ARTE-PROCESSO
(...)
A arte também atinge esse estado celestial que já nada guarda de
pessoal nem de racional. À sua maneira, a arte diz o que dizem as crianças.
Ela é feita de trajetos e devires, por isso faz mapas, extensivos e
intensivos. Ha sempre uma trajetória na obra de arte, e Stevenson
mostra a importância decisiva de um mapa colorido na concepção de
A ilha do tesouro. Não quer isso dizer que um meio determine necessariamente
a existência dos personagens, mas antes que estes se definem
pelos trajetos que fazem na realidade ou em espirito, sem as quais
não há devir. Em pintura, um mapa colorido pode estar presente, dado
que o quadro é mais uma reunião sobre uma superfície que uma janela
para o mundo, à italiana. Em Vermeer, por exemplo, os devires mais intimos, os mais imóveis (a moça seduzida por um soldado, a
mulher que recebe uma carta, o pintor em via de pintar...) remetem,
contudo, a vastos percursos que um mapa atesta. Estudei o mapa, dizia
Fromentin, "não como geógrafo, mas como pintor". E como os trajetos
não são reais, assim como os devires não são imaginários, na sua
reunião existe algo de único que só pertence à arte. A arte se define
então como um processo impessoal onde a obra se compõe um pouco
como um cairn, esse montículo de pedras trazidas por diferentes viajantes
e por pessoas em devir (mais do que de regresso), pedras que
dependem ou não de um mesmo autor.
(...)
Gilles Deleuze in Crítica e Clínica
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