A FORMA-ESTADO
(...) Já não se trata das poderosas organizações extrínsecas,
nem dos bandos estranhos: o Estado torna-se o único princípio que faz a
partilha entre sujeitos rebeldes, remetidos ao estado de natureza, e sujeitos
dóceis, remetendo por si mesmos à forma do Estado. Se para o pensamento é
interessante apóiar-se no Estado, não é menos interessante para o Estado
dilatar-se no pensamento, e dele receber a sanção de forma única, universal.
A particularidade dos Estados é só um fato; do mesmo modo, sua
perversidade eventual, ou sua imperfeição, pois, de direito, o Estado
moderno vai definir-se como "a organização racional e razoável de uma
comunidade": a única particularidade da comunidade é interior ou moral
(espírito de um povo), ao mesmo tempo em que sua organização a faz
contribuir para a harmonia de um universal (espírito absoluto). O Estado
proporciona ao pensamento uma forma de interioridade, mas o pensamento
proporciona a essa interioridade uma forma de universalidade: "a finalidade
da organização mundial é a satisfação dos indivíduos racionais no interior de
Estados particulares livres". É uma curiosa troca que se produz entre o
Estado e a razão, mas essa troca é igualmente uma proposição analítica, visto
que a razão realizada se confunde com o Estado de direito, assim como o
Estado de fato é o devir da razão. Na filosofia dita moderna e no Estado
dito moderno ou racional, tudo gira em torno do legislador e do sujeito. É
preciso que o Estado realize a distinção entre o legislador e o sujeito em
condições formais tais que o pensamento, de seu lado, possa pensar sua
identidade. Obedece sempre, pois quanto mais obedeceres, mais serás
senhor, visto que só obedecerás à razão pura, isto é, a ti mesmo... Desde que
a filosofia se atribuiu ao papel de fundamento, não parou de bendizer os
poderes estabelecidos, e decalcar sua doutrina das faculdades dos órgãos de
poder do Estado. O senso comum, a unidade de todas as faculdades como
centro do Cogito, é o consenso de Estado levado ao absoluto.
(...)
Gilles Deleuze e Félix Guattari in Mil platôs, vol.5
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