar incansavelmente à sua própria história pessoal e familiar para saber quando e como ela acabou mal, mas partir de um tipo de cartografia de nossa situação atual para determinar segundo quais vias, por quais combinações de fatores, nossa energia pode conseguir circular, pode conseguir se intensificar ou não. Não mais saber o que “Isso” [o “Isso” (ou Id) é uma das três instâncias psíquicas freudianas, ao lado do Ego e do Superego] quer dizer, mas como isso funciona, por quais meios, por quais construções. Não mais uma análise de interpretação, mas de experimentação. Não existe aqui nenhuma “resolução”, nenhuma origem reveladora a se pesquisar, nenhum fim liberador pelo qual se esperar; trata-se antes de sair destas narrativas intermináveis, dessas buscas infinitas e finalmente complacentes, de acabar com sua própria história para passar enfim a outra coisa.

Deste ponto de vista, a esquizoanálise procura recrutar antes os magos e os xamãs do que os psicanalistas, isto é, os seres mais sensíveis às forças, às energias e à sua circulação do que às histórias pessoais e à sua decifração.

Entrevista com David Lapoujade - Folha de S. Paulo, em 16/10/2012, por email.

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