domingo, 27 de agosto de 2017

ARTE-PROCESSO

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A arte também atinge esse estado celestial que já nada guarda de pessoal nem de racional. À sua maneira, a arte diz o que dizem as crianças. Ela é feita de trajetos e devires, por isso faz mapas, extensivos e intensivos. Ha sempre uma trajetória na obra de arte, e Stevenson mostra a importância decisiva de um mapa colorido na concepção de A ilha do tesouro. Não quer isso dizer que um meio determine necessariamente a existência dos personagens, mas antes que estes se definem pelos trajetos que fazem na realidade ou em espirito, sem as quais não há devir. Em pintura, um mapa colorido pode estar presente, dado que o quadro é mais uma reunião sobre uma superfície que uma janela para o mundo, à italiana. Em Vermeer, por exemplo, os devires mais intimos, os mais imóveis (a moça seduzida por um soldado, a mulher que recebe uma carta, o pintor em via de pintar...) remetem, contudo, a vastos percursos que um mapa atesta. Estudei o mapa, dizia Fromentin, "não como geógrafo, mas como pintor". E como os trajetos não são reais, assim como os devires não são imaginários, na sua reunião existe algo de único que só pertence à arte. A arte se define então como um processo impessoal onde a obra se compõe um pouco como um cairn, esse montículo de pedras trazidas por diferentes viajantes e por pessoas em devir (mais do que de regresso), pedras que dependem ou não de um mesmo autor. 
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Gilles Deleuze in Crítica e Clínica

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